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A Província do Rio Grande do Norte e Ceará-Mirim nos Oitocentos: o primeiro

Para compreender a trajetória de vida de Magdalena Antunes e o lugar social ocupado por ela e por sua família, é importante discutir de forma breve sobre a produção agrícola e a movimentação comercial vivenciada pela Província do Rio Grande do Norte, já que Ceará- Mirim destacou-se naqueles idos em virtude da produção açucareira. Fazer esse registro será importante porque, na produção literária que Magdalena Antunes fez em seus anos de maturidade, a tentativa de reconstruir esse passado através da memória descortina as tradições inerentes de uma economia rural, patriarcal e aristocrática, que se desenvolveu ao longo do vale do rio Ceará-Mirim, rio este que deu nome ao município (CASCUDO, 1968).

A cidade de Ceará-Mirim encontra-se localizada a 28 km de Natal, capital do Estado. É banhada pelo rio de mesmo nome que nasce na serra de Santa Rosa, no município de Lajes, desaguando no Oceano Atlântico na praia de Barra do Rio em Extremoz (ANDRADE JUNIOR, 2005). Segundo Câmara Cascudo (1968), o vale do rio Ceará-Mirim nos seus primeiros anos de ocupação teve como atividade principal a criação de gado, seguida pela agricultura de subsistência. Atualmente o município faz parte da Região Metropolitana de Natal, a qual também é conhecida como Grande Natal.

Ao contrário do que aconteceu em outras áreas do Brasil, onde a produção de açúcar, através dos engenhos, foi desde os tempos coloniais implementada, a economia açucareira em terras potiguares só ganharia força a partir de meados do século XIX. Antes disso, os engenhos instalados na capitania do Rio Grande do Norte estiveram associados ao momento de expansão da economia açucareira de colonizadores oriundos de Pernambuco e outras regiões vizinhas. Segundo Câmara Cascudo (1984), esses foram os dois primeiros engenhos do litoral do Rio Grande do Norte: o engenho Cunhaú, fundado por Jerônimo de Albuquerque em 1614 às margens do rio homônimo, e o engenho Potengi, posteriormente denominado de Ferreiro Torto, fundado em 1630 às margens do rio Jundiaí.

A incidência da grande seca que se estendeu de 1845 até 1847 revelou a fragilidade da pecuária, que desde o período colonial predominou enquanto atividade econômica por excelência do Rio Grande do Norte. Segundo Denise Monteiro: “O gado bovino era essencial para os engenhos açucareiros da Zona da Mata nordestina: além de fornecer alimento para a população que se concentrava na faixa litorânea, era a força motriz dos primeiros engenhos (MONTEIRO, 2007, p. 62).

Paralelo à criação de gado nos sertões do Rio Grande do Norte, desenvolveu-se também a cotonicultura e, em menor escala no litoral, a atividade açucareira. Após sentirem os efeitos da seca desarticulando a principal atividade econômica da província, os proprietários rurais voltaram o olhar com mais afinco para a Zona da Mata, onde o nível pluviométrico era regular e onde os efeitos da seca não se faziam presentes tal como ocorria no interior. O então presidente da província do Rio Grande do Norte, Bevenuto de Magalhães Taques, a 3 de maio de 1849, observou essa situação e escreveu em seu relatório:

A grande secca dos três annos de 1845 a 1847 mostrou a instabilidade da riqueza do gado, e convenceu a muitos da necessidade de formar estabelecimentos agrícolas mais sólidos: com isso muito ganhou a industria do assucar, ainda muito atrasada, uma vez, porém, que à ella se apliquem maiores capitães, deverá tomar outras proporções, a fertilidade das terras vizinhas aos rios Cunhaú, Trairi, ou Caiapó, e Ceará Merim assegura grande fortuna a lavoura da canna. Esta parte da Provincia, a única bem regada, que compreende trinta legoas do seu litoral, é a mais rica e destinada à maior importância (RIO GRANDE NO NORTE, 1849, p. 15).

Entre todas as regiões em que os engenhos de açúcar foram instalados nesse contexto, a região do vale do rio Ceará-Mirim foi aquela que obteve mais realce, sobretudo pelo fato de ela possuir as condições naturais mais favoráveis ao cultivo da cana de açúcar. Segundo Gilberto Osório Andrade (1957), o primeiro engenho instalado na região data de 1843, sendo ele de propriedade do português Antonio Bento Vianna e denominado Carnaubal. Vinte anos depois, o número de engenhos despontou para 44, os quais eram denominados de trapiches, sendo movidos à força animal, inexistindo na região engenhos movidos a água, haja vista a intermitência do rio Ceará-Mirim (PEREIRA, 2015).

Na figura a seguir, é possível observar a distribuição dos engenhos, hoje em ruínas, ao longo do vale do rio Ceará-Mirim.

FIGURA 3 - Imagem de satélite com a distribuição espacial dos engenhos do vale do Ceará-Mirim

FONTE: Google Earth 2018 (acesso em: 16 jul. 2018).

Muito rapidamente a região logo se transformou no principal centro produtor de açúcar do Rio Grande do Norte, fato que levou muitas famílias a aumentarem seu poder aquisitivo, graças aos lucros advindos da exportação do gênero alimentício. A riqueza gerada pelos negócios do açúcar deu aos proprietários rurais um maior poder político, poder este “[...] legitimado com a criação da Guarda Nacional e com a entrega de postos de comando, acompanhados de patentes e títulos, aos senhores de engenho, de forma a favorecer a autoridade desses potentados locais” (ARRAIS; MARINHO, 2005, p. 79). Esse foi o caso de

José Antunes de Oliveira, pai de Magdalena Antunes, que recebeu o título de tenente-coronel, e de Manoel Varela do Nascimento que recebeu o título de barão (MARINHO, 2005).

Com o passar dos anos, a cultura açucareira foi declinando no vale do Ceará-Mirim em decorrência de diversos fatores:

[...] a baixa produtividade dos engenhos, seu grande número e a falta de modernização da maquinaria concorreram para o declínio da atividade. O último e mais duro golpe na economia do vale veio nos anos 30, com a introdução das usinas, deixando esses engenhos de “fogo morto” (ARRAIS; MARINHO, 2005, p. 80).

Tal fato levou muitos senhores de engenho a abandonarem suas pequenas propriedades. Com isso, esses territórios que estavam diretamente ligados ao cultivo da cana- de-açúcar foram incorporados pelas usinas, que passaram a fazer parte da realidade das zonas de produção açucareira do Nordeste nas primeiras décadas do século XX.

Na década de 1950, as usinas Ilha Bela e Santa Tereza incorporaram aos seus domínios quinze propriedades, enquanto a usina São Francisco anexou sete (ANDRADE, 1957). Em contrapartida, outros engenhos mais resistentes conseguiram pleitear, ao lado das usinas, seu lugar dentro da produção açucareira na região do vale do Ceará-Mirim. Entre eles merece destaque o engenho Mucuripe, fundado em 1935, o qual estava ligado aos descendentes de Magdalena Antunes. Tal como as usinas, o engenho Mucuripe incorporou ao seu território as propriedades dos engenhos Oiteiro, Cumbe e Alagoas.

Todavia, do passado de opulência vivenciado pelo vale do rio Ceará-Mirim na segunda metade do século XIX, bem como dos seus desdobramentos nas primeiras décadas do século XX, restam os vestígios materiais de seus engenhos e usinas, os quais são indícios das transformações vivenciadas pela região no tocante a sua paisagem, conforme salientou o historiador Daniel Bertrand (2010). A partir de metodologias tais como o trabalho de campo, o levantamento cartográfico e a análise de documentos históricos, o pesquisador problematizou ainda sobre as péssimas condições de conservação desse patrimônio, chamando atenção para o descaso dos órgãos públicos, bem como dos proprietários e moradores locais. Assim escreveu o historiador:

Verificamos que a conservação desses engenhos é bastante variada, temos engenhos que ainda são identificados pela presença do bueiro (chaminé), [...], e outros estruturas arquitetônicas em bom estado de conservação, pronta para serem utilizados [...]. Os demais engenhos encontram apenas uma ou outra estrutura construtiva, casa grande ou o engenho, muitos em ruínas (BERTRAND, 2010, p. 72).

Em setembro de 2018, tive a oportunidade de visitar o vale do Ceará-Mirim, perfazendo quase toda a rota dos engenhos. Em toda a extensão percorrida, foi notório o

estágio de perecimento e degradação do patrimônio arquitetônico ligado a esse período, situação que Daniel Bertrand constatou em 2010 e, desde então, a situação só se agravou, como pude perceber. As ruínas dos engenhos que ainda se mantêm de pé estão sendo tomadas pelo mato e por marimbondos, o que impossibilita, em alguns casos, ao visitante conseguir o acesso. Foi com bastante dificuldade que adentrei em grande parte das ruínas, registrando através da fotografia o estado de abandono em que o patrimônio histórico local se encontra.

Em meio a essas estruturas decadentes, destaco o engenho Oiteiro, que fora construído por José Antunes de Oliveira e que, posteriormente, foi passado por herança às mãos de sua filha primogênita, Magdalena Antunes. O engenho Oiteiro destacava-se pela produção de açúcar e aguardente (ANTUNES, 2003). É importante salientar que estas propriedades ainda sobrevivem, mas não posso precisar se continuam pertencendo à família. Depois de Magdalena Antunes, o engenho e as terras passaram pela administração de seus filhos, sendo Ruy Pereira aquele que de fato se tornaria seu proprietário, fundando na década de 1930 o engenho Mucuripe, que funcionou durante décadas.

Atualmente o engenho Oiteiro encontra-se em estado avançado de perecimento graças às ações do tempo, cujas ruínas podem ser contempladas às margens da rodovia RN-160 que liga a cidade de Ceará-Mirim ao litoral do estado. Sua localização via satélite pode ser vista na figura abaixo.

FIGURA 4 - Imagem de satélite com a localização das ruinas do engenho Oiteiro

FONTE: Google Earth 2018 (acesso em: 16 jul. 2018).

Todavia, seus tempos de plena atividade também foram retratados nas páginas do Oiteiro, cuja autora utilizou o nome do engenho onde viveu parte de sua infância, adolescência e vida adulta como título do seu livro de memórias. Já o engenho Mucuripe hoje em dia encontra-se desativado, sendo possível encontrar toda sua estrutura arquitetônica, bem como as casas dos seus antigos trabalhadores, em bom estado de conservação às margens da mesma rodovia, logo após as ruínas do engenho Oiteiro, e cuja localização via satélite pode ser vista na Figura 3.