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A corrida à África: o Tratado de Lourenço Marques e a Conferência de Berlim

Capítulo 2. Entre a aliança e desavença: a Inglaterra

2.2. A Inglaterra desleal

2.2.3. O Ultimatum ou a «britânica bofetada»

2.2.3.1. A corrida à África: o Tratado de Lourenço Marques e a Conferência de Berlim

O Tratado de Lourenço Marques, celebrado em 30 de maio de 1879 entre Portugal e a Inglaterra, concedia a esta facilidades na região de Moçambique, conforme descreve Maria Teresa Pinto Coelho: «Além da liberdade de navegação no Zambeze e isenção de direitos de trânsito para as mercadorias destinadas à fronteira britânica, o tratado continha a estipulação de livre trânsito de tropas e armas para os domínios britânicos».560 O tratado suscitou uma

forte contestação geral, traduzida em artigos na imprensa periódica e em obras publicadas,561

situação avivada pelas comemorações do tricentenário da morte de Camões (1880) e do

559 Outras razões poderiam justificar o interesse europeu por África, nomeadamente a assunção de uma missão

civilizadora decorrente do pensamento positivista. Cf. José Telo, «Um sonho cor-de-rosa? Portugal, a Europa e África (1879-1891)», in João Medina (dir.), História de Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos dias, vol. IX: A Monarquia Constitucional, ed. cit., pp. 199-200. No entanto, numa ótica de concorrência entre as nações europeias, o interesse por África era sintoma de um nacionalismo ideológico, em que a superioridade de uma nação se mede pelo território que ela ocupa. Veja-se, a este respeito, Jean-Luc Chabot, O nacionalismo, Porto, RÉS-Editora, s. d., p. 50

560 Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e Regeneração: o Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura

finissecular, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p. 49.

561 É o caso de A traição (1881), de Gomes Leal. Não sendo um poema propriamente antibritânico, é

sinceramente antibrigantino, o que levou à prisão do seu autor. Nele, o poeta responsabiliza a dinastia de Bragança pela decadência nacional, acusa D. Luís de vender o país aos ingleses e faz um apelo à revolução, constituindo A traição uma verdadeira poesia de combate: «Cavalleiros do Bem, que vindes das florestas / da Idea e juraes guerra á Podridão e ao Crime! / Correi sobre este charco a toda a rédea solta, / vós, justos campeões, puros como os arminhos, / e agitae pelo ar a espada da Revolta! / e afiae os punhaes nas pedras dos caminhos!» (Gomes Leal, A Traição. Carta a El-Rei D. Luiz sobre a venda de Lourenço Marques, Lisboa, Livraria Portuguesa e Francesa, 1881, p. 13. Outro título sugestivo do descontentamento quanto à aliança anglo-lusa é A dominação inglesa em Portugal e o que é e de que nos tem servido a aliança de Inglaterra (Lisboa, João António Rodrigues Fernandes, 1883), cuja autoria se desconhece, sendo assinado por «um compatriota de Gomes Freire de Andrade». Escrito como reação aos «odiosos tratados de Lourenço Marques e da Índia» (p. 5), o seu autor insurge-se contra «as incessantes espoliações, as quotidianas injúrias, as humilhantes pressões, que são o único fruto da nossa tradicional aliança com a orgulhosa e insaciável Albion» e assume a missão de demonstrar como a aliança anglo-lusa «nunca trouxe a Portugal senão encargos, ruína, conflitos com outras potências, vergonhas e degradações, e que a Inglaterra envilece-nos perante a Europa fazendo passar o nosso país por uma colónia sua» (p. 5). Este escritor desconhecido não recusa a aliança propriamente dita, mas acusa a falta de reciprocidade. A Inglaterra emerge deste texto como o inimigo que deve ser combatido não só pelos portugueses mas por toda a Europa, sendo uma ameaça ao seu equilíbrio. Trata-se, esta, de uma obra inteiramente anglofóbica, na qual o seu autor não se poupa a acusar a Inglaterra e os ingleses das maiores atrocidades e vilipêndios contra Portugal.

centenário da morte de Pombal (1882), que reafirmaram o sentimento patriótico e, ao mesmo tempo, um nacionalismo ideológico que os republicanos souberam instrumentalizar para fins de propaganda. Perante uma situação de crise acentuada que o país atravessava, proliferaram os discursos que acusavam a dependência de Portugal em relação à Inglaterra como origem e causa da crise e que responsabilizavam o regime monárquico e os próprios monarcas pelo presente estado de decadência. Neste contexto, África parecia oferecer novas possibilidades que o governo pretendia abraçar, mediante a construção de uma mitologia do império562,

apoiada num nacionalismo histórico e colonial, justificado pela passada glória da expansão portuguesa que se pretendia reavivar.

A chamada «corrida à África», ou scramble for Africa, teve o seu início formal na sequência da Conferência de Berlim, realizada em 1884-1885 com o intuito de se debaterem os direitos de ocupação territorial de África, segundo uma orientação que contrariava a conceção portuguesa de direito histórico.563 A falta de apoio britânico na defesa dos

interesses portugueses, cuja presença em África era posta em causa pelo princípio de ocupação por direito efetivo imposto pelas demais potências europeias, suscitou a desconfiança de Portugal quanto ao valor da aliança com a Inglaterra. Neste contexto, a estratégia do governo passará por uma aproximação à Alemanha e à França, mediante celebração de tratados (em 1886 com a França e em 1887 com a Alemanha), que podem ser interpretados quer como uma tentativa de libertação da tutela inglesa ou simplesmente como um «aviso» à Inglaterra pela falta de apoio manifestado.

Aos planos de partilha de África engendrados na Conferência de Berlim reagiu o governo português com a elaboração e a apresentação do projeto do Mapa Cor-de-Rosa (1886), que previa a constituição da África Meridional Portuguesa, pela união de Angola a Moçambique. Com vista à sua implementação, e sem tempo a perder, foram realizadas uma série de expedições no interior africano. Este projeto, ao colidir com as ambições britânicas de criação de um corredor africano que ligasse o Cairo ao Cabo, não foi bem acolhido pela Inglaterra. O confronto ocorrido com os Macolocos durante a expedição de Serpa Pinto na região do Chire foi o ponto de eclosão do conflito anglo-luso. Estava aberta a chamada

562 Cf. António José Telo, Lourenço Marques na política externa portuguesa (1875-1900), Lisboa, Cosmos,

1991, pp. 19-20.

563 Sobre o impacto da Conferência de Berlim na política colonial portuguesa, veja-se Hugo Gonçalves Dores,

A missão da Rpública. Política, religião e o Império Colonial Português (1910-1926), Lisboa, Edições 70,

«questão africana»564, cujo culminar aconteceria no dia 11 de janeiro de 1890, com o ultimato

apresentado pelo governo britânico ao congénere português.

2.2.3.2. «Contra os bretões, marchar, marchar»565

O sentimento de humilhação gerado pelas mãos do estrangeiro teve um efeito incendiário entre a opinião pública, revoltada contra o ancestral aliado de Portugal mas também contra o governo por ter acedido ao ultimato. Portugal acordava de forma violenta para assistir ao desmoronar do sonho imperial que havia sido projetado em África e que representava as esperanças de restauração da antiga glória de Portugal. Alguns escritores coevos dão-nos, em breves palavras, uma ideia muito precisa do abalo provocado pelo ultimato: para Basílio Teles, o ofício britânico foi «o acontecimento mais considerável que, desde as invasões napoleónicas, abalou a sociedade portuguesa»566; para Eça de Queirós, foi

origem da maior crise, «incontestavelmente a mais severa, talvez a mais decisiva que esta geração tem afrontado»567; para Antero de Quental, foi o «insulto imprevisto», apelando o

autor para o «ato de contrição da consciência nacional»568.

O texto do ultimato, dado a conhecer à população, teve o efeito de uma hecatombe nacional, fomentada pela imprensa e pelos partidos de oposição ao Governo, como se de um episódio apocalíptico se tratasse. O ódio contra a Inglaterra instalou-se de imediato e irrompeu sob variadas formas, não só literárias mas também comportamentais, como que em resposta ao que o jornal O Dia, na sua edição de 16 de janeiro de 1890, anunciava e instigava:

Começam já os exemplos de repulsa por esta unica via de magua para a canalha britanica, por banda d'alguns commerciantes de Lisboa e Porto, cujo nome todos

564 Expressão que deu título a um artigo de opinião publicado pelo deputado republicano Rodrigues de Freitas

n’O Século (edição de 1 de janeiro de 1890). O confronto armado com os Macololos, povo que se encontrava sob a proteção da Grã-Bretanha, ocorrera em Mupassa a 8 de novembro de 1889 e deflagrou, segundo nos reporta Maria Teresa Pinto Coelho, quando Serpa Pinto resolveu investigar uma série de incidentes causados por aquele povo na região do Chire (cf. Maria Teresa Pinto Coelho, op. cit., p. 54). Para o contexto em que se insere este episódio, veja-se, também, a súmula apresentada por Joel Serrão no Dicionário de história de

Portugal (vol. VI) e, de forma mais minuciosa, o estudo de António José Telo, Lourenço Marques na política

externa portuguesa (1875-1900), ed. cit.; e Nuno Severiano Teixeira, O Ultimatum inglês: política externa e política interna no Portugal de 1890, Lisboa, Publicações Alfa, 1990.

565 Versão popular do verso «contra os canhões marchar, marchar», do hino patriótico composto por Henrique

Lopes de Mendonça em 1890.

566 Basílio Teles, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro: esboço d’uma história política, 2.ª ed. [1.ª ed., 1905], Lisboa,

Portugália, p. 108.

567 Eça de Queirós, «O ultimatum», in Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas, 2.ª ed.,

Porto, Livraria Lello & Irmão, 1929, p. 266.

devemos archivar, como de patriotas denodados. Succeda o que succeder, condensemos n'este odio ao inglez, todos os haustos d'alma que tivermos, e seja o 11 de Janeiro de 1890 d'aqui por deante, uma data em que nenhum portuguez possa pensar, sem revolver uma navalha na algibeira.569

A edição de 6 de fevereiro de 1890 de Pontos nos iis testemunha a profusão de publicações de reação antibritânica, sobretudo na forma poética, através do artigo «Panfletos e livros»:

O patriotismo que sobrou das demonstrações das ruas, veio para os prelos, e

alexandrinizando-se, deu de si poemetos de grande marca e fogo anti-britannico. São

ás chusmas os fasciculos, com titulos de colera, verberando a Inglaterra, a quem (conforme o temperamento de quem fala) se vai chamando feroz leopardo, ladra,

escorpião, prostituta e marujo bebedo.570

Em termos comportamentais, a manifestação de indignação traduziu-se na Grande Subscrição Nacional para a compra de navios de guerra571 e, de forma mais emocional, no

boicote aos produtos de origem inglesa, em tumultos e manifestações, em campanhas contra a aliança anglo-portuguesa ou no aportuguesamento de palavras inglesas572. Mas foi na sua

569 «Estatua de Camões», Pontos nos ii, 16 de fevereiro de 1890, Lisboa, Litografia da Campanha Nacional

Editora, 1890, p. 18.

570 «Panfletos e livros», ibidem, p. 42.

571 O texto da Subscrição Nacional foi publicado na edição de 16 de janeiro de 1890 do Pontos nos ii. Trata-se

de um apelo dirigido «a todos os portugueses, longe ou perto elles estejam, [...] desde o capitalista até ao mendigo» para colaborarem na aquisição de meios de defesa marítimos «que nos ponha ao abrigo das prepotências dos piratas do mar» (p. 19).

572 O jornal O Conimbricense apelava à «guerra, guerra sem tréguas ao comércio e às indústrias inglesas»

(edição de 29 de janeiro de 1890, p. 2). No plano linguístico, segundo Maria Teresa Pinto Coelho, Leite de Vasconcelos propôs, em artigo publicado no jornal O Dia, o «aportuguesamento» de determinados vocábulos ingleses. Assim surgiram, em língua portuguesa, as palavras lanche (lunch), piquenique (picknick), queque (cake), sanduíche (sandwich) ou túnel (tunnel). Cf. Maria Teresa Pinto Coelho, op. cit., p. 80. Maria Filomena Mónica instrui-nos acerca da forma como a população em geral manifestou a sua repulsa contra a Inglaterra: «No dia seguinte [ao ultimatum] era divulgado o conteúdo da carta entregue pelo embaixador britânico, Sir George Petre, ao ministro dos Negócios Estrangeiros. Sem outra hipótese, o Governo português cedeu. Logo que a notícia se divulgou, “a raça dos Albuquerques” ergueu-se, aos berros, contra os “piratas ingleses”. De casa do cônsul inglês, era arrancado o emblema britânico, enquanto a residência do ministro dos Negócios Estrangeiros, Barros Gomes, era apedrejada. A fim de vaiar os “traidores”, mais de quinze mil pessoas dirigiram-se para as Cortes. Nos dias seguintes, os sinais de indignação foram crescendo. Lojas da baixa ostentavam letreiros com os seguintes dizeres; “Não se compra nem se vende a ingleses.” Um fabricante de bolinhos de coco deixou de os fazer por se chamarem christies. Os donos dos hotéis recusavam albergar visitantes britânicos. A estátua de Camões apareceu coberta de crepes negros. O duque de Palmela devolveu as condecorações britânicas e cedeu um ano do rendimento, da sua riquíssima casa agrícola, para o peditório que se estava a organizar com vistas à aquisição de um couraçado. O conde de Burnay mandou regressar a Lisboa os dois filhos que tinha a estudar em Londres. Finalmente, ouviu-se cantar, pela primeira vez, a canção que, depois da implantação da República, viria a ser o hino nacional: “Às armas, às armas...” Entre Janeiro e Março de 1890, formaram-se, em todo o país, dezenas de comissões patrióticas» (Maria Filomena Mónica, Eça

forma literária que as representações antibritânicas geradas pelo Ultimato tiveram maior e mais duradoura expressão. O número de textos produzidos abordando a «perfídia inglesa» e apelando ao «ódio ao inglês» é bastante representativo, sobretudo aqueles publicados na imprensa periódica573, estando esse levantamento exaustivo por fazer, apesar de o apurado

estudo elaborado por Maria Teresa Pinto Coelho nos dar uma ideia aproximada da abundância de publicações dadas a lume. 574

De uma forma geral, encontramos nos textos de reação antibritânica coetâneos uma emotividade que se traduz no uso mais recorrente de adjetivos que pretendem amplificar uma imagem negativa da Inglaterra. Para o efeito, são especialmente abordados o tema da aliança anglo-portuguesa e, associado a este, a sujeição de Portugal à Inglaterra, bem como os caracteres que definem a povo britânico, repetida e descomedidamente enunciados. Obras literárias como Finis Patriae (1890), com os poemas À Inglaterra (1890) e O caçador Simão (1890) nele inclusos, e Pátria (1896), de Guerra Junqueiro;575 Troça à Inglaterra (1890), de

Gomes Leal; Os piratas do Norte (1890), de Henrique Lopes de Mendonça; O pavilhão vermelho (1890), de Bulhão Pato,576 e Do Ultimatum ao 31 de Janeiro (1905), de Basílio

573 Constitui reflexo da dimensão que este episódio atingiu a criação propositada de periódicos, como o

Ultimato e o Anátema, ambos com um número único.

574 Maria Teresa Pinto Coelho, em Apocalipse e Regeneração: o Ultimatum e a mitologia da Pátria na

literatura finissecular, procede a uma prospeção das repercussões do Ultimato na literatura coeva. Embora dê

uma atenção especial à Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós, e à Pátria, de Guerra Junqueiro, a autora não descura o conjunto heterogéneo de textos alusivos quer ao Ultimatum propriamente dito quer aos seus antecedentes, nomeadamente ao chamado scramble for Africa. Na sequência da investigação realizada, a autora conclui que o Ultimatum anuncia-se «como mito político» e «desfecho da crónica de uma morte há muito enunciada que encontra no final do século o seu túmulo e a sua ressurreição» (op. cit., p. 268).

575 Se os poemas Finis Patriae, O caçador Simão e À Inglaterra foram publicados em 1890 como resposta ao

Ultimatum, Pátria foi posteriormente composta como protesto contra o tratado de 20 de agosto de 1890,

descrito como «um necrologio a assignar pelo defunto» (Guerra Junqueiro, Patria, ed. cit., p. 11). Neste poema, Junqueiro mostra um Portugal degenerado, arruinado, moribundo e um D. Carlos indiferente à questão anglo- lusa. Ficou como marco da literatura antibritânica a estrofe que parodia o conteúdo do tratado: «Eu, rei de Portugal, subdito inglez, declaro / Que á nobre imperatriz das Indias e ao preclaro / Lord Salisbury entrego os restos d'uma herança / Que d'um povo ficou á Casa de Bragança, / Dando-me, em volta, a mim e ao princepe da Beira / A desonra, a abjeção, o trono... e a Jarreteira» (pp. 35-36).

576 Poema satírico, O pavilhão vermelho foi publicado com a data de 22 de janeiro de 1890 como reação ao

Ultimatum e à suposta ameaça de guerra por parte da Inglaterra. A composição encerra uma crítica à

deslealdade e vilania britânicas e uma descrição do «bretão no singular conjuncto», salientando os habituais

topos que distinguem, negativamente, aquele povo: «A figura primeiro — e não é mau o assumpto. / As barbas

vegetaes! Barriga empertigada / Da carne crua e gin, do vinho e da cerveja! — / Comer, beber, ganhar! Eis tudo o que deseja! — / Os punhos e o nariz são rubros, num inglez. / Dá-lhe o rhum ao nariz a côr avermelhada; / E ás mãos a mesma côr... o sangue do irlandez! // Não respeita um irmão em toda a humanidade! / Rico, esgota o prazer até á saciedade!» (Bulhão Pato, O pavilhão vermelho: satyra, Lisboa, Adolfo, Modesto & C.ª — Impressores, 1890, p. 7). Quanto à política externa, releva o modo de proceder covarde que caracteriza o «Leopardo»: «Na batalha campal jamais logrou victoria, / Não tendo, como auxílio, o braço d’outros povos. / Para quem duvidar, falla bem alto a historia! / Jamais, no vasto mar, viu horisontes novos! / Empolgou, pirateando, o que outros descobriram! / Lambe as mãos da Allemanha, e insulta Portugal! / Quando as grandes nações os dentes lhe reviram, / O Leopardo feroz não dá um salto nunca: / Agacha-se, colleia, elastico, fatal, /

Teles transmitem-nos uma ideia bastante clara do tipo de discurso elaborado com o fito de agredir (verbal e mentalmente) a Inglaterra e/ou de acordar as consciências para a realidade nacional e para a necessidade de regeneração do país. Atentemos, como casos representativos, ao poema À Inglaterra (1890), de Guerra Junqueiro, e aos textos Os piratas do Norte (1890), de Lopes de Mendonça, e Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, de Basílio Teles (1905).

Do poema À Inglaterra evidenciamos o vocabulário virulento utilizado por Guerra Junqueiro para designar a Inglaterra e/ou os ingleses: «cínica», «bêbeda impudente», «prostituta devassa», «monstruoso ladrão», «bárbaro traficante», «milhafre daninho», «lobo», «covarde», «monstro», «meretriz nefanda», «brutais monstros de pesadelo», «dura raça assassina». Não se detendo numa caracterização exageradamente negativa, o poeta procede a uma censura inflamada do capitalismo e do imperialismo desumano dos ingleses e, como um anjo vingador, prenuncia o fim apocalíptico do império britânico:

Hão de um dia as nações, como hyenas dementes, Teu imperio rasgar em feroz convulsão...

E no torvo hallali, dando saltos ardentes,

Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes, A bramir, levará cada qual seu quinhão!

E ficarás só na tua ilha normanda

Com teus barões feudaes e teus mendigos nus: Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda, E a tua carne has de vêl-a, ó meretriz nefenda, Lodo amassado em sangue, oiro amassado em pus!577

Igualmente implacável na sua caracterização dos ingleses é Henrique Lopes de Mendonça. Em Os piratas do Norte, obra poética dedicada a Jaime Batalha Reis, a Inglaterra é apresentada com atributos predatórios, sendo Portugal a sua vítima — a Inglaterra é o milhafre e Portugal a pomba; a Inglaterra é o parasita trepador e Portugal a árvore. Os ingleses têm características nacionais «de rapina, de ferocidade e de intemperança», são

E, vendo fraco alguem, deita-lhe a garra adunca!» (Idem, ibidem, p. 8). A terminar o poema, Bulhão Pato apela, como vingança pelo ultraje, para o fim da aliança anglo-portuguesa: «Jamais sombras de alliança, / Com esse povo maldito! / Todo o rancor da vingança / Bemdito seja! Bemdito!» (Idem, ibidem, p. 14).

577 Guerra Junqueiro, «À Inglaterra», in Finis patriae, Porto, Empresa Literária e Tipográfica, 1891, pp. 60-

«avidos, crueis, devassos», bêbados e obscenos, «de espírito egoista e sofrego», «compatriotas de Jack o Estripador».578

O poema «Delenda Albion», incluído no mesmo volume, é iniciado com uma referência, em tom de ironia, à aliança anglo-portuguesa, topos recorrente na literatura antibritânica, — «Eil-os, ó bom burguez, os nossos alliados!»579 —, a que se segue um rol

de acusações, igualmente comuns: «soberba villã», «anglo-saxão maldito», «essa medonha pieuvre … a pérfida Inglaterra», «bretão ruim», «novos jesuitas!», «lugubres carrascos», «cheios de orgulho e de ímpetos ferozes».580 Ainda em tom acusatório, traça os danos que a

aliança trouxe a Portugal:

Oh! como a patria chora a louca segurança Com que se confiou á punica alliança! Que vantagens logrou? a industria aniquilada, O commercio na mãos da perfida alliada, E, ao ver-nos sem vigor, immersos no lethargo, A Europa que nos lança o seu desprezo amargo.581

Lopes de Mendonça censura, também, a hipocrisia inglesa quanto à sua suposta missão civilizadora em África, descrita como um ato ímpar de crueldade, sem precedentes na História: «em vez da ilustração, levais o morticínio», «Não! do romano imperio até á inquisição, / Das fúrias do papado ás da revolução, / Nada eguala em horror a tenebrosa chronica / Das sévas invasões da raça anglo-saxónica.»582

O tom apocalíptico que encontrámos em Junqueiro é neste poema substituído por um acento mais combativo, expresso num incitamento ao «odio ao estrangeiro espoliador e cobarde»583. Lopes de Mendonça questiona-se se ficará na memória a «bofetada violenta,

vibrada hoje pela mão sanguinária de John Bull» e apela: «unamos os nossos esforços para prolongar no animo do povo a vibração de rancor produzida pela affronta brutal; tentemos, quanto em nós caiba, accordar no espírito nacional a vergonha de uma apathia secular e os

578 Henrique Lopes de Mendonça, Os piratas do norte, Lisboa, Livraria Editora de Tavares Cardoso & Irmão,

1890, pp. 8-10. De notar que ao fazer referência à nacionalidade de Jack, o estripador, o poeta não só evidencia como transporta para o natureza do povo britânico as características daquele assassino.

579 Idem, ibidem, p. 15. 580 Idem, ibidem, pp. 16-19. 581 Idem, ibidem, p. 20 582 Idem, ibidem, p. 18. 583 Idem, ibidem, p. 9.