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Representações do estrangeiro na cultura portuguesa (1750-1950) : identidade nacional em confronto

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO NA CULTURA PORTUGUESA (1750-1950): IDENTIDADE NACIONAL EM CONFRONTO

Cristiana Isabel Lucas Silva

Orientadores: Prof. Doutor Ernesto Saturnino Dá Mesquita Castro Leal Prof. Doutor José Eduardo Franco

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de História, na especialidade de História Contemporânea

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO NA CULTURA PORTUGUESA (1750-1950): IDENTIDADE NACIONAL EM CONFRONTO

Cristiana Isabel Lucas Silva

Orientadores: Prof. Doutor Ernesto Saturnino Dá Mesquita Castro Leal Prof. Doutor José Eduardo Franco

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de História, na especialidade de História Contemporânea

Júri:

Presidente: Doutor António Adriano de Ascensão Pires Ventura, Professor Catedrático e Diretor da Área de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Vogais:

- Doutor Luís Machado de Abreu, Professor Catedrático Aposentado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro;

- Doutor José Eduardo Franco, Professor Catedrático Convidado da Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos e a Globalização da Universidade Aberta e Investigador do CLEPUL da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, co-orientador;

- Doutor Domingos José Alves Caeiro, Professor Auxiliar do Departamento de Ciências Sociais e de Gestão da Universidade Aberta;

- Doutora Susana Goulart da Costa, Professora Auxiliar do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores;

- Doutor António Adriano de Ascensão Pires Ventura, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

- Doutor Ernesto José Rodrigues, Professor Auxiliar com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

SFRH/BD/70821/2010 2018

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RESUMO

Partindo da hipótese de que a identidade nacional se constrói numa dinâmica de confronto, o nosso estudo pretende perscrutar as representações do Estrangeiro em textos emblemáticos da cultura portuguesa dos séculos XVIII a XX, tendo em consideração que, dependendo do contexto e da sua tipologia (estrangeiro exógeno ou endógeno), o Estrangeiro pode ser encarado como o inimigo a combater e a anular ou o modelo a emular. Esta análise será complementada com uma leitura do Estrangeiro à luz de uma estrutura de ressentimento e do mecanismo do bode expiatório.

Compreender-se-á que somente a exegese das representações do Estrangeiro na longa duração permite compreender a eficácia e a ação mobilizadora de certos mitos engendrados sobre determinado estrangeiro, a sua evolução ao longo dos tempos e o modo como foram instrumentalizados em diferentes contextos.

Palavras-chaves: Estrangeiro, identidade nacional, ressentimento, mito, bode expiatório.

ABSTRACT

Starting from the hypothesis that national identity is built on a confrontational dynamic, our study intends to examine the representations of the Foreigner in emblematic texts of the Portuguese culture from the 18th to 20th Centuries, considering the principle that, depending on the context and typology (exogenous or endogenous foreigner), the Foreigner can be seen as the enemy to be fought and eliminated, or a model to be emulated. This analysis will be complemented by a reading of the Foreigner according to a structure of resentment and a scapegoat mechanism.

It will be understood that only through an exegesis of the long-term representations of the Foreigner can we understand the efficacy and mobilizing force of certain myths engendered about a particular foreigner, their evolution over time and the way they have been instrumentalized in different contexts.

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ÍNDICE RESUMO

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ABSTRACT 7 ÍNDICE 9 AGRADECIMENTOS 15 INTRODUÇÃO 17 ABREVIATURAS E SIGLAS 35 PARTE PRIMEIRA

O ESTRANGEIRO EXÓGENO

:

IMAGENS DIMÓRFICAS DE UMA EUROPA

SENTIMENTAL 37

Capítulo 1. Os «Estrangeirado»: uma nobre utopia 39

1.1. Génese, formulação e discussão do conceito 40

1.1.1. A génese 40

1.1.2. A formulação do conceito por António Sérgio 43

1.1.3. Discussão e uso do conceito: aprovação e refutação 49 1.2. Impulsionadores de uma reforma: identificação dos «estrangeirados» 83 1.3. «Castiços» e «estrangeirados»: tradição e inovação 103 1.4. Repensar o conceito sergiano de «estrangeirados» 108

Capítulo 2. Entre a aliança e a desavença: a Inglaterra 115

2.1. Episódios de «Uma velha aliança» (1294-1703) 117

2.2. A Inglaterra desleal 126

2.2.1. O antibritanicismo pombalino: uma «política de emancipação» sob o signo

de Methuen 126

(10)

2.2.2.1. A Convenção de Sintra 142 2.2.2.2. O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação de 1810 144 2.2.2.3. «A força toda do reino na mão de um general estrangeiro» 147 2.2.2.4. A tutela britânica segundo intelectuais oitocentistas 152

2.2.3. O Ultimatum ou a «britânica bofetada» 161

2.2.3.1. A corrida à África: o Tratado de Lourenço Marques e a Conferência de Berlim

163

2.2.3.2. «Contra os bretões, marchar, marchar» 165

2.3. A Inglaterra aliada 172

2.3.1. Um baluarte da independência nacional: a Guerra Fantástica e as Invasões

Francesas 173

2.3.1.1. A intervenção inglesa na Guerra Fantástica 174

2.3.1.2. A intervenção inglesa nas Invasões Francesas 176

2.3.1.3. O testemunho de José Acúrsio das Neves 180

2.3.2. A Inglaterra como paradigma: representações 184

2.3.2.1. Apesar de Methuen 184

2.3.2.2. Apesar da tutela britânica 187

2.3.2.4. Apesar do Ultimatum de 1890 197

2.4. A reconfiguração da aliança no século XX 201

2.4.1. A Inglaterra segundo António Sérgio e Fernando Pessoa 203

2.4.2. A aliança no quadro da Primeira Grande Guerra 207

2.4.3. O culto dos «melhores amigos»: a aliança inglesa segundo o Estado Novo 211

Capítulo 3. Entre o ressentimento e a sedução: a França 217

3.1. Das relações dinásticas ao fenómeno de aculturação 219 3.1.1. Representações da França entre os «Estrangeirados» 223 3.2. As «Invasões Francesas» no longo século XIX — formação e consolidação do

antifrancesismo 226

3.2.1. As invasões napoleónicas: o mito negro de Napoleão como expressão de

antifrancesismo 227

(11)

3.2.3. A «invasão cultural»: críticas a uma atitude de subserviência ou a um sinal

de provincianismo 256

3.3. A sedução francesa nos séculos XIX e XX 271

3.3.1. Os «afrancesados» — breves apontamentos para uma definição 272 3.3.2. A França como modelo, ou Paris como «capital do espírito» 276

Capítulo 4. Fraternidade e desconfiança: a Espanha 285

4.1. Fraternidade e equilíbrio: o ideário iberista 286

4.1.1. As propostas iberistas: tendências dominantes 289

4.1.2. A federação ibérica como fator de autonomia nacional: Henriques Nogueira

e Teófilo Braga 296

4.1.3. A aliança ibérica contra o inimigo comum, segundo Oliveira Martins 300

4.1.4. O hispanismo de António Sardinha 302

4.1.5. Manifestações de uma consciência hispânica no século XX: a herança de

Oliveira Martins e de António Sardinha 305

4.2. Sob o signo da desconfiança: representações de anticastelhanismo na cultura

portuguesa 307

4.2.1. Anticastelhanismo preventivo e anti-hispanismo no século XVIII 308 4.2.2. A campanha anti-iberista de oitocentos: a função mobilizadora da Comissão

Central 1.º de Dezembro de 1640 312

4.2.3. Teófilo Braga anticastelhano 316

4.2.4. A fase anti-hispanista de António Sardinha 319

4.2.5. O perigo espanhol pela propaganda do Estado Novo 321

PARTE SEGUNDA

O ESTRANGEIRO ENDÓGENO OU O BODE EXPIATÓRIO 327

Capítulo 5. A Igreja ultramontana: do regalismo ao laicismo 329

5.1. Ultramontanismo e conceitos subsidiários 331

5.1.1. Ultramontanismo 331

5.1.2. Infalibilidade pontifícia 333

5.1.3. Curialismo romano, Papalismo e Jesuitismo 337

(12)

5.2. O regalismo como antídoto do ultramontanismo: configurações, práticas e

fundamentações 345

5.2.1. Regalismo pombalino: um regalismo militante 346

5.2.1.1. Fundamentação do regalismo pombalino: o padre António Pereira de

Figueiredo 351

5.2.1.2. Um regalismo poliédrico: febronianismo, galicanismo e jansenismo 353 5.2.1.3. Da teoria à prática: os Estatutos da Universidade de Coimbra 364 5.2.1.4. Um exemplo de regalismo «não oficial»: as Cartas sobre a educação da

mocidade 369

5.2.2. Regalismo liberal: entre concórdias e discórdias 372 5.2.2.1. Da Constituição de 1822 à Constituição de 1838 374

5.2.2.2. Um regalismo de feição anticlerical 377

5.2.2.3. A reação antiultramontana de Herculano 388

5.2.2.4. Antiultramontanismo n’As causas da decadência dos povos peninsulares 396

5.2.2.5. Nem o Syllabus nem a Carta 399

5.2.3. Entre o regalismo e o laicismo: a separação do Estado das Igrejas 401 5.2.3.1. Sebastião de Magalhães Lima, o «pregador» antiultramontano 414 5.2.4. «Catolaicismo» e neorregalismo no Estado Novo 418 5.3. «Janízaros do papado»: os Jesuítas e a decadência nacional 429 5.3.1. A propaganda antijesuítica pombalina como matriz do mito negro dos

jesuítas: a Dedução cronológica e analítica 430

5.3.2. A função mobilizadora do mito dos Jesuítas nos séculos XIX e XX: para uma

explicação da decadência nacional 435

Capítulo 6. «Homens de nação»: judeus e cristãos-novos 445

6.1. Apontamentos para a génese do antijudaísmo em Portugal 447 6.2. A reabilitação dos cristãos-novos no quadro do Iluminismo: as resoluções

pombalinas e o papel dos Estrangeirados 458

6.2.1. A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos pela pena dos

«estrangeirados» — a herança do Padre António Vieira 459

(13)

6.3. Um antissemitismo inexpressivo: o século XIX ou «o tempo da ilusão» 472 6.3.1. Nacionalismo ideológico e antissemitismo: breves apontamentos 474 6.3.2. Representações dos judeus no Portugal oitocentista 476

6.4. Os judeus em Portugal no século XX 483

6.4.1. Antissemitismo ideológico: uma realidade divergente 485

6.4.2. O Estado Novo perante a Questão Judaica 499

Capítulo 7. A ameaça do desconhecido: a maçonaria 505

7.1. Antimaçonismo no século XVIII: entre a suspeita e a transigência (1727-1789) 506 7.2. Antimaçonismo político e ideológico: o perigo maçónico revelado 509

7.2.1. Antimaçonismo normativo no século XIX 511

7.2.2. José Agostinho de Macedo, apóstolo antimaçónico 517 7.2.3. António Sardinha contra o «estrangeiro do interior» 523

7.2.4. Antimaçonismo no Estado Novo 525

Capítulo 8. O «perigo vermelho»: o comunista 535

8.1. A condenação do comunismo pela Igreja Católica 536

8.2. A génese do comunismo e do anticomunismo em Portugal (1848-1921) 544 8.2.1. Do socialismo marxista ao marxismo-leninismo em Portugal: «o marxismo

possível» 545

8.2.2. A rejeição intelectual da doutrina marxista: contributos de Antero de

Quental, Oliveira Martins e Sampaio Bruno 550

8.3. O anticomunismo absoluto: propaganda, repressão e estereotipia 556 8.3.1. «Nada contra a Nação, tudo pela Nação»: anticomunismo político e

ideológico no Estado Novo 558

8.3.2. «Almoçam padres fritos na grelha»: contributos para a estereotipia

anticomunista 567

CONCLUSÕES 577

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(15)

AGRADECIMENTOS

Neste momento, torna-se difícil encontrar palavras que exprimam, com justeza e elegância, a nossa profunda gratidão àqueles que nos acompanharam neste penoso mas desafiante percurso.

Todas as pessoas que nos acompanharam, algumas quase diariamente, contribuíram, cada uma à sua maneira, para este resultado final. Chegou, agora, o momento de agradecer todo o seu apoio e, sobretudo, a sua amizade e confiança.

Em primeiro lugar, devemos agradecer ao nossos orientadores, o Prof. Doutor Ernesto Castro Leal e o Professor Doutor José Eduardo Franco, pelo acompanhamento dos trabalhos, pelas palavras de incentivo, pelo rigor e pela amizade. Outros professores marcaram, também, a nossa trajetória, em particular aqueles cujos seminários frequentámos e a quem, por isso, devemos a nossa formação. A todos eles deixamos a nossa profunda gratidão.

Ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa agradecemos o acolhimento, o acompanhamento, a confiança e o estímulo. À Prof. Doutora Annabela Rita, ao Luís Pinheiro, ao José Bernardino, ao Florentino Franco, à Maria José Figueiredo, à Vanda Figueiredo, ao Rui Sousa e ao Renato Pistola, deixamos o nosso apreço.

Aos funcionários da Biblioteca Nacional, a nossa segunda casa nos últimos anos, é devida, também, uma palavra de gratidão pela sua disponibilidade.

Para os amigos e familiares torna-se mais difícil encontrar as palavras adequadas. À Paula e à Susana devemos a amizade e o companheirismo manifestados nesta longa e difícil caminhada. Aos nossos avós, pais e irmão agradecemos a força e o apoio incansáveis. Ao Júlio, a paciência, o seu amor incondicional, ter estado sempre à altura. A todos manifestamos o nosso profundo agradecimento, mas também deixamos um sentido pedido de desculpas pela nossa ausência em momentos mais difíceis.

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INTRODUÇÃO

Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor.

(Umberto Eco)1

Compreender já é princípio de cura

(José Augusto Mourão)2

Objeto de estudo e quadro teórico e epistemológico

O pedagogo e antropólogo Francisco Adolfo Coelho afirmou, em texto publicado em 1916 com o título Cultura e analfabetismo, que «é sobretudo por oposição que se forma a ideia de pátria»3. Trata-se de uma formulação que tem vindo a ser aplicada ao processo de

construção identitária por investigadores da história, da literatura e da filosofia, portugueses e estrangeiros, que procuram nos mecanismos de confronto e de diferença as bases da afirmação de uma identidade nacional. Viriato Soromenho-Marques, por exemplo, num ensaio sobre a expressão do antiamericanismo na cultura portuguesa, escreveu que «O Outro funciona sempre como um elemento de confirmação ou recomposição de uma dada ideia sobre aquilo que se é ou pretende ser, sobre a identidade própria»4; José Mattoso concluiu,

em A escrita da história, que na «difusão do sentimento de identidade», se encontra «a noção clara da diferença cultural face ao estrangeiro»5; segundo Helena Buescu, a consciência da

identidade nacional formula-se «em torno de uma reflexão de tipo oposicional, que passa

1 Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011, p. 12.

2 Citado por António Marujo e José Eduardo Franco, «Introdução», in Dança dos demónios: intolerância em

Portugal, Lisboa, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009, p. 15.

3 Adolfo Coelho, Obra Etnográfica, vol. II: Cultura popular e educação, Lisboa, Publicações Dom Quixote,

1993, pp. 160-161.

4 Viriato Soromenho-Marques, «Antiamericanismo. A hostilidade improvável», in António Marujo e José

Eduardo Franco (coord.), op. cit., p. 583. Este volume reúne uma série de ensaios que analisam diferentes correntes «anti-», a sua evolução e receção na cultura portuguesa e os respetivos mecanismo de rejeição: antissemitismo, anti-islamismo, anticlericalismo, antiprotestantismo, antijesuitismo, antimaçonismo, antifeminismo, antiliberalismo, anticomunismo e antiamericanismo.

(18)

pela identificação de uma entidade — pessoal ou colectiva — e pela sua distinção de outras»6; Guilherme d'Oliveira Martins fala-nos da necessidade de compreendermos as

diferenças em ordem a uma melhor consciência da identidade7; segundo Rui Ramos, «todas

as identidades são construídas contra: somos uma coisa porque não somos outra que existe ao lado»8; para Ana Cristina Nogueira da Silva e António Manuel Hespanha, a consciência

nacional é «marcada pelo desencanto e por um confronto com o estrangeiro (com as nações “polidas e ilustradas”) em que Portugal faz figura de um “reino cadaveroso”»9; e François

Hartog recorre à noção de «retórica da alteridade» para explicar a estratégia de afirmação pela diferença: sendo a diferente de b, deixa de existir a e b, para existir somente a e não-a;10 e para Júlia Kristeva o Estrangeiro é «o rosto oculto da nossa identidade»11.

A mesma ideia subjacente a estes enunciados está implícita em projetos de investigação que buscam determinar a perceção da alteridade e os seus efeitos na modelação da identidade. É o caso da investigação realizada no quadro da Linha de Investigação n.º 6 do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, sob a designação «Representações de Portugal nas Literaturas Estrangeiras e Representações do Estrangeiro na Literatura Portuguesa»12, embora mais integrada na área da Literatura Comparada e

desenvolvida de forma assistemática; e o projeto em curso «Dicionário dos Antis: a Cultura Portuguesa em Negativo», enquadrado na Linha de Investigação n.º 7 do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de

6 Helena Carvalhão Buescu, «Construções literárias da identidade nacional no romantismo», in Actas dos 3.os

Cursos Internacionais de Verão de Cascais (8 a 13 de Julho de 1996), Cascais, Câmara Municipal de Cascais,

1997, vol. 4, p. 103.

7 Guilherme d'Oliveira Martins, Portugal — identidade e diferença, Lisboa, Gradiva, 2007, p. 22.

8 José Manuel Fernandes, «Em Portugal o excesso de Iluminismo produziu muitas vezes o obscurantismo»,

[Entrevista a Rui Ramos0, Público, Caderno Ípsilon, 23 de Janeiro de 2010, disponível em

https://www.publico.pt/2010/01/20/culturaipsilon/noticia/quotem-portugal-o-excesso-de-iluminismo-produziu-muitas-vezes-o-obscurantismoquot-249107 (último acesso em 18 de setembro de 2017).

9 Ana Cristina Nogueira da Silva e António Manuel Hespanha, «A identidade nacional», in José Mattoso (dir.),

História de Portugal, vol. IV: O Antigo Regime (1620-1807), coord. de António Manuel Hespanha, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pp. 32-33.

10 Cf. François Hartog, O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro, Belo Horizonte,

Editora UFMG, 2014, pp. 243-289. Esta formulação reflete muito bem a visão dicotómica de Heródoto dos povos, divididos entre os Gregos e os não-Gregos, sendo estes os barbaros.

11 Julia Kristeva, «Réflexions sur l'étranger», disponível em

http://www.kristeva.fr/reflexions-sur-l-etranger.html (último acesso em 23 de setembro de 2017).

12 Como resultado deste projeto, foram publicadas, pela universidade de Aveiro e sob a coordenação de Otília

Pires Martins, as obras: Portugal e o Outro: uma relação assimétrica? (2002), Portugal e o Outro: imagens e

viagens (2004), Portugal e o Outro: textos de hermenêutica intercultural (2005), Portugal e o Outro: imagens, mitos e estereótipos (2006) e Portugal e o Outro: olhares, influências e mediação (2008).

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Lisboa, com o qual se pretende apreender a cultura portuguesa a partir das correntes «anti-», ou seja, a partir do Outro entendido como o negativo do Nós.

Partindo, pois, da hipótese de que a identidade nacional se constrói numa dinâmica de confronto, o nosso estudo patenteia uma perscrutação das representações do Estrangeiro em textos emblemáticos da cultura portuguesa dos séculos XVIII a XX, tendo em consideração que, dependendo do contexto e da sua tipologia (estrangeiro exógeno ou endógeno), o Estrangeiro pode ser encarado como o inimigo a combater e a anular ou o modelo a emular. Embora a análise das representações do Estrangeiro não seja um tema inédito, ainda não existe, que tenhamos conhecimento, um estudo sistematizado no âmbito da História que explore, numa perspetiva de longa duração, a ideografia do Estrangeiro a partir de um conjunto de textos representativos dos contextos históricos coevos, numa tentativa de compreensão das motivações por detrás das formulações míticas e estereotipadas acerca desse Estrangeiro, com vista a uma aproximação à verdade histórica.

Além deste objetivo principal, pretendemos demonstrar como a noção de estrangeiro formulada na e pela cultura portuguesa pode ser interpretada a partir de uma estrutura de ressentimento e do mecanismo do bode expiatório, na senda, respetivamente, das propostas hermenêuticas de Marc Ferro e de René Girard.13 Compreender-se-á que a ambivalência das

representações do «estrangeiro exógeno» (da Inglaterra, da França e da Espanha) foi impulsionadora de ressentimento, explicado quer pela perceção do «estrangeiro» como o «olhar que nos ignora»14 quer pela sensação de desengano estimulada em determinados

momentos de crise, criadores de trauma, quando esse estrangeiro que antes fora objeto de um «olhar fascinado» ameaça a autonomia e a identidade nacionais. Segundo Marc Ferro, o ressentimento manifesta-se em situações de fraqueza e de humilhação e traduz, de uma forma geral, um «complexo de inferioridade».15 Jacinto do Prado Coelho introduz este tema

na cultura portuguesa ao alertar para o facto de o ressentimento tender a «enegrecer a visão das coisas ou exagerar verdades duras»16. Quanto ao mecanismo do bode expiatório, que

tende a eleger como alvo o «estrangeiro endógeno» (porque, estando mais próximo, é mais

13 Para o efeito, serão considerados, de Marc Ferro, O ressentimento na história (Lisboa, Editorial Teorema,

2009) e, de René Girard, Le bouc émissaire (Paris, Éditions Grasset & Fasquelle, 1982). Note-se que Marc Ferro utiliza a noção de ressentimento para explicar revoltas, reações ou revoluções.

14 Eduardo Lourenço, «A “Chaga do Lado” da cultura portuguesa», in Destroços. O gibão do mestre Gil e

outros ensaios, Lisboa, Gradiva, 2004, p. 101.

15 Marc Ferro, op. cit., p. 189.

16 Jacinto do Prado Coelho, Originalidade da cultura portuguesa, Lisboa, Instituto da Língua e Cultura

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suscetível de ser diretamente confrontado), também pode ser considerado uma consequência do ressentimento, enquanto sinal não de uma incapacidade de lidar com um passado que não se esquece, mas de um passado que não se perdoa, uma questão desenvolvida por Paul Ricoeur no epílogo sua obra A memória, a história, o esquecimento, onde introduz da noção de «memória apaziguada»17.

A hipótese hermenêutica desenvolvida por René Girard em obras como La violence et le sacré (1972), Le bouc émissaire (1982) e Les origines de la culture (2004) adequa-se ao processo de vitimização e condenação sacrificial do «estrangeiro endógeno» (a Igreja ultramontana, os judeus e cristãos-novos, a maçonaria e o comunismo). Neste caso, opera-se uma sacralização do inimigo, a quem é atribuída a responsabilidade por um dado momento de crise, através de um ritual que segue as seguintes etapas: 1) caos ou crise; 2) seleção do bode expiatório ao qual é imputada a responsabilidade pelo caos ou crise; 3) apresentação de provas e declaração de culpa; 4) catarse (erradicação do bode expiatório); 5) restabelecimento da ordem e da paz.18 Veremos como cada uma destas etapas se aplica aos

«estrangeiros» que foram eleitos como bodes expiatórios. E concluiremos que o ressentimento e o mecanismo do bode expiatório constituem uma estratégia de defesa de uma ordem que se pretende estabelecida ou a estabelecer.

Para o nosso estudo, revelaram-se de suma importância alguns trabalhos realizados no âmbito dos estudos comparados e da história da cultura, das mentalidades e do imaginário e dos quais a nossa proposta analítica se aproxima, a saber: O «francesismo» na literatura portuguesa (Álvaro Manuel Machado, 1984)19, Dança dos demónios: intolerância em

Portugal (coord. de António Marujo e José Eduardo Franco, 2009)20, O mito dos jesuítas em

Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX) (José Eduardo Franco, 2006)21 e O mito

de Inglaterra. Anglofilia e anglofobia em Portugal (1386-1986) (Luiz Eduardo Oliveira, 2014)22. De facto, encontramos na tese de José Eduardo Franco sobre o mito dos jesuítas a

17 Cf. Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, trad. de Alan François, Campinas, Unicamp, 2007,

pp. 479. Para o autor, o perdão implica uma consciência de igualdade e de reciprocidade, ou seja, uma superação do ressentimento (cf. p. 466).

18 Cf. René Girard, La violence el le sacré, Paris, Édissions Grasset, 1972.

19 Álvaro Manuel Machado, O «francesismo» na literatura portuguesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua

Portuguesa, 1984.

20 António Marujo e José Eduardo Franco (coord.), op. cit.

21 José Eduardo Franco, O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX), 2 vols.,

Lisboa, Gradiva, 2006.

22 Luiz Eduardo Oliveira, O mito de Inglaterra. Anglofilia e anglofobia em Portugal (1386-1986), Lisboa,

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formulação exata daquela que é a nossa proposta de os discursos sobre o estrangeiro e a construção e afirmação da identidade nacional:

A história da afirmação da identidade, da autonomia, da expansão e das tentativas de regeneração das instituições e do tecido sócio-económico da nação está marcada pelo desenvolvimento de móbiles míticos e utópicos que povoaram, nas suas diferentes épocas históricas, o imaginário do povo. [...] estes mitos positivos contrastam com o engendramento paralelo de mitos negativos de feição «anti-», fomentados e utilizados para efeitos de monopolização e instrumentalização colectiva, em ordem a, alegadamente, preservar a autonomia do reino ou garantir a sua regeneração ou, ainda, a promover uma determinada ideia de renovação social e de progresso do país.23

O debate e a produção científica sobre o tema da alteridade tem sido profuso, apesar de recente, e decorrente de uma necessidade de compreensão do Outro, do que é diferente, em ordem a uma eliminação de tensões ou atritos, a uma consciencialização da diversidade ou a um fim inclusivo. Tem sido realizado, sobretudo, no âmbito da Literatura Comparada e da Filosofia, sendo, num e noutro casos, privilegiadas as leituras localizadas, aplicadas quer num único autor, quer numa única obra.24 Foi, no entanto, da Literatura Comparada que

retirámos a noção de imagem do estrangeiro (imagologia) como imagem do Outro, para aplicá-la à História:

23 José Eduardo Franco, op. cit., pp. 23-24.

24 Além da vasta produção bibliográfica no estrangeiro, com especial incidência da França, onde os estudos

comparatistas têm tido bastante desenvolvimento, existe em Portugal uma produção científica considerável e em crescimento sobre o tema da alteridade. Apresentamos alguns títulos que exemplificam este fenómeno e, em simultâneo, a natureza assistemática desta produção: António Lourenço, Identidade e alteridade em

Fernando Pessoa e António Machado: Álvaro de Campos e Juan de Mairena (1995); Ana Marques, Dimensões de identidade e alteridade na obra narrativa de Ilse Losa (tese de mestrado, 1999); Maria Graciete Besse, Os limites da alteridade na ficção de Olga Gonçalves (2000); Ana Luísa Saraiva, «Outside, looking in»: a dinâmica da alteridade em Richard Wright (tese de mestrado, 2002); Celina Martins, O entrelaçar das vozes mestiças: análise das poéticas da alteridade na ficção de Édouard Glissant e Mia Couto (tese de doutoramento,

2003); Ana Lúcia Vieira, A alteridade na literatura de viagens quinhentistas: olhares e escritas de Jean de

Léry e de Fernão Cardim sobre o índio brasileiro (tese de mestrado, 2004); Fernando Gomes, Diálogos com a alteridade nas obras literárias de Albert Camus e de Paul Bowles (tese de doutoramento, 2010); Ana Maria

Soares da Costa, Da representação do espaço ao diálogo com a alteridade: uma leitura de Joseph Conrad e

Ferreira de Castro (tese de doutoramento, 2013). Quanto á produção na área da Filosofia, têm-se privilegiado

os estudos sobre a alteridade à luz do pensamento de Lévinas, Ricoeur, Foucault, Husserl e Espinosa: Joaquim de Sousa Teixeira, Ipseidade e alteridade: uma leitura da obra de Paul Ricoeur (tese de doutoramento, 1993); Maria Imaculada Pacheco, Ser e alteridade: a «Evasão» do ser na filosofia de Emmanuel Lévinas (tese de mestrado, 1996); Maria da Conceição Soares, A alteridade e o feminino em Emmanuel Lévinas (tese de mestrado, 1997); José Rebelo, Sujeito, sentido e alteridade: Paul Ricoeur e Michel Foucault (tese de mestrado, 2000); Lisete Rodrigues, Imanência e alteridade na teoria ética de Espinosa (tese de mestrado, 2007).

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[...] toda e qualquer imagem procede de uma tomada de consciência, por menor que ela seja; procede de um «Eu» em relação a um «Outro», de um «aqui» em relação a um «algures». A imagem é, portanto, o resultado de uma distância significativa entre duas realidades culturais. Ou melhor: a imagem é a representação de uma realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo que a elaboram (ou que a partilham ou que propagam) revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situam. [...] Assim, o estudo da imagem leva à determinação das linhas de força que regem a cultura, quer de um escritor, quer de um grupo social, quer de um país, nos seus representantes letrados: o estudo das imagens é, consequentemente, indissociável daquilo a que chamamos história das mentalidades.25

A partir desta enunciação geral do tema e dos problemas, compreende-se que o quadro epistemológico que moldura este estudo cruze diferentes áreas do domínio da História, em particular a História Política, a História Cultural, a História do Imaginário e a História das Mentalidades. Entendendo a cultura como «o aspecto inteligível da História»26,

estabelece-se uma aproximação entre a História e a Cultura, intermediada pela noção de imaginário mítico. As representações do Estrangeiro tendem a criar, de forma consciente ou inconsciente, uma «realidade imaginada», ou seja, partindo de factos reais, constroem uma mitologia que acaba por deturpar a realidade original, criando um mito. Neste sentido, o mito pode ser interpretado como um transvio de um facto histórico.27 No que diz respeito ao

Estrangeiro, este processo de distorção ocorre em duas dinâmicas: uma, a que Raul Girardet chama «dialética dos contrários»28, sobrevém quando, dependendo o contexto, um mesmo

objeto é sujeito a um processo de mitificação negativa ou luminosa — o que se liga, por sua vez, ao ressentimento —; a outra está associada ao fenómeno da conspiração, com recurso a mitos do complot sustentados num sistema explicativo unilateral que Léon Poliakov denomina de «causalidade diabólica»29 — neste caso, o objeto mitificado é, também, sujeito

a «sacrifícios expiacionais»30. Em ambos os casos, o mito, enquanto «sistema de

25 Álvaro Manuel Machado, Daniel-Henri Pageaux, Da literatura comparada à teoria da literatura, 2.ª ed.,

Lisboa, Presença, col. Fundamentos, 2001, pp. 42.

26 Expressão de Arnold Toynbee, citada por António Manuel Bettencourt Machado Pires, A ideia de

decadência na Geração de 70, Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, 1980, p. 9.

27 Cf. Raul Girardet, Mitos e mitologia políticas, trad. de Maria Lúcia Machado, São Paulo, Companhia das

Letras, 1987, pp. 17-18; José Eduardo Franco, O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos

XVI a XX), vol. II: Do Marquês de Pombal ao século XX, ed. cit., p. 283.

28 Raul Girardet, op. cit., pp. 15-16.

29 Cf. Léon Poliakov, A causalidade diabólica, 2 vols., São Paulo, Editora Pespectiva, 1991-1992.

30 Cf. José Eduardo Franco, op. cit., p. 287; René Girard, Le bouc émissaire, ed. cit.; e Karl Popper, La société

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comunicação»31, transmite uma determinada mensagem que, quando eficaz (quando passa

por verdadeira), é codificada na cultura e fica inscrita na memória coletiva, cabendo ao historiador a missão de a desmitificar.

Retomando a expressão de José Augusto Mourão colocada em epígrafe a esta introdução, «compreender já é princípio de cura», pretende-se, à luz do princípio da isenção, com distanciamento crítico e evitando a «história tribunal», segundo a lição de Lucien Febvre e de Marc Bloch32, apreender o fenómeno das representações de elementos

«estranhos» à identidade nacional e a relação imbricada entre imaginário e estereotipia e o seu entrosamento na cultura portuguesa, gerando entropias e tensões que a História tem o dever de apaziguar.

A noção de estrangeiro

A noção de «estrangeiro» adotada decorre do seu sentido etimológico, da sua dupla origem semântica em língua latina e da sua relação com a conceção herodotiana de «bárbaro».

O étimo «estrangeiro» deriva do latim «extraneus», que significa «de fora», «estranho», «estrangeiro».33 Designa, portanto, são apenas o que não é nacional, mas o que

é diferente. Esta dupla aceção é mais facilmente apreendida nos vocábulos franceses «étrange» («estranho») e «étranger» («estrangeiro») e no inglês «stranger» («estranho» e «estrangeiro»). Mas encontramo-la, também, no duplo sentido do vocábulo latino «hospes» («hóspede» e «estrangeiro»), que, por sua vez, segundo os linguistas Aldred Ernout e Alfred Meillet, deriva de «hostis», cujo sentido original de «anfitrião que acolhe o estrangeiro» evoluiu para o de «inimigo» (e que encontramos, por exemplo, na palavra portuguesa «hostil»).34 Segundo Cícero, a palavra «inimigo» significava, para os antigos romanos, o que

31 Cf. Roland Barthes, Mitologias, trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 2007, p. 261.

32 Cf. Marc Bloch, Apologie pour l’histoire ou métier d’historien, 6.ª ed., Paris, Librairie Armand Colin,

Cahiers des Annales, 1967, pp. 69-72; e Lucien Febvre, Combats pour l’Histoire, Paris, Librairie Armand Colin, Collection Économies-Sociétés-Civilizations, 1953, p. 109.

33 «Extraneus, a, um», in Dicionário de Latim-Português, 3.ª ed., Porto, Porto Editora, 2008, p. 274a.

34 «Le mot [hospes] exprrime le sens anciennement exprimé par hostis»; «Le mot [hostis] ne se retrouve ailleurs

qu'avec le sens de «hôte» [...], d'où est sortie la notion de «ennemi» dans des conditions dont le détail précis n'ést pas attesté [...].» (Alfred Ernout e Antoine Meillet, Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine.

(24)

no seu tempo correspondia a «estrangeiro»35. Esta sinonímia foi recuperada por Rousseau,

no Contrato Social, ao afirmar que «Os termos estrangeiro e inimigo foram durante muito tempo sinónimos»36

.

Por outro lado, a nossa noção de «estrangeiro» também corresponde a uma evolução semântica com origem no conceito grego de barbaros. Heródoto, no prólogo do Livro 1 das suas Histórias, estabelece uma visão dicotómica da humanidade, dividida entre Gregos e não-Gregos, sendo estes os barbaroi. A partir desta obra clássica da literatura grega, compreendemos que os Gregos tinham uma perceção muito clara de que um conjunto de características comuns os distinguiam dos povos não-Gregos e o seu sentido de unidade verifica-se pelo vincar desses mesmos traços distintivos. Quando se referem aos bárbaros, os Gregos reportam-se não só aos povos primitivos e rústicos, mas também a povos civilizados, como os Persas, os Egípcios e mesmo os Troianos.

O conceito de «bárbaro» foi sofrendo uma evolução ao longo da história grega. O grego barbaros é geralmente aceite como uma formação onomatopaica que imita a maneira de falar das crianças ou qualquer som ininteligível («bar-bar»).37 A partir daqui, o sentido

de «barbaros» evolui para designar aquele que tem uma linguagem estranha, incompreensível. Este aspeto reveste-se de extrema importância, uma vez que a unidade grega reconhecia-se pela língua comum, sendo esta um fator determinante na distinção entre Gregos e não-Gregos. Se a língua bárbara (a dos não-Gregos) era ininteligível, é porque era desprovida de sentido, de organização, portanto, de logos (entendido enquanto discurso organizado, ou seja, com na sua dupla aceção de fala e de raciocínio). José Ribeiro Ferreira explica esta analogia:

[...] há uma estreita associação, no espírito grego, entre a fala inteligível e o raciocínio. Para os Helenos, o homem é um animal que tem logos. Visto não dissociarem o falar corretamente do raciocinar, como sugere a ambiguidade de sentido da palavra logos, o

35 Cícero, De Officiis, I, XII: «Hostis enim apud majores nostros dicebatur, quem nunc peregrinum dicimus»

(pois inimigo significava para os nossos ancestrais o que agora chamamos estrangeiro — tradução nossa). Para a citação em latim, foi seguido o texto estabelecido por Michael Winterbottom (Oxford, Clarendon Press, 1994).

36 Rousseau, O contrato social, trad. de Manuel João Pires, intr. e notas de João Lopes Alves, Lisboa, Círculo

de Leitores, Temas e Debates, 2008, p. 161.

37 Cf. Pierre Chantraine, barbaro~, in Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Histoire des

(25)

Bárbaro não consegue alcançar o princípio do ordenamento, quer na sua vida, quer no governo e instituições, quer ainda no universo.38

Desta relação deriva o sentido mais negativo de «barbaros», também impulsionado pela experiência traumática das invasões persas. No contexto das guerras medo-persas, os Gregos uniram-se contra um inimigo comum em defesa da liberdade e unidade gregas. Segundo Pierre Chantraine, foi sobretudo a partir das batalhas de Maratona e Salamina que «bárbaro» adquiriu o sentido de «brutal» e «rude».39 Assim, é a partir do séc. V a. C. que a oposição

entre Gregos e bárbaros perde o seu sentido linguístico, passando a distinguir os que têm acesso à cultura helénica e os que permanecem fora dela, sendo os últimos considerados, por isso, inferiores.40

A noção de «estrangeiro» adotada no nosso estudo é devedora, portanto, do sentido primitivo do vocábulo latino «hostis», consagrado em «hospes», ou seja, é «o estrangeiro que é acolhido» e com o qual mantemos boas relações; e, em simultâneo, do significado mais tarde vulgarizado de «inimigo». Esta dupla e dicotómica aceção está muito vincada na primeira parte da nossa tese, que trata das representações ambivalentes do «estrangeiro exógeno», ou seja, da Inglaterra, da França e da Espanha, e do conceito pouco consensual de «estrangeirados». A relação entre «estrangeiro» e «bárbaro», por outro lado, está presente na segunda parte, que explora a imagem estereotipada do «estrangeiro endógeno» concebida à luz de mitos de complot e com recurso a processos de deformação. Neste caso, a Igreja ultramontana, os judeus e os cristãos-novos, a maçonaria e o comunismo, entendidos como ameaças à unidade nacional, representam na cultura portuguesa o que os barbaroi significavam na cultura helénica: são o Outro que, para efeitos de salvação nacional, tem de ser aniquilado.

O tema da identidade nacional

A reflexão sobre a identidade nacional tem sido objeto de estudo nas últimas décadas. Para tal, contribuiu o estreitamento do seu território com a independência das colónias

38 José Ribeiro Ferreira, Hélade e helenos: génese e construção de um conceito, 2.ª ed., Coimbra, Instituto

Nacional de Investigação Científica, 1992, p. 221.

39 Cf. Pierre Chantraine, op. cit., p. 165. 40 José Ribeiro Ferreira, op. cit., p. 222.

(26)

africanas, a nova ordem política iniciada pela Revolução de Abril e integração de Portugal na União Europeia em 1986. Verificou-se, neste período e nos anos subsequente, a publicação de um verdadeiro manancial de obras sobre este tema, que manifestam uma preocupação com questões como: «donde vimos?», «o que somos?», «qual o nosso papel histórico?», «para onde vamos?».

A Onésimo Teotónio Almeida41 devemos uma exaustiva relação das obras publicadas

ou reeditadas nos primeiros anos do período democrático sobre o assunto, de que registamos algumas das mais conhecidas (e acrescentamos outras): de Eduardo Lourenço, Situação africana e consciência nacional (1976)42; de Victor de Sá, Repensar Portugal (1977)43; de

Jacinto do Prado Coelho, A originalidade da Literatura Portuguesa (1977)44; de António

Quadros, Arte de continuar a ser português (1978)45; de Teixeira de Pascoaes, A arte de ser

português (reed. 1978)46; de Vitorino Magalhães Godinho, Um projeto para Portugal

(1979)47; de Manuel Antunes, Repensar Portugal (1979)48; de Fernando Pessoa, Sobre

Portugal. Introdução ao problema nacional (org. de Joel Serrão, 1979)49; de Vasco Pulido

Valente, O país das maravilhas (1979)50; de António José Saraiva, A Cultura em Portugal

(1981)51; de novo de Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade: psicanálise mítica do

destino português (1982)52; Camões e a identidade nacional (1983)53; de Jorge de Sena, O

reino da estupidez — II (1984)54; de Rui Aragão, Portugal — o desafio nacionalista.

Psicologia e identidade nacionais (1984)55; de José Mattoso, Identidade nacional (1985)56;

novamente de António Quadros, Portugal, razão e mistério (1986)57 e A ideia de Portugal

41 Onésimo Teotónio Almeida, A obsessão da portugalidade, Lisboa, Quetzal, 2017. 42 Eduardo Lourenço, Situação africana e consciência nacional, Lisboa, Génese, 1976. 43 Victor de Sá, Repensar Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1977.

44 Jacinto do Prado Coelho, op. cit.

45 António Quadros, Arte de continuar a ser português, Lisboa, Templo, 1978. 46 Teixeira de Pascoaes, A arte de ser português, Lisboa, Roger Delrauz, 1978.

47 Vitorino Magalhães Godinho, Um projeto para Portugal, Mem-Martins, Publicações Europa-América,

1979.

48 Manuel Antunes, Repensar Portugal, Lisboa, Multinova,1979.

49 Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, org. de Joel Serrão, Lisboa, Ática,

1979.

50 Vasco Pulido Valente, O país das maravilhas, Lisboa, Intervenção, 1979. 51 António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Lisboa, Bertrand, 1981.

52 Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português, Lisboa, Publicações

Dom Quixote, 1978.

53 AA.VV., Camões e a identidade nacional, Lisboa, INCM, 1983. 54 Jorge de Sena, O reino da estupidez — II, Lisboa, Edições 70, 1984.

55 Rui Aragão, Portugal — o desafio nacionalista. Psicologia e identidade nacionais, Lisboa, Teorema, 1984. 56 José Mattoso, Identidade nacional, Lisboa, Estampa, 1985.

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na Literatura Portuguesa dos últimos cem anos (1989)58; publicada pelo Instituto Dom João

de Castro, Cumprir Portugal: a identidade portuguesa (1988)59; ainda de Eduardo Lourenço,

Nós e a Europa ou As duas razões (1988)60; de Natália Correia, Somos todos hispanos

(1988)61; de Amadeu Carvalho Homem, Identidade nacional e contemporaneidade (1995)62;

de Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto, A memória da nação (1991)63. Mais

recentemente, as obras de Eduardo Lourenço, Portugal como destino, seguido de Mitologia da saudade (1999)64 e A nau de Ícaro, seguido de Imagem e miragem da Lusofonia e

Portuguesa (1999)65; de Guilherme d'Oliveira Martins, Portugal: identidade e diferença

(2007)66; de João Medina, Portuguesismos (2008)67; de Sérgio Campos Matos, Consciência

histórica e nacionalismo (2008)68; de Miguel Real, A morte de Portugal (2007)69; de Manuel

Clemente, Portugal e os portugueses (2008)70; de Boaventura Sousa Santos, Portugal:

ensaio contra a autoflagelação (2011)71; de José Manuel Sobral, Portugal, Portugueses:

uma identidade nacional (2012)72. Esta amostragem significativa de apenas uma parte da

produção bibliográfica sobre o tema em apreço é bem reveladora do lugar central que esta questão tem ocupado em áreas diversas das Ciências Sociais.

Não é nosso propósito problematizar o conceito de identidade nacional com vista à sua definição, mas tão-só salientar alguns aspetos que consideramos relevantes no âmbito da nossa investigação. Um desses aspetos é a conceção da memória e da consciência nacional como elementos construtivos da identidade nacional; outro aspecto é a perceção de pertença a uma comunidade em detrimento de outra — o que implica uma forma de consciência; outro

58 António Quadros, A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos cem anos, Lisboa, Fundação

Lusíada, 1989.

59 AA.VV., Cumprir Portugal: a identidade portuguesa, Lisboa, Instituto Dom João de Castro, 1988. 60 Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou As duas razões, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988. 61 Natália Correia, Somos todos hispanos, Lisboa, O Jornal, 1988.

62 Amadeu Carvalho Homem, Identidade nacional e contemporaneidade, Coimbra, Faculdade de Letras, 1995. 63 Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto, A memória da nação, Lisboa, Sá da Costa, 1991.

64 Eduardo Lourenço, Portugal como destino, seguido de Mitologia da saudade, Lisboa, Gradiva, 1999. 65 Eduardo Lourenço, A nau de Ícaro, seguido de Imagem e miragem da Lusofonia e Portuguesa, Lisboa,

Gradiva, 1999.

66 Guilherme d'Oliveira Martins, op. cit.

67 João Medina, Portuguesismo(s): acerca da identidade nacional, Lisboa, Centro de História da Universidade

de Lisboa, 2008.

68 Sérgio Campos Matos, Consciência histórica e nacionalismo (Portugal — séculos XIX e XX), Lisboa, Livros

Horizonte, 2008.

69 Miguel Real: A morte de Portugal, Porto, Campo das Letras, 2007.

70 Manuel Clemente, Portugal e os portugueses, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.

71 Boaventura Sousa Santos, Portugal: ensaio contra a autoflagelação, Coimbra, Almedina, 2011.

72 José Manuel Sobral, Portugal, portugueses: uma identidade nacional, Lisboa, Fundação Francisco Manuel

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ainda é a expressão e a fixação dessa memória e consciência nacionais, com fim à fundamentação da identidade nacional; um quarto aspeto é a já referida noção de diferença; por fim, um último aspeto prende-se com a relação entre a identidade nacional e as noções de Estado e de Nação.73 Ao concebermos a identidade nacional como pertença a um

determinado espaço, coloca-se a questão de saber se esse espaço de identifica com a ideia de Estado ou com a de Nação, ou seja, se a noção de identidade nacional se deve ao Estado ou decorre à sua margem. De outra forma, qual tem sido o papel do Estado na construção identitária se, de facto, esse papel existe. Concordamos com Sérgio Campos Matos quando insiste «na acção cultural que desempenharam as elites intelectuais nesse processo», sem negar, contudo, a função do Estado «no processo de nacionalização da sociedade»74. Este

processo interventivo do Estado tende a criar uma identidade mais artificial, que é imposta por razões essencialmente político-ideológicas. No entanto, o uso que faz da memória — através, por exemplo, de comemorações históricas ou de propaganda quer para fins encomiásticos, quer detratores — acaba por criar estruturas identitárias que são assimiladas pela cultura. Esta construção verifica-se nos processos de identificação de um inimigo coletivo quando entendido como unidade concorrente do Estado — é o caso do antiultramontanismo, do antijudaísmo, do antimaçonismo e do anticomunismo. O papel das elites intelectuais como agentes portadores de memória, pelo contrário, parece dotar a identidade nacional de uma maior autenticidade. Apesar de tais elites não estarem absolutamente apartadas das questões políticas e ideológicas, é o contexto histórico que assume a função mobilizadora dessa construção identitária. Os casos do anticastelhanismo e do anti-iberismo, do antinapoleanismo e do antibritanicismo, gerados em momentos de crise, são paradigmáticos. Como refere Ernesto Castro Leal, «As ameaças à autonomia do Estado-nação português, com as Invasões Francesas, o iberismo, a crise do Ultimato inglês, o “perigo espanhol” após a Revolução Republicana, a participação na guerra de 1914-1918 e os contextos da Guerra Civil espanhola e da guerra de 1939-1945, contribuíram para a mobilização política, a nacionalização das massas e a complexificação do nacionalismo português nas suas múltiplas variantes.»75

73 Nesta matéria, a generalidade dos estudos que mais recentemente têm tratado do tema da identidade nacional

é devedora das conceções de Ernest Gellner (Encounters with Nationalism, 1998), de Antony D. Smith (Nationalism, 2001) e também de José Matoso (A identidade nacional, 1998).

74 Sérgio Campos Matos, op. cit., p. 9.

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Princípios metodológicos a) Organização temática

A tese está estruturada em duas partes, estando cada uma dividida em quatro capítulos correspondentes, cada, a um determinado estrangeiro. A primeira parte, com o tema «O estrangeiro exógeno: imagens dimórficas de uma Europa sentimental», reúne os capítulos I. Os «estrangeirados»: uma nobre utopia; II. Entre a aliança e a desavença: a Inglaterra; III. Entre o ressentimento e a sedução: a França; e IV. Fraternidade e desconfiança: a Espanha. A segunda parte, com o tema «O estrangeiro endógeno ou o bode expiatório», está subdividida nos capítulos V. A Igreja ultramontana: do regalismo ao laicismo; VI. «Homens de nação»: judeus e cristãos-novos; VII. A ameaça do desconhecido: a maçonaria; e VIII. O «perigo vermelho»: o comunista.

Na primeira parte, traçamos as representações ambivalentes do estrangeiro europeu. Na impossibilidade de abarcar toda a Europa, definiu-se como critério de seleção considerar os povos com os quais Portugal mantém afinidades políticas, culturais ou comerciais mais antigas e permanentes e com os quais gerou uma relação contraditória, assente em assimetrias e geradora de ressentimento: a Inglaterra, a França e a Espanha. Foi o facto de as imagens destes países na cultura portuguesa traduzirem sentimentos ambivalentes de fascínio/amizade e repulsa/ódio que nos levou a considerar a noção de «Europa sentimental»76. Por outro lado, atendendo à necessidade de delimitar as possibilidades de

leitura, adotámos uma organização metatemática, definindo para cada um dos capítulos um tema central que fundamenta as representações dimórficas e que, em simultâneo, explica a opção pela sequência Inglaterra-França-Espanha em detrimento de outra. Assim, o capítulo sobre a Inglaterra terá como eixo temático a antiga aliança anglolusa; o da França, o tema das invasões (napoleónicas, das ideias e da cultura); quanto ao capítulo sobre a Espanha, o foco é a chamada questão ibérica. Afasta-se desta lógica o tema tratado no primeiro capítulo, sobre os «estrangeirados», no qual ensaiamos uma interpretação do conceito a partir da sua formulação por António Sérgio sem atender às suas representações no corpus documental

76 A noção de «Europa sentimental» foi tomada do título de um texto de António Pedro Barbas Homem,

publicado em José Eduardo Franco et alii (coord.), Repensar a Europa. Europa de longe, Europa de perto, Lisboa, Gradiva, 2013. O autor usou a expressão para se referir à «ideia de comunidade baseada na amizade entre os povos» (p. 306), por sua vez influenciado pela noção de «geografia sentimental da Europa» de Gustav Husserl.

(30)

definido. No entanto, a sua inclusão nesta primeira parte compreende-se pelo próprio significado ambivalente do termo «estrangeirado», definido por alguns com uma carga semântica negativa e, por outros, de forma valorativa, e pelo facto de os «estrangeirados» definirem uma elite intelectual77 que, apesar de naturalmente portuguesa, viveu e atuou nos

principais centro de cultura europeus.

A segunda parte ocupa-se das representações de grupos ou instituições entendidos como estrangeiros porque integrados numa organização internacionalista e atuando «infiltrados» na sociedade portuguesa — ou seja, o que António Sardinha e Mário Saa chamam «estrangeiros do interior» 78 . Enunciados numa perspetiva «anti-»

(antiultramontanismo, antijudaísmo, antimaçonismo e anticomunismo), são apreendidos como o inimigo, como corruptores da sociedade e da moral e como uma ameaça à autonomia nacional e são identificados como o bode expiatório dos problemas que assaltam Portugal. A seleção destes «estrangeiros do interior» em detrimento de outros, como, por exemplo, os muçulmanos ou os protestantes, obedeceu ao critério da sua representatividade na cultura portuguesa no período em estudo e atendeu à dimensão catártica dos movimentos de oposição gerados contra, ou seja, à sua relação com as interpretações decadentistas e com as respetivas soluções reformistas ou regeneradoras. De facto, em momento específicos da história de Portugal, a Igreja Romana — representada nas sua ordens religiosas, em particular na Companhia de Jesus —, os judeus, os maçons e os comunistas foram acusados e publicamente condenados pela decadência nacional, com recurso a uma campanha difamatória que visava a sua erradicação. Por uma questão de economia, será dada primazia aos discursos que refletem a sua dimensão estrangeira e a ameaça que representam para os sucessivos projetos de unidade nacional.

Em ambos os casos, a estruturação de cada capítulo obedecerá ao método diacrónico, complementado com uma análise sincrónica das fontes discursivas. Dependendo do estrangeiro representado, será dada primazia a determinados contextos que suscitaram uma

77 Aplicamos a noção de «intelectual» no contexto do século XVIII com consciência de que a palavra

«intelectual» apenas surge no século XIX. Falar de intelectuais do século XVIII pode parecer um anacronismo, mas cremos que o seu uso, para substituir «escritor» ou «filósofo», não oferece dificuldades interpretativas. Sobre esta matéria, veja-se Maria Helena Carvalho dos Santos, «Poder, intelectuais e contra-poder», in Maria Helena Carvalho dos Santos (coord.), Pombal revisitado. Comunicações ao Colóquio Internacional

organizado pela Comissão das Comemorações do 2.º Centenário da Morte do Marquês de Pombal, vol. I, Lisboa, Editorial Estampa, 1984, p. 124.

78 Cf. António Sardinha, O valor da raça. Introdução a uma campanha nacional, Lisboa, Almeida, Miranda

(31)

produção literária significativa e mitificante, coincidentes, na sua maioria, com momentos de crise nacional ou de afirmação nacionalista. Compreender-se-á que a projeção da imagem do estrangeiro, exógeno ou endógeno, admirado ou odiado, é sempre suscetível de reproduzir uma deformação, uma vez que, conforme assinala Luís de Sousa Rebelo, a alteridade é «um fenómeno de refracção, comandado por sistemas de avaliação interna, cultural, estética, afectiva, que tem os seus pontos cegos e retém zonas de opacidade.»79

b) Seleção do corpus

Lucien Fébvre escreveu, em Combats por l'histoire, que «tout l'histoire est choix»80.

Efetivamente, na elaboração de um estudo científico algumas escolas se impõem, com a consciência de que todas a opções metodológicas são discutíveis. É o caso de um corpus literário assim como das balizas cronológicas.

No caso de uma prospeção das representações do Estrangeiro na cultura portuguesa num período de longa duração, importa definir um corpus de textos e autores que assente em determinadas variáveis: deve, em primeiro lugar, ser representativo da cultura portuguesa, logo, constituído por textos impressos escritos em língua portuguesa e reconhecidos pela sua relevância cultural, e, em simultâneo, de cada período histórico objeto de análise contextual; os autores devem ser admitidos como parte de uma elite intelectual, política e socialmente ativa e que tenha contribuído para a identificação dos problemas de Portugal e pensado meios de resolução; os textos devem evidenciar uma consciência identitária em oposição a um determinado estrangeiro, traçando dele uma imagem impactante que contribua de forma eficaz para a sua mitificação e radicação na mentalidade. Como suporte para a determinação do corpus, socorremo-nos de obras como Portugal como Problema, de Pedro Calafate (2006)81 , O Pensamento Português Contemporâneo —

1890-2010: O labirinto da Razão e a fome de Deus, Miguel Real (2011)82, A Europa segundo

Portugal: ideias de Europa na Cultura Portuguesa, século a século, de José Eduardo Franco e Pedro Calafate (2012)83 e Portugal tolerante. Um milénio de convivência no espaço

79 Luís de Sousa Rebelo, «Prefácio», in Otília Pires Martins (coord.), Portugal e o Outro: uma relação

assimétrica?, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2002p. 12.

80 Lucien Febvre, op. cit., p. 7.

81 Pedro Calafate, Portugal como problema, vols. I-IV,Lisboa, Fundação Luso-Americana, Público, 2006. 82 MiguelReal, O Pensamento Português Contemporâneo — 1890-2010: O labirinto da Razão e a fome de

Deus, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012.

83 José Eduardo Franco e Pedro Calafate, A Europa segundo Portugal: ideias de Europa na cultura portuguesa,

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português. Textos para o diálogo intercultural, com seleção de textos e introdução de Paulo Mendes Pinto e José Eduardo Franco (2014)84. Atendendo a estas condições orientadoras, as

representações do estrangeiro serão colhidas de um corpus primário que, devido à sua extensão, não reproduzimos neste textos introdutório, podendo ser consultado na bibliografia final, na secção de fontes primárias / corpus textual.

Dado o largo espectro temporal e a própria abrangência temática, foi dada primazia a textos de prosa política e de divulgação histórica e ideológica, excluindo do corpus principal textos publicados na imprensa periódica (exceto quando coligidos pelos autores em volume autónimo para publicação, como sucedeu com os opúsculos de Alexandre Herculano) e obras literárias de ficção. No entanto, em diversas ocasiões, em ordem a demonstrar a amplitude de determinadas representações, nomeadamente através de vocabulário mais expressivo, este corpus será complementado com um conjunto de textos que definimos na bibliografia final como «corpus complementar» e que é constituído por sermões, poesia, artigos de imprensa, legislação, manifestos, e outros textos de divulgação imediata e destinados a um público mais alargado.

Para a citação ou simples referenciação bibliográfica destas fontes documentais, seguimos, sempre que a consulta foi possível, as suas primeiras edições ou, em alternativa, as edições mais próximas daquelas. Decidimos manter a ortografia original nas citações e nos títulos das obras nas referências em nota de rodapé e na bibliografia final, procedendo, todavia, a uma normalização do uso de maiúsculas e minúsculas em início de palavras nos bibliónimos e à atualização da ortografia na indicação dos locais de edição e das casas editoras ou impressoras.

c) Balizas cronológicas

O campo cronológico principal está balizado pelos anos de 1750 e 1950, datas simbólicas que identificam dois períodos da história portuguesa com uma similitude muito específica porque marcados, ambos, por um projeto de unidade nacional complementado por um projeto de integração europeia. O ano de 1750 regista o início do governo de Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro omnipotente de D. José, cuja ação política obedecia ao duplo desígnio de reforçar a autonomia política, religiosa, económica de Portugal e de

84 José Eduardo Franco e Paulo Mendes Pinto (oord.), Portugal tolerante. Um milénio de convivência no

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europeizar o país.85 Ao mesmo tempo, marca uma viragem na história de Portugal pautada,

conforme Avelino de Freitas Meneses, por um «potencial de transformação lento mas irreversível [...] que fragiliza as bases da sociedade tradicional, determinando a agonia do Antigo Regime. 86 O chamado período pombalino é também, segundo Luís Reis Torgal, «um

dos períodos mais responsáveis pela interpretação ideológica da história»87, o mesmo se

podendo dizer o período salazarista. A fronteira de 1950, embora não seja tão concreta, define simbolicamente o momento em que Portugal, governado por um regime nacionalista, autoritário e antidemocrático, inicia a sua marcha para se religar à Europa, na sequência da Segunda Grande Guerra. Efetivamente, em 4 de abril 1949, Portugal esteve entre os países que assinaram o Tratado do Atlântico Norte, donde nasceu a NATO. A sua integração nesta instituição como membro fundador significou a afirmação portuguesa na cena internacional.88

Estas não são, contudo, demarcações rígidas. Na verdade, embora não avancemos para a segunda metade do século XX, em diversos momentos sentimos a necessidade de recuar a séculos anterior ao XVIII, em ordem a descrever acontecimentos significativos que fundamentarão os discursos sobre determinados estrangeiros, o que sucederá, de forma mais vincada, nos capítulos que tecem as representações da Inglaterra, da Igreja Ultramontana e dos Judeus e Cristãos-Novos, por razões que serão aduzidas aquando da explicitação da organização temática seguida. A razão por que se optou por uma espessura temporal de longa duração prende-se com os próprios objetivos que norteiam esta tese. Segundo Fernand Braudel «[é] a única linguagem que liga a história ao presente, convertendo-o em um todo indissolúvel»89. É também a perspetiva que melhor se adequa à história das mentalidades.

De facto, somente a exegese das representações do estrangeiro na longa duração permite compreender a eficácia e a ação mobilizadora de certos mitos engendrados sobre

85 Cf. Manuel Antunes, «O Marquês de Pombal e os jesuítas», in AA.VV., Como interpretar Pombal? No

bicentenário da sua morte, Lisboa, Edições Brotéria, Porto, Livraria A.I., Braga, Editorial A.O, 1983, p. 127.

86 Avelino de Freitas de Meneses, «Introdução», in Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (dir.), Nova história

de Portugal, vol. VII: Portugal, da paz da Restauração ao ouro do Brasil, coord. de Avelino de Freitas de Meneses, Lisboa, Presença, 2001, pp. 9-10.

87 Luís Reis Torgal, História e ideologia, Coimbra, Livraria Minerva, 1989, p. 46.

88 Sobre a integração europeia de Portugal depois da Segunda Guerra Mundial, veja-se António Costa Pinto e

Nuno Severiano Teixeira, «Portugal e a integração europeia (1945-1974)», in António Costa Pinto, Nuno Severiano Teixeira (org.), A Europa do Sul e a construção da União Europeia, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 17-43.

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determinado estrangeiro, a sua evolução ao longo dos tempos e a forma como foram instrumentalizados em diferentes contextos.

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ABREVIATURAS E SIGLAS

anot. = anotação

ANTT = Arquivo Nacional da Torre do Tombo

apres. = apresentação

BNP = Biblioteca Nacional de Portugal c. = cerca de cân. = cânone cap. = capítulo cf. = confrontar col. = coleção comp. = compilação coord. = coordenação cx. = caixa dir. = direção doc. = documento ed. = edição / editor ed. cit. = edição citada fasc. = fascículo fl. = fólio fls. = fólios

INCM = Imprensa Nacional-Casa da Moeda intr. = introdução liv. = livro mç. = maço org. = organização p. = página pp. = páginas pref. = prefácio publ. = publicação reimp. = reimpressão sel. = seleção sept. = separata s. d. = sem data s. n. = sem nome s. l. = sem lugar segs. = seguintes t. = tomo trans. = transcrição ts. = tomos tít. = título trad. = trad vol. = volume vols. = vplumes

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PARTE PRIMEIRA

O ESTRANGEIRO EXÓGENO

:

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Referências

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