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Do passado em ruínas à tessitura de uma eternidade através da literatura

Nas primeiras décadas do século XX, Ceará-Mirim passou a sentir os efeitos da derrocada da cultura canavieira. Assim escreveu Nilo Pereira: “O ano de 1910 foi fatal para o açúcar. O preço baixou assustadoramente” (PEREIRA, 1982, p. 40). No entanto, vale salientar que antes disso a produção açucareira, anos antes, já dava sinais de enfraquecimento. Esta situação repercutiu diretamente nas finanças da família Antunes; tanto é que Magdalena e seus irmãos só conseguiram se manter estudando em Recife na década de 1890 devido a empréstimos a juros realizados por José Antunes de Oliveira (ANTUNES, 2003).

Com a economia açucareira tradicional em decadência, novos métodos de produção foram colocados à prova pelo governo brasileiro, visando vencer os efeitos da crise dando alento aos senhores de engenho que viam seu negócios declinarem com a baixa da produção. A inserção das usinas na década de 1930 deflagrou o último golpe sobre a economia do vale do Ceará-Mirim (ARRAIS; MARINHO, 2005). Sobre isso, escreveu Magdalena: “Esse vale de fantástica exuberância, possui três usinas: Ilha Bela, dos Ursulos Ribeiro Coutinho, São Francisco, de Luiz Lopes Varela e Santa Terezinha, de Ubaldo Bezerra” (ANTUNES, 2003, p. 250). Ou seja, era a cultura açucareira que se modernizava, visando atender às exigências do mercado internacional (EISENBERG, 1977).

Os efeitos da queda da economia açucareira se tornariam ainda mais devastadores para Magdalena Antunes e sua família, pois eles reverberaram com tamanha intensidade sobre o coronel José Antunes de Oliveira, seu pai, ao ponto de ele não aguentar o baque se valendo do suicídio. Segundo Wandyr Villar (2016), este fato ocorreu no dia 11 de novembro de 1915. Paulo de Tarso (2018), por sua vez, na entrevista que me concedeu acrescentou sobre o fato:

Ela amava o pai profundamente. Deve ter pesado, deve ter sido um drama. Mas o que acontece é o seguinte, ele era um tipo, eu não conheci seu Antunes, mas ele era um tipo depressivo. Houve um momento em que começa a haver a crise do açúcar e ele entra em problema de embate financeiro, que a condição psicológica de ser uma pessoa depressiva fez com que ele ampliasse muito esse aspecto, e ele termina se suicidando, se jogando do sobrado, o sobrado Antunes que hoje é a Prefeitura do Ceará-Mirim. Eu não sei se ainda existe uma espécie de escada externa, como era uma construção de pé direito muito alto e ele se suicida se jogando dessa escada externa. Isso deve ter sido um drama na família. Mas eu não acompanhei [...]. O suicídio dele foi na época dessa crise (MELO, 2018).

FIGURA 19 - Sobrado dos Antunes visto pelos fundos

FONTE: fotografia do autor (2018).

Logo acima, é possível observar o sobrado Antunes pela parte dos fundos onde aparece em destaque a escada que Paulo de Tarso salientou. Por outra via, Nilo Pereira em seu livro de memórias intitulado Rosa Verde falou sobre o mesmo fato, mas dando outras possíveis motivações para o suicídio do coronel:

Um dia – um triste dia – se abateu a desgraça sobre aquela casa alegre, onde se respirava euforia e felicidade. Vinha-se notando que o coronel José Antunes, que construiu tão nobre solar, sofria de alguma coisa. Procurava esconder a doença. Mas o seu comportamento revelava tudo: a neurastenia, a angústia, o retraimento punham sombras sobre a sua vida. Não era mais o mesmo homem. Resolveu ir ao Recife e procurar médicos afamados. Não se sabe o que esses médicos lhe disseram. Voltou desanimado, taciturno, introspectivo. Quase não falavam. Todos preocupados com ele. – Já não conversava com ninguém. Procurava fugir às perguntas. E quase não comparece mais à mesa das refeições, comentava o genro Olympio. [...] Numa noite, recusou-se a cear. Passeava, nervoso, pela vasta sala onde, até bem pouco, tanto se dançava e cantava. Quando menos se viu foi o baque surdo na calçada do sobrado: o coronel José Antunes atirou-se da janela pondo termo à vida. [...]. Quem diria que um homem tão forte lançaria mão do suicídio para fugir aos problemas que o atormentavam? (PEREIRA, 1982, p. 166-167).

Fazendo o cruzamento entre os dois textos, percebo que um motivo não anula o outro. Ao contrário, a iminência de uma doença grave pode ter até potencializado o estado de depressão do senhor de engenho que, tal como foi afirmado por Paulo de Tarso de Melo (2018), era acometido com uma patologia psíquica. Somado a isso, não se pode esquecer que o coronel viveu anos de sua vida tentando se movimentar habilidosamente em meio às crises

do açúcar sobre os seus negócios, um fantasma que o acompanhou evidentemente até o túmulo.

É importante notar que o suicídio de José Antunes ocorreu em meio a uma das crises vivenciadas por seu engenho e, após sua morte, as suas propriedades ainda gozaram de muita austeridade, sendo administradas por Magdalena Antunes e depois por seus netos. Independente dos reais motivos que tenham levado José Antunes a dar cabo da própria vida, seja pelo pânico do fantasma da falência, seja pela ciência de um diagnóstico médico desfavorável a ele, ou da somatória de tudo isso, o que se depreende é que o seu ato desesperado se enquadra dentro daquilo que Émile Durkheim chamou de suicídio anômico (DURKHEIM, 1978). Para o sociólogo, o suicídio anômico é resultado de mudanças abruptas no âmbito social, e que atingem certos indivíduos que, com a nova ordem, ficam numa situação inferior à que ocupavam antes. Ou seja, para ele, as causas dos suicídios são sempre sociais, uma vez que a sociedade está introjetada no indivíduo sendo esta a mola propulsora que o movimentará a atentar contra a própria existência. Provavelmente esse foi o caso de José Antunes, atormentado pelas crises financeiras e de saúde.

Mas o fato é que isso não aparece nas páginas do Oiteiro: o suicídio do pai é completamente silenciado por Magdalena Antunes, sendo nítida sua intenção por formular uma representação positiva para ele que afugentasse o estigma do suicida, daquele que sucumbiu dando fim à própria vida e contrariando os ditames da fé católica de então, que pregava que os suicidas não tinham direito à salvação conforme afirmou Georges Minois (1998). Sobre o pai, assim Magdalena escreveu: “Meu pai! Como eu o adorava! E ao Deus que mo deu, como poderei pagar a oferta? Deveria haver uma consciência infinita para o infinito da bondade divina” (ANTUNES, 2003, p. 35).

Acredito que à consciência de que uma época se extinguia somou-se o pesar pela morte do pai tão estimado. Foi em Oiteiro, onde os territórios em ruínas de Ceará-Mirim foram transformados em territórios de saudade. Nesse sentido, outros intelectuais da região em decadência, sendo grande parte deles filhos e netos de homens e mulheres ligados a esse passado que se esvaía, buscaram, em suas escritas, muitas em forma de memórias, eternizar um tempo de fausto e de tradições, posto por ora em perigo, perigo este representado principalmente pela presença das usinas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).

Logo abaixo, apresento a imagem do que resta da estrutura arquitetônica da casa- grande e do engenho Oiteiro, que podem ser encontradas às margens da rodovia RN-160 no sentido Ceará-Mirim-Litoral.

FIGURA 20 - Ruínas da casa-grande atualmente

FONTE: fotografia do autor (2018).

FIGURA 21 - Ruínas do engenho Oiteiro atualmente

FONTE: fotografia do autor (2018).

A inserção de um novo método produtivo no cenário da agricultura canavieira representou, além de tudo, um abalo a todo um modus vivendi e, junto a ele, personagens típicos, como os senhores de engenho, sinhazinhas e mães-pretas precisavam ser resgatados

do desaparecimento tempos depois. A partir da escrita literária, um passado deveria ser salvo, haja vista que “[...] a perda é o processo pelo qual estes indivíduos tomam consciência da necessidade de construir algo que está se acabando” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 91).

Este mesmo fenômeno foi vivenciado por outros estados do recorte espacial que passaria a ser chamado de Nordeste, o que se processou devido à emergência de uma série de discursos, imagens e enunciados que irromperam a partir da primeira década do século XX (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). “Esta construção do Nordeste será feita por vários intelectuais e artistas em épocas também as mais variadas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 92), sendo refletida em diferentes formas de linguagem, tais como o cinema, a música, a pintura, o teatro, a produção acadêmica e a literatura.

Escritores tais como os pernambucanos Gilberto Freyre (1900-1987), Mário Sette (1886-1950), Julio Bello (1873-1951), o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), os paraibanos José Américo (1887-1980) e José Lins do Rêgo (1901-1957), alguns deles enquadrados naquilo que se convencionou chamar de romancistas de 30, vão tentar, a partir de seus lugares de fala, fazer um registro da região como um espaço de tradições e saudade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).

Em sua obra sociológica, representada, sobretudo por Casa-Grande & Senzala de 1933, Gilberto Freyre trouxe a família patriarcal como o cerne da sociedade brasileira, sugerindo que as relações entre senhores e escravos haviam sido “adocicadas”, em contraposição às frias e impessoais relações travadas entre usineiros e empregados. Segundo Albuquerque Júnior (2011), as relações de poder da sociedade patriarcal a partir de Freyre (1998) baseavam-se no entrelaçamento entre pessoas e não entre classes, grupos ou instituições sociais. A partir dos personagens Nestor e Maria da Betânia, Mário Sette (2005), na obra Senhora de engenho (de 1921) traria para a literatura traços típicos do velho Nordeste açucareiro e patriarcal, tais como a influência da religiosidade católica sobre as famílias, bem como o cotidiano vivenciado nos engenhos e nas casas-grande de Pernambuco.

Ao escrever e publicar, em 1985, Memórias de um senhor de engenho, Júlio Bello faria um desenho da vida socioeconômica da zona canavieira pernambucana, colocando-se ainda enquanto o último de toda uma linhagem de senhores, e cujas reminiscências pessoais serviriam de referencial para todas as regiões açucareiras do Brasil (BELLO, 1985).

Em alguns desses trabalhos, tais como em Menino de engenho de José Lins do Rêgo (2010), esse desenho saudosista foi feito a partir da rememoração da infância. Nesta obra o autor traz a trajetória do menino Carlinhos que, após ter ficado órfão, passou a viver no

engenho do avô materno, o respeitado senhor de terras e escravos José Paulino do engenho Santa Rosa. Nas obras Doidinho (RÊGO, 2011b) e Banguê (RÊGO, 2011a) que dão sequência à trilogia memorialista do autor, que retrata a sociedade açucareira tradicional do Nordeste, seu auge e decadência, o mesmo desenho saudosista é perceptível.

No contexto do Rio Grande do Norte, destacaram-se Câmara Cascudo e Nilo Pereira, que produziram obras que também colaboraram em grande medida para a elaboração desse projeto saudosista. Ambos estavam diretamente ligados a Magdalena Antunes por relações afetivas e de parentesco, ao mesmo tempo em que estavam atrelados por relações de amizade a essa rede mais ampla de intelectuais regionalistas, os quais compartilhavam o mesmo sentimento em relação ao passado. Em carta de Nilo Pereira endereçada a Cascudo, e datada de 06 de setembro de 1960, é possível perceber isso:

[...]. Com a morte de mamãe fechou-se a última porta de fuso do Guaporé. [...]. Vivia de lembrar os dias antigos, os idos da aristocracia canavieira, as valsas do fim do século, os acontecimentos, a grandeza malograda de dois engenhos o verde-nasce e o Guaporé – o mundo perdido e sonoro. [...]. Morreu a geração antiga, nobre de sentimentos, e com ela o amor a uma velha instituição hoje ainda sagrada. Estou vendo, de longe, a casa em agonia. Quando os mortos velarem aquela solidão religiosa, lá estará minha mãe, lembrando com meu pai o sonho desfeito, mas gravado no tempo as vozes felizes que ali construíram um reinado imperecível de graça e de afeto. Vendo minha mãe morta, sorridente e linda como uma santa, senti que com ela se foi uma época (PEREIRA, 1960).

FIGURA 22 - Ruínas da casa-grande do engenho Guaporé atualmente

Acima, é possível observar a imagem da casa-grande do engenho Guaporé em avançado estado de decadência. Anos mais tarde esse mesmo sentimento estaria presente em seu livro de memórias Rosa verde publicado em 1982:

Findava um passado aristocrático. Tudo mudava. Era natural. As usinas vieram para matar os engenhos. Os senhores de engenho passaram a ser fornecedores de cana. Algo agonizava. Diziam que era o progresso chegando. Não veio o trem? Não veio o automóvel? Assim veio a usina. Era um polvo, arrastando tudo nos seus tentáculos. Não se podia resistir. O açúcar já não era o mesmo. O usineiro dominava lentamente a antiga paisagem (PEREIRA, 1982, p. 233).

Em Sociologia do açúcar, Câmara Cascudo (1971) externa o mesmo sentimento que o de Nilo Pereira:

Olho unicamente os personagens que o açúcar ambientou em quatrocentos anos. Personagens cuja missão teatral findara pelo desaparecimento do cenário propulsor. A transformação industrial, multiplicando a produção, foi despedindo os velhos intérpretes, incapazes de atender as exigências dos “papéis novos” o entendimento da assistência moderna, as predileções contemporâneas. [...]. A usina fechou o ciclo da cana de açúcar, desaparecendo o senhor de engenho, desapareceu o fundador do açúcar, patrono da aristocracia rural, castelão da casa-grande, áspero, autoritário, generoso, imprevidente, triunfal (CASCUDO, 1971, p. 17-18).

Essa elite regional via nas mudanças proporcionadas pela modernidade a derrocada de seus antigos territórios. Foi a partir de suas obras de cunho sociológico, literário e artístico que se esforçaram em produzir novos territórios existenciais e sociais, resgatando do perecimento “o passado de glória da região, o fausto da casa-grande, a „docilidade‟ da senzala, a „paz e estabilidade‟ do Império” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 47). Em meio a isso tudo, o sentimento de lirismo e saudade perpassa todas essas obras. Sobre saudade assim conceituou o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior:

A saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si. A saudade também pode ser um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que perdeu historicamente a sua posição, que viu os símbolos de seu poder esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 78).

Oiteiro pode ser inserido justamente nessa seara de obras que retrataram a decadência da sociedade patriarcal e a saudade de uma “época de ouro” que ficou em tempos idos. Nesses trabalhos, as usinas aparecem como fator de desagregação de antigas tradições ligadas aos engenhos, cujos senhores ocupavam posição central enquanto proprietários que eram. Em outro momento Magdalena Antunes escreveu: “Os tempos vão passando e levando as pessoas queridas. Do Oiteiro que eu sempre revejo com os olhos da saudade, vão-se apagando cada

vez mais os vestígios. Das camponesas que nos visitavam, poucas existem” (ANTUNES, 2003, p. 305). Era essa a sociedade que estava em ruínas, e cujo processo de decadência se adensou nos anos em que Magdalena Antunes esteve internada no Colégio de São José, em Recife, e que teve sua ruína definitiva nos anos de 1930, quando a escritora já estava cinquentenária.

Magdalena fez aparecer uma figuração ligada ao mundo dos engenhos de açúcar, tal como fez a maior parte dos autores anteriormente citados. A categoria figuração, tomo de empréstimo ao sociólogo Norbert Elias (2001), que em seu livro A sociedade de corte define enquanto uma determinada formação social, cujas definições são variáveis e onde existem relações de interdependência entre os personagens, mesmo eles ocupando lugares hierarquicamente diferenciados. Ou seja, o sociólogo trata figuração enquanto um modelo de sociedade em que cada indivíduo liga-se aos outros por relações que são necessárias para ambos os envolvidos, mesmo que eles ocupem posições sociais diferentes. Além disso, dentro das figurações sociais os lugares ocupados por cada indivíduo precisam ser devidamente respeitados.

Tomando como base a corte do rei Luís XIV, o chamado Rei Sol, Norbert Elias foi mostrando todo um jogo de relações que circundavam o monarca francês, onde a ação de um sujeito vai depender da ação do outro, tal como numa engrenagem. Estas relações estavam fortemente marcadas por tensões, em que os membros da corte aparecem às voltas em busca de prestígio e visibilidade e os rituais em torno da coroa e regras de etiqueta deveriam ser internalizados e reproduzidos cotidianamente enquanto símbolos de poder e de distinção social.

A partir de um viés saudosista e romanceado, Magdalena Antunes traz o imaginário dela sobre a Ceará-Mirim enquanto um exemplo de figuração. A Ceará-Mirim que é desenhada por ela surge como um pequeno reino, uma pequena corte, que nasceu às margens do vale açucareiro onde viveu sua infância e adolescência nos últimos anos do século XIX. Em Oiteiro, Ceará-mirim é apresentada por ela enquanto um modelo de sociedade permeada por relações aristocráticas, patriarcais e escravistas, onde todos os indivíduos, tais como os coronéis, mulheres, trabalhadores pobres e escravos, estavam atrelados entre si por relações de interdependência.

Nessa figuração social realçada pela escritora em sua obra, José Antunes de Oliveira aparece como personagem central, e foi a ele que Magdalena Antunes dedicou várias páginas de seu livro. No caso do pai de Magdalena Antunes, o suicídio aparecia enquanto um estigma que pesava contra ele. Esse fato precisava ser apagado da memória narrativa, o que a faz

recriar algo novo, produzindo uma representação positiva para ele, enobrecendo-o e dotando- o de atributos valorizados socialmente, como a autoridade, a paternidade e a devoção ao catolicismo.

Vendo-o como de temperamento brando e detentor de imenso amor paternal, seu pai era, pelo que me parece, a pessoa que Magdalena Antunes mais estimava, sobretudo pela presença dele nos anos de sua infância. Além de proprietário de terras, de engenho e de escravos, foi, para ela, um pai exemplar e católico fervoroso. Foi descrito por ela como homem prestigiado no cenário econômico, político e social, constantemente procurado e respeitado pelos seus pares, lidando diariamente com operários, diaristas, empreiteiros, feitores e escravos sem qualquer dificuldade (ANTUNES, 2003).

Faziam parte do ciclo de amizade do coronel figuras renomadas da época, tais como médicos, empresários, jornalistas, advogados e militares de alta patente da região, os quais se faziam presentes no sobrado da família, sobretudo aos domingos, quando se encontravam em animadas conversas que adentraram até altas horas da noite, momento em que jogavam carteado. Magdalena Antunes diz: “Às vezes, eu já estava dormindo e acordava assustada com as gargalhadas que enchiam os espaçosos salões do sobrado” (ANTUNES, 2003, p. 169).

Nas festas da padroeira de Ceará-Mirim, Nossa Senhora da Conceição, seu pai se apresentava devidamente paramentado com a farda da Guarda Nacional e demais símbolos de distinção do destacamento militar, para participar da procissão em honra à santa (ANTUNES, 2003). Além disso, José Antunes educou seus filhos seguindo essa orientação religiosa, não dispensando participar dos eventos promovidos pela igreja de sua cidade. Também colaborou financeiramente para que a instituição mantivesse seus ritos; tanto é que patrocinou a construção das duas torres da igreja matriz de Ceará-Mirim, além de ter encomendado as cruzes que vieram da Inglaterra, conforme Magdalena Antunes (2003) afirmou. Reforçando esse perfil de homem religioso e devoto assim escreveu Magdalena Antunes:

Logo ao amanhecer, acordávamos para a missa. Minha mãe vestia-nos com a melhor roupa. Descíamos as escadas todos desencontrados, mas, ao atravessarmos o portãozinho de ferro, lá estava meu pai, que nos punha em ordem: eu com o irmão mais velho, a minha irmã com o mais moço. Meu pai tinha uma força moral extraordinária sobre os filhos; um olhar seu bastaria para resolver o mais complicado dos nossos problemas infantis (ANTUNES, 2003, p. 169-170).

Nas narrativas de Magdalena Antunes, o pai encarnava a personificação da autoridade sobre sua família e, sobretudo, sobre seus filhos, a ponto de um único olhar seu ser o bastante para resolver qualquer contenda. Outra característica de seu pai que ela enfatizou era o fato de ele ser sensível em relação à educação de suas filhas. Tanto é que, mesmo passando por

problemas financeiros, José Antunes matriculou os quatro filhos em destacadas escolas pernambucanas, e isso o diferenciava em relação aos outros homens da região, segundo Magdalena Antunes (2003). Ezequiel e Juvenal estudaram no Colégio Parthenon, Magdalena e Etelvina no Colégio de São José.

Magdalena Antunes afirmou ainda que, além de exercer autoridade sobre sua família, o senhor de engenho também a exercia sobre os escravos e sobre homens e mulheres pobres