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Capítulo 2. Entre a aliança e desavença: a Inglaterra

2.3. A Inglaterra aliada

2.3.2. A Inglaterra como paradigma: representações

2.3.2.1. Apesar de Methuen

O período de Setecentos obedeceu a uma dinâmica singular, no que concerne às representações da Inglaterra como modelo, efeito do processo discursivo elaborado pelos seus intelectuais, que evidencia a desvantagem portuguesa no quadro das alianças com a Inglaterra; e efeito ainda daquilo a que chamamos «política de emancipação» levada a cabo por Sebastião José de Carvalho e Melo e caracterizada, lato sensu, pelo equilíbrio entre a preservação da aliança com a Inglaterra e o distanciamento necessário para fomentar uma maior autonomia de Portugal.

Não obstante, atendendo ao projeto de aproximação de Portugal à Europa dita polida, a Inglaterra não deixou de figurar como um dos modelos a seguir e, se possível, a igualar, se não ultrapassar627. Por essa razão, o século XVIII não deixa de espelhar uma

admiração pela Inglaterra, mormente pelas suas instituições liberais, pela sua cultura emergente (embora sem atingir o nível da influência então exercida pela França) e pelo seu poder industrial, mercantil e militar, motivo por que era tomada como uma das principais potências europeias, aspetos que, no seu conjunto, vão enformar as manifestações anglófilas expressas neste período em exame.

Tais manifestações ocorrem sobretudo nos planos cultural e científico, territórios mais permeáveis à influência estrangeira. Apesar de a língua ser praticamente desconhecida

626 Maria Manuela Tavares Ribeiro, «A restauração da Carta Constitucional: cabralismo e anticabralismo», in

José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. V: O Liberalismo (1807-1890), ed. cit., p. 109.

627 As Memórias secretíssimas atribuídas ao Marquês de Pombal são a este respeito bastante elucidativas.

Elaboradas dois anos antes da morte de D. José (mas publicadas postumamente), nelas o ministro do rei enumera as situações em que Portugal, durante o magistério pombalino, conseguiu igualar ou exceder as demais nações europeias (como a Inglaterra e a França, que surgem sempre como elementos de comparação), particularmente no comércio, na indústria, na ordem social, nas finanças, na estabilidade governativa. Sebastião José de Carvalho e Melo, Memórias secretíssimas do Marquês de Pombal apresentadas a el-rei D. José dois

e inutilizada em Portugal, a sua influência começava então a delinear-se, acompanhando a hegemonia britânica na Europa e a sua ascensão enquanto potência colonial.628 De facto, no

mesmo período, observou-se a publicação de gramáticas e dicionários ingleses, o que demonstra um certo interesse pelo conhecimento desta língua.629 De forma geral, as

«novidades inglesas» chegavam a terras lusas por via francesa — quer através de traduções francesas, quer de traduções portuguesas a partir do francês — mas também pela imprensa periódica que então se desenvolvia e se especializava.630 No plano mais científico, foram

várias as obras «de especialidade» inglesas traduzidas para língua portuguesa no século XVIII, nomeadamente as de John Locke, Newton, mas também, na área da economia, de Adam Smith e Jeremy Bentham. É evidente, assim, a atenção suscitada pelo que se produzia na Inglaterra e sobretudo naquele que era considerado o seu principal centro de erudição, a Royal Society. Neste aspeto em particular, revela-se da maior importância o papel dos «estrangeirados». Estes eruditos de Setecentos não se limitaram a contactar e a reter os novos conhecimentos então produzidos, mas tiveram o ânimo de os dar a conhecer a Portugal. Muitos deles estiveram em Londres ou estabeleceram contacto com a comunidade científica

628 Apesar da longa tradição das relações entre Portugal e a Inglaterra, o latim e o francês eram as «línguas

oficiais» da diplomacia, facto que se comprova pelos próprios textos dos tratados de aliança celebrados, conforme se pode consultar na Collecção de tratados, convenções, contratos e actos publicos celebrados entre

a Coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640 até ao presente (1856).

629 A primeira gramática anglo-lusitana foi publicada em Londres em 1701, com o título Grammatica Anglo-

Lusitanica, apensa a um dicionário bilingue (inglês e português) com o título A Compleat Account of the Portugueze Language, ambos da responsabilidade de Alexander Justice (veja-se a este respeito o estudo

elaborado por Rolf Kemmler, «A primeira Grammatica Anglo-Lusitanica (Londres, 1701) e as suas edições», BSEHL, 8, 2012, pp. 23-42). Sobre o estudo da língua inglesa no século XVIII, veja-se o texto de Manuel Gomes da Torres, «O interesse pelo estudo do inglês no século XVIII», com a referência aos primeiros instrumentos de aprendizagem do inglês para portugueses, mas também do português para ingleses, incluído no volume das Actas do Colóquio Comemorativo do VI Centenário do Tratado de Windsor, ed. cit., pp. 41-54.

630 Luiz Eduardo Oliveira apresenta um elenco das traduções setecentistas portuguesas de obras inglesas e das

publicações periódicas que de forma mais ou menos exclusiva davam conta das «novidades inglesas» (Luiz Eduardo Oliveira, op. cit., pp. 192-196). A. A. Gonçalves Rodrigues, no âmbito de um longo estudo sistemático sobre a tradução em Portugal, intitulado A tradução em Portugal: tentativas de resenha cronológica das

traduções impressas em língua portuguesa excluindo o Brasil de 1495-1950 (5 vols.), dá-nos conta das

traduções das obras inglesas. Também o levantamento exaustivo da bibliografia inglesa editada em Portugal empreendido por Isabel da Cruz Lousada dá-nos uma ideia da receção da cultura britânica em Portugal e do interesse que esta despertava. A diferença entre a bibliografia inglesa publicada no nosso país no século XVIII e no século XIX é abismal: cerca de 140 títulos no primeiro caso e mais de um milhar no segundo. Cf. Isabel Maria da Cruz Lousada, Para o estabelecimento de uma bibliografia britânica em português (1554-1900), Prova de acesso à categoria de Investigador Auxiliar, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1998). Sobre a importância da imprensa periódica no século XIX, veja-se Ernesto Rodrigues, Mágico Folhetim: literatura e jornalismo em Portuguesa, Lisboa, Editorial Notícias, 1998; e Rui Ramos, «A nação intelectual», in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. VI: A segunda fundação (1890-

inglesa. Alguns foram, inclusive, admitidos na Royal Society.631 Por motivações diferentes,

António Nunes Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento, o Cavaleiro de Oliveira, José Joaquim Soares de Barros e Vasconcelos, João Jacinto Magalhães ou o próprio Sebastião José de Carvalho e Melo estiveram em Londres, onde tomaram conhecimento de uma realidade política, cultural e religiosa diferente que viria a influenciar cada um de uma forma específica. Ribeiro Sanches, por exemplo, foi seduzido pelo ensino das ciências ministrado em Inglaterra632; Jacob de Castro Sarmento iniciou a tradução da obra de Francis Bacon,

Novum Organum, e foi difusor, em Portugal, do pensamento de Newton, pela publicação da Theorica verdadeira das marés, conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton (1737); Francisco Xavier e Oliveira rendeu-se ao protestantismo quando esteve em Londres e lá escreveu o Discours Pathétique (1756), pelo qual foi condenado pela Inquisição portuguesa a ser queimado em efígie; e o futuro Marquês de Pombal terá adquirido em Londres determinadas competências em matéria diplomática, mas também mercantilista, que pôs em prática durante o reinado de D. José.633

Além destes casos, não podemos deixar de referir os relatos escritos dos viajantes, que constituem um testemunho das suas impressões e uma importante memória das imagens dos ingleses e da Inglaterra.634 Por outro lado, também o intercâmbio comercial entre

631 Foi o caso de António Nunes Ribeiro Sanches, mas também de D. Francisco Xavier de Meneses, 4.º conde

de Ericeira, Jacob de Castro Sarmento e João Jacinto Magalhães.

632 Veja-se, por exemplo, o seu Tratado da conservação da saúde dos povos (1756), no qual a Inglaterra emerge

como modelo no ensino da Química. O título completo da obra é Tratado da conservaçaô da saude dos povos:

obra util, e igualmente necessaria a os magistrados: capitaens generais, capitaens de mar, e guerra, prelados, abbadessas, medicos, e pays de familia: com hum Appendix. Consideraçoins sobre os terremotos, com a noticia dos mais consideraveis, de que fas mençaô a historia, e dos ultimos que se sintiraô na Europa desde o

I de novembro 1755.

633 De facto, os seus escritos económicos datam do tempo em que esteve em Londres e partir deles é possível

denotar «o pensamento e os projetos de Sebastião José quando a sua chegada à Secretaria de Estado ainda não se vislumbrava» (Nuno Gonçalo Monteiro, D. José. Na sombra de Pombal, ed. cit., p. 211). Para a perceção dos «negócios gravíssimos e delicadíssimos» que Sebastião José de Carvalho e Melo tratara em Londres, veja- se a introdução de José Barreto a Sebastião José de Carvalho e Melo, Escritos económicos de Londres (1741-

1742), ed. cit., pp. VII-LXXIII e respetiva seleção de escritos.

634 A título de exemplo, citamos uma descrição do povo inglês retirada de uma conhecida peça da literatura de

viagens do século XVIII, atribuída a Luís Caetano de Campos, Viagens d’Altina nas cidades mais cultas da Europa, e nas principais povoações dos balinos, povos desconhecidos de todo o mundo: «Os Ingleses são

constantes, fiéis, e verdadeiros, mas mui altivos, e inclinados a olhar os outros povos com desprezo. Amigos do asseio, tanto nas suas pessoas, como no interior das suas casas, eles principião já a exceder os limites da moderação, que os caracterizava, e a imitar o luxo excessivo dos Francezes. O Povo é o mais credulo, o mais grosseiro e o mais petulante de toda a Europa. A canalha chega com o seu atrevimento até insultar publicamente os Estrangeiros, com nomes injuriosos [...]» (Luís Caetano de Campos, Viagens d’Altina nas cidades mais

cultas da Europa, e nas principais povoações dos balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, t. II, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1791, pp. 68-69).

Portugal e a Inglaterra facilitava a difusão das novidades inglesas e, por este intermédio, europeias, não obstante o cerco apertado da censura.