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Capítulo 2. Entre a aliança e desavença: a Inglaterra

2.3. A Inglaterra aliada

2.3.2. A Inglaterra como paradigma: representações

2.3.2.2. Apesar da tutela britânica

Mas é a partir do século XIX que brotam os discursos mais apologéticos do modelo britânico, coincidentes com a proliferação de discursos contra a França, no quadro e rescaldo das invasões napoleónicas, e com o início de uma saturação da influência francesa em Portugal — ou seja, quando a França começa, paulatinamente, a perder a sua hegemonia europeia e a exclusividade do estatuto de «nação-exemplo» e a Inglaterra, na sequência da sua revolução industrial, aflora como uma potência imperial e modelo civilizacional.

A situação de protetorado exercido pela Inglaterra em Portugal depois da derrota francesa na sua terceira invasão, e enquanto D. João ainda permanecia no Brasil, moveu uma reação antibritânica que culminou na Revolução de 1820. Não obstante, foi ainda com o apoio inglês que as forças liberais triunfaram sobre o absolutismo, pondo fim à guerra civil e a uma série de insurreições que desde 1826 dividiam o país.635 Se numa primeira fase o

governo inglês não se mostrou interessado em intervir em questões de natureza política, a possibilidade verificada em 1826 de alastramento dos conflitos intestinos e de intervenção da Espanha em auxílio aos realistas suscitou o empenho britânico a favor da causa liberal.636

Assim, foi por imposição britânica que D. Miguel, regressado a Portugal do exílio em Viena em 22 de fevereiro de 1828, jurou a Carta a 26 de fevereiro.

A posição da Inglaterra face aos conflitos entre liberais e absolutistas tornou-se mais ativa na sequência de uma série de acontecimentos desencadeados a partir de 1830. A substituição, nesse ano, do governo conservador de Wellington na Inglaterra pelo governo liberal de Lord Grey, a revolta francesa de julho de 1830 que determinou a destituição de Carlos X e a aclamação de Luís Filipe de Orléans, as revoluções liberais ocorridas um pouco por toda a Europa e o próprio regresso de D. Pedro em 1831 revelaram-se circunstâncias

635 Até à Regeneração (1851/1852) Portugal permaneceu numa situação de instabilidade política, com

sucessivos golpes de Estado, e em intermitente estado de guerra civil.

636 A morte de D. João VI em 10 de março de 1826 e a aprovação da Carta Constitucional em 24 de abril

seguinte, por D. Pedro, na sequência da sua aclamação como rei de Portugal e subsequente abdicação da coroa na sua filha D. Maria da Glória, em vez de uma desejada conciliação conduziram a uma cisão entre liberais e realistas. A primeira intervenção britânica ocorreu em finais de 1826, com o envio para Portugal de 5000 soldados com o único objetivo de impedir uma invasão espanhola em auxílio dos realistas. Na verdade, nesta fase a preocupação do governo inglês não se prendia propriamente com o regime político assumido em Portugal, mas com as consequências que uma abolição da Carta por D. Miguel, quando assumisse a regência por casamento com a sobrinha, pudesse acarretar, como, de facto, se veio a verificar.

determinantes para o sucesso da causa liberal portuguesa. Informa-nos A. H. Oliveira Marques que tais circunstâncias geraram pânico no governo e apoiantes miguelistas, o que motivou a «constituição de comissões especiais encarregadas de processar e julgar todos os réus de crimes de revolta, sedição, movimentos tumultuários em detrimento da segurança do Estado e outros semelhantes de lesa-majestade»637, conforme decreto de 9 de fevereiro de

1831, gerando uma situação de «terror miguelista»638. As perseguições movidas contra

liberais, maçons ou suspeitos não pouparam as colónias inglesas e francesas estabelecidas em Portugal, exasperando os respetivos governos. A reação britânica — paga com o vinho do Porto639 — não tardou. Organizadas na ilha Terceira, «única centelha de resistência

liberal»640, as forças liberais desembarcaram na praia do Mindelo, em julho de 1832, e

ocuparam o Porto, onde formaram uma Junta Provisória, à semelhança da que haviam instituído em Angra. Em 1833, o comandante inglês Charles Napier dirigiu um ataque direto contra o exército miguelista que decidiu o destino da guerra, a favor de D. Pedro.

O Tratado da Quadrupla Aliança, firmado em 22 de abril 1834 entre os monarcas de Inglaterra, França, Espanha e Portugal, garantiu a instituição de regimes liberais nas monarquias ibéricas e o exílio de D. Miguel e de D. Carlos. A 26 de maio, depois das negociações para o armistício, era assinada a Convenção (ou concessão) de Évora Monte pelo general Lemos, em representação dos absolutistas, e pelos generais Saldanha e Palmela, da ala liberal, sob a presença do secretário da Legação Britânica em Lisboa John Grant, que determinou o exílio permanente de D. Miguel, mediante uma série de concessões que não foram bem aceites pelos liberais.641

637 A. H. Oliveira Marques, «A conjuntura», in Joel Serrão e A. H. Oliveira Marques (dir.), Nova história de

Portugal, vol. IX: Portugal e a instauração do Liberalismo, coord. de A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 2002, p. 585.

638 Cf. «Da revolução à contra-revolução: vintismo, cartismo, absolutismo. O exílio político», in José Mattoso

(dir.), História de Portugal, vol. V: O Liberalismo (1807-1890), ed. cit., p. 76.

639 Cf. Rui Ramos, «Ruptura constitucional e guerra civil (1820-1834)», in Rui Ramos (coord.), História de

Portugal, ed. cit., p. 487. Veja-se, relativamente a este acordo, a correspondência do futuro duque de Palmela

a José Xavier Mousinho da Silveira, a partir de Londres, com a data de 5 de setembro de 1832 (Despachos e

correspondência do duque de Palmela, coligidos e publicados por J. J. Dos Reis e Vasconcelos, t. IV: desde 1828 até 1835, Lisboa, Imprensa Nacional, 1869, pp. 813-814).

640 António Martins da Silva, «A vitória definitiva do liberalismo e a instabilidade constitucional: cartismo,

setembrismo e cabralismo», in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. V: O Liberalismo (1807-1820), ed. cit., p. 89.

641 A Convenção, ou Concessão, de Évora Monte foi criticada por muitos liberais por nela D. Pedro demonstrar

uma «clemência inadmissível» para o próprio D. Miguel e seus prosélitos. Conforme sintetiza António Martins da Silva, entre outros pontos, a convenção determinava «uma amnistia geral de todos os crimes políticos, o regresso livre dos vencidos às respectivas casas, a posse de todas as suas fazendas e bens pessoais, muito embora não pudessem aliená-los sem consentimento das cortes. Teriam, no entanto, que depor e entregar todas as armas e perderiam os empregos públicos e as mercês reais de que tivessem beneficiado. Aos militares era

O período que então se inaugurara revelou-se bastante volúvel e pontuado, até à chamada Regeneração, por constantes quedas de governo, revoltas e guerras civis. Também neste contexto a intervenção britânica foi solicitada, em 1847, ao abrigo do Tratado da Quadrupla Aliança, quando se temia que os setembristas se aliassem aos absolutistas para derrubar o governo então formado sob a proteção de D. Maria II.

A conjuntura que brevemente traçámos pretende antecipar a imagem que os discursos anglófilos construíram da Inglaterra enquanto reduto do liberalismo português. Não deixa de ser significativo que uma das medidas mais importantes e simbólicas para a conceção dos direitos do Homem em Portugal, a abolição do tráfico de escravos, fora convencionada por tratado firmado com a Inglaterra em 3 de julho de 1842, na sequência da celebração, na mesma data, de um novo Tratado de Comércio e Navegação.642 No entanto, a

imagem luminosa da Inglaterra no século XIX não está circunscrita à sua participação na consolidação do liberalismo português. Como já referimos, a Inglaterra era tida como modelo político e cultural. No âmbito cultural em particular, a educação inglesa suscitou um interesse especial entre os intelectuais portugueses — dentre os quais se destaca Eça de Queirós. Como refere Maria Isabel Soares Carvalho Santos, estes entendiam que o carácter imperialista que define o povo britânico era incutido pela educação, sendo esta a causa principal da transformação dos ingleses «em imperialistas temíveis e imparáveis ante os quais nações como Portugal não se poderiam impor»643.

garantido ainda o mesmo posto que possuíam e o pagamento de metade dos soldos que usufruíam, desde que aceitassem, evidentemente, a autoridade do poder vitorioso. A D. Miguel, por sua vez, era atribuído o pagamento de uma pensão anual, bastante razoável, de 60 contos de réis e garantida a posse dos bens próprios; mas teria de devolver as jóias da coroa e embarcar para o estrangeiro, com a proibição expressa de regressar alguma vez mais a Portugal e seus domínios» («António Martins da Silva, «A vitória definitiva do liberalismo e a instabilidade constitucional: cartismo, setembrismo e cabralismo», in José Mattoso (dir.), História de

Portugal, vol. V: O Liberalismo (1807-1820), ed. cit., p. 94).

642 Portugal cede, assim, à pressão que vinha sendo exercida pela Inglaterra desde as negociações para o

Tratado de Aliança e Amizade de 1810. Os textos do tratado de comércio e navegação e do tratado de abolição do tráfico de escravos estão compilados, na sua forma bilingue, na Collecção de tratados, convenções,

contratos e actos publicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640 até ao presente, ed. cit (t. VI, pp. 336-367 e 374-455, respetivamente). Sobre o tema da abolição da escravatura em Portugal, vejam-se os estudos de João Pedro Marques, Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a

abolição do tráfico de escravos (Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999); Valentim Alexandre, op. cit.; e,

para o caso específico da influência da Inglaterra, a dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa apresentada por Filomena Maria Gomes de Oliveira, A abolição do tráfico de escravos

nas relações diplomáticas Portugal/Inglaterra (1810-1851), [Texto policopiado], Lisboa, Faculdade de Letras,

Universidade de Lisboa, 1996.

643 Maria Isabel Soares Carvalho Santos, O Império do Outro. Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Batalha Reis,

Oliveira Martins e a Inglaterra Vitoriana, [Texto policopiado], vol. I, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007, pp. 58-59. O tema da educação inglesa em oposição à portuguesa é aprofundado no segundo volume, pp. 409-432.

Perante o supra-exposto, torna-se possível dividir os discursos anglófilos produzidos na era de Oitocentos em duas categorias principais: os discursos de reconhecimento da Inglaterra enquanto baluarte da liberdade (territorial e ideológica) e os discursos que enfatizam a sua hegemonia civilizacional (ou seja, industrial, política e cultural). Para transmitir a noção da amplitude destes discursos, cruzaremos de forma sinóptica aqueles que consideramos mais representativos, da lavra de autores como Agostinho de Macedo, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e João de Andrade Corvo.

José Agostinho de Macedo, severo crítico da Revolução Francesa, do imperialismo napoleónico e do que considera ser uma excessiva influência francesa em Portugal, nutria talvez por isso uma certa simpatia pela tradicional inimiga de França, a Inglaterra. A verdade é que encontramos em alguns dos seus escritos um discurso anglófilo, sendo também da sua autoria o poema Ao invicto Wellington, Ode (Lisboa, Impressão Régia, 1813). Atentemos, como exemplo, a dois textos publicados no Jornal Encyclopedico de Lisboa, a saber, «Os séculos ilustrados, são os mais virtuosos? Problema filosófico» e «Considerações imparciais sobre os ingleses».644 No primeiro texto, o padre José Agostinho formula algumas

apreciações sobre a Inglaterra, afirmando que «sempre foi fecunda em homens cultos» e que possui uma corte «engenhosa, delicada, polida e cultivada»645, e sobre o rei Carlos II, cuja

ação em defesa e promoção das Ciências e das Artes enaltece.646 No segundo texto, que serve

de prólogo a uma «Memória histórica do reinado do falecido Jorge III, Rei do Reino-Unido da Grã-Bretanha e Irlanda», a avaliação é mais desenvolvida: a Inglaterra é apresentada como uma «nação prodigiosa» cujas forças navais, comércio e recursos não têm comparação.647 Quanto ao carácter do povo britânico, evidencia o «espírito de ordem» e

«perseverança» que «influi sempre em seus trabalhos, suas leis e polícia, e que faz esquecer as consequências de sua natural altivez»648; e considera os ingleses defensores da liberdade

644 Segundo Jorge Pedro Sousa, foi neste jornal que José Agostinho de Macedo «se iniciou no artigo político,

combatendo o constitucionalismo espanhol, a maçonaria e os ideais liberais» («A liberdade de imprensa em questão no Portugal vintista: as cartas de José Agostinho de Macedo a Pedro Alexandre Cavroé», p. 7, texto disponível na Biblioteca On-Line de Ciências da Comunicação, em http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc- liberdade-sousa.pdf, acedido em 12.05.2016). Apesar de não assinar os textos que a seguir apresentamos, José Agostinho de Macedo é comummente tido como seu autor, na qualidade de redator do Jornal Encyclopedico

de Lisboa, de que foi coordenador.

645 José Agostinho de Macedo, «Os séculos ilustrados, são os mais virtuosos? Problema filosófico», Jornal

Encyclopedico de Lisboa, t. I, n.º 3, março de 1820, Lisboa, Imprensa Régia, 1820, p. 168.

646 Idem, ibidem, pp. 153-176.

647 José Agostinho de Macedo, «Considerações imparciais sobre os inglezes», Jornal Encyclopedico de Lisboa,

t. I, n.º 6, junho de 1820, Lisboa, Imprensa Régia, 1820, p. 369.

individual, da segurança da propriedade e da proteção do trabalho.649 O aspeto que o autor

observa como sendo o mais notável prende-se com o percurso empreendido pela Inglaterra, que de região essencialmente rural, sem especiais hábitos ou conhecimentos da arte da navegação, tornou-se a maior potência mercantil e ultramarina, explicando como o progresso da sua marinha foi assaz sustentado pela sua agricultura e comércio. Por estas razões, considera que a Inglaterra deve ser tida como exemplo e o seu percurso como lição para as demais nações. Sem se considerar «anglómano», conclui no entanto que «a Inglaterra, ou os ingleses, formam a nação mais prodigiosa do Globo650.

Contudo, apesar de se assumir como admirador da Inglaterra, mormente de alguns dos seus homens de letras mas também da «grandeza do seu comércio, da atividade da sua indústria e da perfeição de suas manufacturas», Agostinho de Macedo recusa o título de «anglómano»: «Eu não tenho paixão por Nação nenhuma, senão pela Portuguesa [...]. A Anglomania ainda não me chegou, nem chegará.»651. De facto, a incontestável admiração

nutrida pela Inglaterra não impede José Agostinho de Macedo de tecer críticas àquela nação, denunciando, por exemplo, a sua avidez, intolerância e selvajaria no que tange às relações com a Irlanda; ou censurando, de forma jocosa, a forma como o sistema britânico lida com a prática do adultério.652 Este procedimento do autor não invalida, contudo, a percepção que

tem da Inglaterra como paradigma, como sucede com os autores a seguir perscrutados. Almeida Garrett contactou de forma direta com a cultura inglesa durante os seus exílios descontinuados, entre 1823 e 1833 — tendo permanecido ininterruptamente em Inglaterra entre 1828 e 1832. Terá sido este o momento que determinou a sua formação romântica, por certo sob a influência das obras de Lord Byron e Walter Scott, e a evolução, no seu pensamento, de uma ideia de cultura e de educação para Portugal.653 Até então,

motivado por um fervor liberal que se opunha à tutela exercida pela Inglaterra, Garrett mostrara-se antibritanicista. Depois da Vilafrancada, a sua atitude vai alterar-se em virtude

649 Cf. Idem, ibidem, p. 371 650 Idem, ibidem, pp. 381-382.

651 «Carta 1.ª de José Agostinho de Macedo a seu amigo J.J.P.L.», in José Agostinho Macedo, Cartas, Lisboa,

Na Imprensa Régia, 1827, pp. 3-4. O amigo J.J.P.L. é Joaquim José Pedro Lopes, diretor do Jornal

Encyclopedico de Lisboa.

652 José Agostinho de Macedo, «Variedades interessantes», Jornal Encyclopedico de Lisboa, t. II, n.º 9,

setembro de 1820, Lisboa, Imprensa Régia, 1820, pp. 196-201.

653 Carlos Estorninho, em estudo sobre Garrett e a Inglaterra (Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de

Lisboa, 1955), ressalta que «quem estudar a biografia e ler as obras de Garrett, achá-las-á cheias de reminiscências inglesas — umas, puramente fortuitas ou acidentais, outras, motivadas pelos seus longos anos e amargos exílios ali e pela profunda e indelével impressão que a paisagem, os monumentos, a vida, a cultura e a civilização da Inglaterra exerceram sobre o seu espírito» (p. 7).

de a Inglaterra assomar como porto de abrigo para os exilados liberais. Esta mudança encontra expressão no registo que fez das suas viagens, no Diário da minha viagem à Inglaterra (1823-1824): assim, se na primeira viagem as impressões não foram as mais favoráveis654, em 25 de agosto de 1823, ao preparar-se para regressar àquele país já

acompanhado pela esposa, assinala de forma entusiasmada: «Salve, benigno estandarte de protecção! Salve, pavilhão britânico, senhor dos mares, e triunfador nos quatro ângulos da terra. Aqui venho abrigar-me outra vez à tua sombra respeitada...»; e uma vez chegado a Inglaterra: «Outra vez descubro a terra estrangeira, que me foi asilo e segurança. Tu serás a minha pátria, venturoso país de liberdade.»655 Garrett é definitivamente conquistado pela

Inglaterra e respetivos costumes e cultura. No entanto, sem esconder a admiração nutrida pela terra de exílio, faz questão de manter a infundir uma «alma portuguesa» nos seus trabalhos, não traduzindo do inglês, mas adaptando às circunstâncias nacionais. Encontramos clara expressão desta atitude em diferentes escritos seus, a saber: no Bosquejo de história da poesia e língua portuguesa (1826)656, na introdução à Lírica de João Mínimo

(1828)657 e no tratado Da educação (1829)658, ou, em forma de crítica pelo uso que em

654 No dia 27 de junho de 1823, ao desembarcar na Inglaterra, Almeida Garrett regista: «Agora quem verei eu

nessas praias sombrias? O taciturno Jonh Bull com as suas botelhas e com os seus negócios, indiferente a tudo quanto não é desse género, e pensando de muita boa-fé que um estrangeiro não é homem porque não é inglês — Orgulhosos sois (não há aí negá-lo), mas que sólida base não tem o vosso orgulho, e que razões a milhares vos não levam quase por força a desprezar o resto dos viventes, e a vos ter em tal alta conta? — Ricos, triunfantes, senhores do mar, poderosos na terra; livres e cidadãos em vossa ilha, reis e déspotas no continente, eis aí o que há sido esse povo, e o que agora é mais do que nunca, quando nenhum rival em glória e liberdade lhe apresenta o degenerado e acobardado continente!» (Almeida Garrett, «Diário da minha viagem à Inglaterra (1823-1824)», in Narrativas e Lendas, pref. e notas de Augusto da Costa Dias, Lisboa, Editorial Estampa, 1979, p. 46).

655 Idem, ibidem, p. 57.

656 Na perspetiva garrettiana, e em termos literários, os portugueses deveriam seguir os mesmos passos dos

romanos na imitação da cultura grega: «Mas de traducções estamos nós gafos; e com traducções levou o ultimo golpe a literatura portugueza; foi a estocada de morte que nos jogaram os estrangeiros. Traduzir livros d'artes, de sciências é necessario, é indispensavel; obras de gôsto, de ingenho, raras vezes convem; é quasi impossivel fazê-lo bem, é mingua e não riqueza para a littératura nacional. Essa casta de obras estuda-se, imita-se, não se traduz. Em assim faz accomoda-as ao characcter nacional, dá-lhes côr de proprias e não so veste um corpo estrangeiro de alfaias nacionaes (como o traductor), mas a esse corpo dá feições, gestos, modo, e indole nacional: assim fizeram os Latinos, que sempre imitaram os Gregos e nunca os traduziram [...]» (Almeida Garrett, «Bosquejo da história da literatura portuguesa», in Parnaso lusitano, ou poesias selectas dos auctores

portuguezes antigos e modernos, illustradas com notas, precedido de uma historia abreviada da lingua e poesia portugueza, t. I, Paris, J. P. Aillaud, 1826, pp. LVI-LVII).

657 O autor esclarece sobremaneira o seu parecer nestas linhas, que considera o seu «credo petico»: «Quanto a

estrangeiros, convem estudá-los, convem imitá-los no que é imitável, nacionalizando-o: mas o que faz gala de imitar ás tontas os estrangeiros e desprezar os seus, não é só tolo, é ignorante e estupido» (Almeida Garrett, «Notícia sôbre o auctor d'esta obra», in Lyrica de João Minimo, Londres, Sustenance e Stretch, 1829, p. XL.

658 Sendo um dos maiores defensores de uma educação nacional (e não traduzida do estrangeiro), Garrett estava

consciente do caminho que Portugal ainda tinha a percorrer, compreendendo por isso a importância de uma adaptação portuguesa dos modelos pedagógicos europeus (inglês, francês e alemão), conforme se depreende nestas linhas, escritas e dadas a público em Inglaterra: «Pois educar por livros estrangeiros é o mesmo que

Portugal se faz dos modelos estrangeiros, nas Viagens na minha terra (1846)659. Em

contrapartida, numa obra de teor mais histórico-político, como o célebre Portugal na balança da Europa (1830), a posição assumida pelo autor diverge, o que denota que a sua anglofilia é circunscrita ao âmbito social, cultural ou civilizacional. Na verdade, como examinámos, Garrett assumir-se-ia como estrénuo crítico da tutela e intervenções britânicas na política nacional.

Alexandre Herculano partilhou com o autor das Viagens a formação romântico- liberal e o exílio na Inglaterra. Como refere Eduardo Lourenço, Herculano e Garrett são os autores que de melhor forma consubstanciam o diálogo Portugal-Europa, pois as experiências que tiveram no estrangeiro permitiram-lhes imaginar um Portugal que se tornasse europeu sem perder a sua singularidade nacional.660 Sendo apologista de uma

modernização de Portugal pela sua «europeização», está contudo patente na sua obra um certo receio de um «excesso de civilização» que pudesse descaracterizar Portugal. Tal receio está bem presente, a título de exemplo, no texto «Os caminhos de ferro e a política», publicado no jornal O português, em 18 de abril de 1853, no qual o historiador fundamenta a sua suspeita quanto à ligação ferroviária de Portugal à Europa, alertando para as consequências inerentes, embora sem recusar a sua importância para a modernização do

mandar educar a païses estrangeiros: não são traduziveis estes livros nem de seguir por estranhos: é preciso