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Capítulo 1. Os «estrangeirados»: uma nobre utopia

1.1. Génese, formulação e discussão do conceito 1 A génese

1.1.3. Discussão e uso do conceito: aprovação e refutação

Considerando que, como refere Jorge Borges de Macedo, «[...] a investigação científica se faz por confrontos de posições, com vista à integração inteligível do máximo de dados concretos conhecidos»142, procederemos, nas linhas que se seguem, a um exame

dos discursos e da discussão encetada em torno do conceito sergiano, percorrendo para o efeito, num primeiro momento, textos de autores que o utilizaram, aprovaram ou refutaram, recorrendo, sempre que possível, a uma metodologia cronológica, e, para terminar, as contemporâneas Histórias de Portugal, dada a sua missão formadora e a presumida isenção no debate dos diferentes temas da História.

No que concerne aos autores que de algum modo defenderam ou contestaram o uso do conceito de «estrangeirados», tornamos a referir a singularidade do facto de este debate se dar apenas a partir da segunda metade do século XX, coincidindo com o nascer do movimento da Filosofia Portuguesa. Não podemos, todavia, ignorar o contributo de dois autores cujas obras antecederam este período mas que estabelecem um certo diálogo com o pensamento sergiano relativo à primazia da mesma elite setecentista: João Lúcio de Azevedo e Hernâni Cidade.

João Lúcio de Azevedo

Publicada em 1909, a obra O Marquês de Pombal e a sua época não consagra o termo «estrangeirados». No entanto, ao reportar-se ao estado mental da sociedade portuguesa no século XVIII, reconhece a existência de alguns espíritos privilegiados que escaparam ao «báratro do fanatismo e da ignorância em que a alma portuguesa, no meado do século XVIII, mergulhava», homens que, uma vez em terras estranhas, «experimentavam a suave embriaguez do pensamento livre»143. Todavia, João Lúcio de Azevedo nomeia

apenas D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Marco António de Azevedo Coutinho (a quem D. Luís da Cunha dirigira a sua Instrução política), António Ferreira Encerrabodes e

142 Jorge Borges de Macedo, «Nota prévia», in Estrangeirados, um conceito a rever, Lisboa, Edições do

Templo, [1974], p. 7.

Jacob de Castro Sarmento. Quanto a Sebastião José de Carvalho e Melo, considera que a sua ida para o estrangeiro foi demasiado tardia, situação que condicionou a efetiva aquisição de um pensamento livre, o que por sua vez explica o desaire da sua obra.144

Hernâni Cidade

Pedro Calafate imputa não só a António Sérgio mas também a Hernâni Cidade a fixação do conceito de «estrangeirado» na cultura portuguesa.145 De facto, e com o propósito

bem expresso de evidenciar a «grande actividade que reintegrou Portugal na Europa culta, fazendo regressar a nefelibática inteligência portuguesa à natureza e à vida»146, Hernâni

Cidade publicou, em 1929, um longo Ensaio sobre a crise mental do século XVIII, no qual

exalta a «audácia dos grandes mestres de setecentos»147, tema que retomaria em obras

posteriores, nomeadamente no texto Uma revolução na vida mental da Península no século

XVIII (1934). Embora refira outros nomes e ressalte a «semente» lançada pela atividade da

Academia Real da História Portuguesa, Hernâni Cidade coloca em maior evidência Luís António Verney (que considera «iniciador da revolução mental de que saiu o mundo em que vivemos)148, Jacob de Castro Sarmento, Manuel de Azevedo Fortes, António Nunes Ribeiro

Sanches, Joaquim Soares de Barros e Vasconcelos e João Jacinto de Magalhães. Mais tarde, em edição posterior do mesmo Ensaio, o autor acrescenta a este escol de mestres os nomes de José Rodrigues Abreu e de Martinho de Mendonça de Pina e Proença Homem.149 A par

destes «mestres», acentua também o papel desempenhado por Pombal, nomeadamente na reforma da Universidade. Na sua opinião, Carvalho e Melo foi o «homem necessário» que os colocou «em larga comunicação espiritual com a Europa» e a ele se deveu a aplicação prática do pensamento destes homens, de outra forma sujeito ao esquecimento ou à incorporação «na sciencia estrangeira».150 Todavia, em momento algum encontrámos na sua

obra a referência direta dos «estrangeirados». Por outro lado, é notória a aproximação do

144 Cf. p. 75.

145 Pedro Calafate, «O idealismo racionalista e crítico de António Sérgio», in Pedro Calafate (dir.), História do

Pensamento Filosófico Português, vol. V: O século XX, t. I, Lisboa, Editorial Caminho, 2000, p. 119.

146 Hernâni Cidade, «Prefácio», in Ensaio sobre a crise mental do século XVIII, Coimbra, Imprensa da

Universidade, 1929, p. VI.

147 Idem, ibidem, p. VIII.

148 Hernâni Cidade, Uma revolução na vida mental da Península no século XVIII, sept. do Boletín de la

Universidad de Santiago, Santiago, El Eco Franciscano, 1934, p. 4.

149 Cf. Hernâni Cidade, Lições de Cultura e literatura portuguesa, vol. II, 7.ª ed. do Ensaio sobre a crise mental

do século XVIII, corrigida, atualizada e ampliada, Coimbra, Editorial Coimbra, 1984, pp. 62-63.

autor ao juízo de António Sérgio relativo ao mesmo escol setecentista, sobretudo à relevância de Luís António Verney e dos seus Verdadeiro método de estudar, que o autor dos Ensaios considera «a maior obra de pensamento que se escreveu em Português»151.

Joaquim Barradas de Carvalho

Joaquim Barradas de Carvalho, num estudo sobre o pensamento político e social de Alexandre Herculano publicado em 1949, faz referência à inexistência, em Portugal, de uma corrente de pensamento nacional, chamando a atenção para a exclusão a que, nos últimos séculos, têm sido votados os intelectuais mais capazes e «os mais clarividentes defensores dos interesses nacionais»152 — os «estrangeirados». Na verdade, Barradas de Carvalho

reconhece, à luz do pensamento de Herculano, que o «estrangeiramento» da classe intelectual proporciona determinadas vantagens conducentes ao desenvolvimento da vida económica e social do país, na medida em que os seus membros poderão apreender «as inovações da grande indústria» e beneficiar da experiência adquirida nos países mais desenvolvidos a fim de evitar entre nós «o que de grave se passou nesses países». Importa contudo — e o autor faz essa ressalva — que se criem condições que permitam a aplicação prática de tais inovações.153

Eduardo Lourenço

Também em 1949, num texto de título bem expressivo, «Europa ou o diálogo que nos falta», Eduardo Lourenço, à semelhança de Barradas de Carvalho, embora sem fazer referência direta a «estrangeirados», reconhece que em determinadas alturas raros indivíduos acreditaram ser possível tornar a concorrer com a Europa. Verney figura entre esses homens, tal como Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, Gama Barros e Raul Proença, os quais, pelo seu carácter excecional, «não constituem a expressão da cultura portuguesa»:

O carácter estritamente individual das suas tentativas, o facto de serem realizadas contra, ou à margem, do sentir e das expressões oficiais da cultura nacional, a sua fraca repercussão para além dum grupo reduzido em relação à massa pretensamente cultivada

151 António Sérgio, «O reino cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal», in Ensaios, t. II, ed. cit., p.

44.

152 Joaquim Barradas de Carvalho, As ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano, Lisboa, Seara Nova,

2.ª ed., 1971, p. 167.

do país, são um índice claro de que não constituem a expressão da cultura portuguesa, mas a excepção da cultura portuguesa.154

A formação de uma cultura nacional passaria, pois, pela insistência num diálogo constante de Portugal com a Europa, ou seja, pela participação e inclusão de Portugal na cultura europeia. Será, no entanto, mais tarde, em texto publicado na obra Destroços. O gibão de mestre Gil e outros ensaios, com o título «Nacionalistas e estrangeirados», que Eduardo Loureço desenvolverá o seu juízo sobre os «estrangeirados», as atitudes antagónicas manifestadas perante o conceito e a sua oposição aos chamados «nacionalistas»155. O autor

começa por esclarecer, na primeiras páginas do ensaio, o significado negativo imbuído no epíteto «estrangeirado», conservado pelo menos até à sua conceptualização no século XX:

É tido como estrangeirado o acto cultural em que se descortina — certa ou erradamente — não só uma predilecção por um modelo cultural diferente do nacional, como quase por consequência, uma aversão ou pelo menos, um distanciamento crítico em relação àquele que encarna ou simboliza a tradição nacional, o seu complexo de valores e a sua sensibilidade castiça.156

O advento do «estrangeirado» enquanto categoria cultural surgiu numa altura específica, como consequência natural da «grande revolução nacionalista que foi o Romantismo», quando a cultura se tornou elemento dominante da identidade nacional: «O romantismo é o momento da cultura europeia em que o singular se torna universal, o sentimento da diferença o fundamento da identidade.»157 Eduardo Lourenço considera a existência de duas tipologias

díspares de «estrangeirados», sendo uma anterior e outra posterior à «Revolução Romântica» — a primeira representada por um Verney e a segunda, por exemplo, por Eça de Queirós.158

A diferença entre ambas assenta no facto de no século XVIII ser ainda o catolicismo o que

154 Eduardo Lourenço, Heterodoxia I, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, p. 9.

155 O tema será devidamente considerado adiante, no subcapítulo «“Castiços” e “estrangeirados”: tradição e

inovação» (pp. 103-108).

156 Eduardo Lourenço, «Nacionalistas e estrangeirados», in Destroços. O gibão de mestre Gil e outros ensaios,

ed. cit., p. 140. Este ensaio, redigido em 1988, foi pela primeira vez publicado em 1991, no livro de atas do ciclo de conferências “Portugal e a Europa: Identidade e Diversidade” (cf. Jorge Gaspar et alii, Portugal e a

Europa: identidade e diversidade, [Porto], Edições Asa, 1991, pp. 99-112).

157 Eduardo Lourenço, «Nacionalistas e estrangeirados», in Destroços. O gibão de mestre Gil e outros ensaios,

ed. cit., p. 142.

158 Cf. Idem, ibidem. Sobre a noção de «Revolução Romântica», vide, e. g. o ensaio de Isaiah Berlin, «A

revolução romântica: uma crise na história do pensamento ocidental», in O sentido de realidade: estudo das

ideias e de sua história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, pp. 233-268, no qual o autor demonstra

que o Romantismo, mais do que um mero movimento, constituiu uma verdadeira revolução cultural, responsável por uma transformação dos paradigmas do pensamento ocidental.

define a identidade cultural, diversamente do que sucederá no século seguinte, em que a cultura deixa de adquirir uma expressão essencialmente religiosa para se tornar nacionalista. Neste sentido, ser «estrangeirado» no século XVIII

[...] é não pertencer ou ser suspeito de já não pertencer, àquilo que define simbolicamente a identidade de um povo, como o português ou o espanhol: o catolicismo [...]. É o caso, entre todos, arquétipo, do Cavaleiro de Oliveira, mas é também, em potência, o de todos os homens cultivados que a longa permanência no estrangeiro — em geral por motivo que tem que ver com o seu estatuto religioso — torna a priori suspeitos.159

O autor sublinha a pouca expressão do fenómeno dos «estrangeirados», que ocupa até ao século XIX um lugar marginal na cultura portuguesa, não sendo por isso uma categoria essencial para a caracterização desta. Apenas com António Sérgio irá adquirir efetiva dimensão cultural,160 assistindo-se, a partir de então, a uma alteração drástica no modo de

encarar o «estrangeirado»: deixa de ser somente o homem alheado ou desenraizado e desconhecedor das coisas pátrias para se tornar naquele que, mesmo geograficamente distante, não deixa de estar atento aos problemas que afetam o seu país, sobre o qual elabora apreciações críticas que visam denunciar os erros conducentes ao estado de decadência e indicar as possíveis soluções para uma reabilitação nacional, tornando assim viável o diálogo com a Europa. Esta visão luminosa dos «estrangeirados» não é, porém, absoluta: o próprio Eduardo Lourenço questiona-a por supor que se trata de uma posição extremista que não considera o processo cultural português.161 A sua posição é muito clara: sem desprezar o

valor inegável daqueles intelectuais de Setecentos, acusa no entanto o facto de terem agido perante a cultura portuguesa como se não fizessem parte dessa mesma cultura e com a convicção porventura excessiva de que somente a Europa poderia prover Portugal de meios para o seu desenvolvimento.162

Jaime Cortesão

159 Eduardo Lourenço, «Nacionalistas e estrangeirados», in Destroços. O gibão de mestre Gil e outros ensaios,

ed. cit., p. 143.

160 Cf. Idem, ibidem, pp. 143-144. 161 Cf. Idem, ibidem, pp. 148-149. 162 Cf. Idem, ibidem, pp. 158-159.

Existem pontos de contacto entre a atitude de Eduardo Lourenço perante os «estrangeirados» e a de Jaime Cortesão, que encontramos expressa na sua reconhecida obra Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, publicada pela primeira vez em 1952, no Brasil. Considera o plurifacetado autor que os «estrangeirados», pelo facto de terem residido durante muitos anos noutros países, não compreendiam verdadeiramente Portugal:

Quando, cerca de 1759, Sanches escrevia as suas Cartas, vivia há mais de trinta anos no estrangeiro. Residira longamente na Inglaterra, na França, na Holanda, na Itália, na Rússia. Hebreu de sangue e estrangeirado pela demorada formação e renovação intelectual nesses países, ele não compreendia, nem podia compreender o seu país de origem. E o que sucedia com ele, acontecia com muitos outros estrangeirados.163

Não significa esta posição que não admirasse o pensamento e a ação daqueles homens. Na verdade, acaba por admitir que o facto de terem passado largos anos no estrangeiro, sobretudo em países como a Inglaterra, a França ou a Alemanha, lhes permitiu denunciar com maior discernimento o atraso de Portugal. Mas considera mais relevante do que a ação dos «estrangeirados» a iniciativa de D. João V de trazer para o país estrangeiros que difundissem da cultura europeia e operassem uma renovação da cultura e da indústria portuguesas. Segundo Cortesão, D. João V fê-lo por ser «radicalmente português»164. Ao

mesmo tempo, o monarca soube tirar partido da experiência dos inúmeros intelectuais portugueses que viviam no estrangeiro, consultando-os em matéria de diplomacia e administração. Jaime Cortesão enumera alguns desses homens, os quais designa de «estrangeirados»: D. Luís da Cunha, o conde de Tarouca, José da Cunha Brochado, os condes da Ribeira Grande, os condes das Galveias, Sebastião José de Carvalho e Melo, o visconde de Vila Nova de Cerveira, o marquês de Alegrete, os dois condes de Ericeira. Trata- se, portanto, de uma perceção mais abrangente dos «estrangeirados» do que a de António Sérgio, que os tinha por uma minoria. Não obstante, Cortesão consente que entre o grande

163 Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, vol. III, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p.

107.

164 Idem, ibidem, p. 109. O autor pretende demonstrar que a tentativa de modernizar o saber em Portugal foi

anterior ao ministério pombalino e revela, inclusive, ser seu propósito «provar que a ele [D. João V] se deve, em grande parte, a introdução em Portugal dos métodos astronómicos para observar as longitudes; a renovação da escola portuguesa de cartografia; e o impulso dado ao estudo da geografia e à formação, em bases científicas, dum novo Atlas do Brasil [...]. Não foram poucos os estrangeiros que chamou a Portugal, para saciar a sua sede de fausto e de teatro: arquitectos, músicos, pintores e gravadores, empresários de ópera e cantores sacros e profanos [...]. Observemos apenas que não foram em menor número os engenheiros, os militares, os geógrafos, astrónomos, cartógrafos e matemáticos que contratou no estrangeiro e subsidiou com mão régia para os utilizar na renovação da cultura portuguesa e na aplicação das técnicas, necessárias à expansão [...].» (Idem, ibidem).

número de «estrangeirados» que partilhavam o mesmo desejo de renovação da cultura portuguesa e de difusão do espírito racionalista e do método experimental, apenas alguns, nomeadamente D. Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão, «professavam e levavam o racionalismo às suas consequências na política» e «aplicavam o espírito racionalista e crítico às instituições e institutos, tidos por sagrados»165.

Outro aspeto muito interessante do pensamento de Cortesão sobre esta matéria e que o distingue de outros autores — como António Sérgio e Álvaro Ribeiro — é que não manifesta uma visão maniqueísta de «castiços vs. estrangeirados». Por exemplo, Jaime Cortesão considera D. Luís da Cunha o mais estrangeirado e, ao mesmo tempo, o mais castiço de todos os intelectuais do seu tempo, sendo prova disso o anticastelhanismo presente nas suas Instruções a Marco António de Azevedo Coutinho, mas também no seu Testamento Político (1747-1749): «De todos esses estrangeirados o mais estrangeirado foi seguramente D. Luís da Cunha [...]. Todavia, ele permanece português com a marca indelével da genuidade de origem. Português e anticastelhano.»166

José Sebastião da Silva Dias

O autor de Portugal e a cultura europeia (séculos XVI e XVIII) é mais categórico: «A

renovação da cultura nacional [no séc. XVIII] deve-se quase exclusivamente à influência dos estrangeiros e estrangeirados.»167 José Sebastião da Silva Dias considera «estrangeirados»

D. Luís da Cunha, «velho no corpo e jovem na alma»168, a quem os longos anos passados

nas cortes europeias concederam não só experiência, mas sobretudo uma capacidade ímpar de analisar os problemas de que então padecia a vida nacional; Alexandre de Gusmão, «Discípulo e confrade de D. Luís da Cunha nos ideais iluministas»169; e sobre todos Luís

António Verney, a quem dá maior relevo, considerando-o um «iluminista típico»170,

manifestamente influenciado pelas doutrinas de Newton e de Locke, mas também inspirado por Charles Rollin, Grócio e Pufendorf (ética racional), S’Gravesande e Musschembroek

165 Idem, ibidem, pp. 112-113. 166 Idem, ibidem, p. 110.

167 José Sebastião da Silva Dias, Portugal e a cultura europeia (séculos XVI a XVIII), Porto, Campo das Letras,

2006, p. 167. A primeira edição data de 1952.

168 Idem, idem, pp. 169-170. 169 Idem, idem, p. 171. 170 Idem, idem, p. 238.

(conceções filosóficas newtonianas), Muratori (jurisprudência), Antonio Gevese, Corsini, frei Fortunato de Bréscia (lógica), Manfredi e De Martini (física), entre outros.171

Ainda a respeito de Verney, Silva Dias acentua a importância do Verdadeiro método de estudar, assinalando os princípios que norteiam a obra: a crítica ao isolamento do país; a diferença entre a filosofia peripatética, a filosofia de Aristóteles e filosofia católica; a eleição da razão em detrimento da autoridade; e o progresso como necessidade e objetivo primeiro da humanidade.172 Acrescenta que apesar de não se tratar de uma obra original, comunga das

ideias então vigentes nos círculos intelectuais europeus e denota uma compreensão, da parte do seu autor, do iluminismo, não só na sua reação ao gongorismo e ao barroco, mas também na sua crítica aos escolásticos e aos próprios costumes nacionais. «O Iluminismo era para si, ao mesmo tempo, uma filosofia e uma fé»173, aponta Silva Dias. De facto, a obra de Verney

assenta numa forte convicção no poder regenerador da razão e da cultura, por sua vez dependentes de uma autêntica reforma pedagógica. A publicação do Verdadeiro método de estudar deu início a uma polémica que Silva Dias considera estar «entre as mais célebres da nossa história e, pelas consequências, talvez mais importante ainda que a iniciada com a “Questão Coimbrã” e terminada nas “Conferências do Casino”»174, tendo suscitado um

embate contra as mentes mais conservadoras que constituíam, no fundo, a elite intelectual portuguesa.

Embora com uma repercussão menor na cultura nacional, não deixou de ser relevante o papel desemprenhado por outros diplomatas portugueses. Silva Sias refere António Freire de Andrade Encerrabodes, Marco António de Azevedo Coutinho, o Conde de Tarouca e o próprio Sebastião José de Carvalho e Melo. Refere também alguns dos que emigraram «por motivos de segurança ou de recreio», nomeadamente Isaac de Sequeira Samuda, Jacob de Castro Sarmento e António Nunes Ribeiro Sanches, homens que conquistaram elevado reconhecimento nas sociedades científicas estrangeiras, sobretudo inglesas e francesas, mas que viram fracassar as suas tentativas de modernizar a ciência e o ensino em Portugal.

Por fim, o autor salvaguarda que, apesar das resistências, Portugal não foi imune à renovação cultural, tendo ocorrido um «despertar da curiosidade intelectual no país»175,

fortemente motivado pelo contacto, diálogo ou intercâmbio de muitos portugueses com a 171 Cf. Idem, ibidem, p. 240. 172 Cf. Idem, ibidem, pp. 242-247. 173 Idem, ibidem, p. 249. 174 Idem, ibidem. 175 Idem, ibidem, p. 175.

cultura europeia. Esse contacto foi estabelecido por homens como José Freire Monterroio Mascarenhas (Curso de Filosofia Experimental, 1725), Marques Correia (Tratado da circulação do sangue, 1735), José Rodrigues de Abreu (Historiologia médica, 1733-1752), Martinho de Mendonça de Pina e Proença (Apontamentos para a educação de um menino nobre, 1734), Manuel de Azevedo Fortes (Lógica Racional, Geométrica e Analítica, 1744) e Francisco Xavier de Meneses, conde da Ericeira (Extractos Académicos dos Livros que a Academia de S. Petersburgo mandou à de Lisboa, 1738), em torno do qual se reuniu um círculo com influência determinante na promoção da discussão das «ideias modernas».

Joel Serrão

Num texto redigido e publicado pela primeira vez em 1955, que o próprio autor considera mais ideológico do que científico,176 Joel Serrão utiliza de forma lacónica o

conceito de «estrangeirado» para definir os homens que tentaram influir na cultura portuguesa um pouco da evolução que se fazia sentir na Europa. No entanto, se por um lado não recusa o conceito, por outro também não o problematiza. Quanto à identificação desses «estrangeirados», o historiador apenas salienta o impacto causado pela publicação do Verdadeiro método de estudar e, tal como Eduardo Lourenço177, não considera os

«estrangeirados» somente um fenómeno do século XVIII, dilatando a sua existência aos séculos XIX e XX, mediante uma breve alusão à sua ação enquanto reformadores do ensino: