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Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado Democrático de Direito Penal

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ADRIANA EIKO MATSUMOTO

Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado Democrático de Direito Penal

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ADRIANA EIKO MATSUMOTO

Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado Democrático de Direito Penal

Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Odair Furtado, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Psicologia Social.

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PRÁXIS SOCIAL E EMANCIPAÇÃO: PERSPECTIVAS E CONTRADIÇÕES NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL

Adriana Eiko Matsumoto

Banca Examinadora:

___________________________________________ Prof. Dr. Odair Furtado (Orientador)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

___________________________________________ Profª. Dra. Maria Lucia Silva Barroco

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

___________________________________________ Profª. Dra. Maria da Graça Marchina Gonçalves Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

___________________________________________ Profª. Dra. Terezinha Martins dos Santos Souza Universidade Federal do Recôncavo Baiano

___________________________________________ Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho só foi possível pela conjugação de esforços e de apoio de muitas pessoas; sei que não há espaço para listar todas aqui, apenas farei menção a algumas e certamente cometerei injustiças pelo esquecimento de outras.

Inicialmente, faço um agradecimento formal às agências fomentadoras de pesquisa que possibilitaram que este trabalho pudesse ser feito na Universidade e Programa que escolhi: CAPES, CNPq e, posteriormente, à bolsa “Acordo Interno” da PUC/SP.

Agradeço ao meu orientador, Odair Furtado, por aceitar o desafio dessa empreitada, pela escuta, orientação e amizade, e também a todos do NUTAS (Núcleo Trabalho e Ação Social) da PUC/SP, pela companhia amiga nos momentos festivos e também momentos difíceis típicos da vida de uma doutoranda. Especialmente, quero registrar agradecimento à Renata Leatriz, Miriam, Graça Lima, Ilídio, André, Tatiana, Lidiane, Daiane e mais recentemente, Sérgio e Luis.

Agradeço aos amigos de militância e de vida em comum, Ermínia, Moacyr (também por sua paciência na formatação final do texto), Fabio Beloni, Marcos Garcia, Lúcio Costa, Bruno Simões, Liliane, Ingrid, Patrick Cacicedo, Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho, Pe. Günther, Heidi Cerneka, Anderson Lopes Miranda, Valdelice Veron, Carmem Barros, Daniela Skromov, a todo plenário da gestão 2010-2013 do CFP, aos companheiros da ULAPSI: Manuel Calviño, Edgar Barrero, Eduardo Viera, entre outros, aos membros do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus” e aos membros do “Grupo de Trabalho Segurança Pública Justiça e Cidadania”, por me ensinarem que a vida se faz num incessante caminhar e que a luta política é nosso sobrenome.

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Renata Paparelli, Agnaldo Gomes, Luciana Szymanski, Maria Cristina Vicentin, Déborah Sereno e principalmente à equipe de Psicologia Sócio-Histórica da PUC/SP, especialmente, à Elisa Zaneratto, Wanda Maria (Ia), Graça Gonçalves, Edna Kahale e Ana Bock.

Um especial agradecimento àqueles que me ajudaram a transformar a ideia inicial de pesquisa nessa tese, inclusive com valiosas contribuições após leituras sucessivas de minha produção no decorrer deste período: Bruno Carvalho, Netto Berechtein, Terezinha Martins dos Santos Souza (Teca) e, mais recentemente, Damião Trindade. Isso tudo é fruto de nossos diálogos e das inquietações que provocaram em mim. Obrigada por causarem meu desassossego!

Sem palavras para expressar minha gratidão a quem me deu apoio afetivo e possibilitou que eu pudesse sentir-me potente para desempenhar esta tarefa: a minha família. Obrigada Horácio Hiroshi (Pai), Benilde Líbia (Mãe), Midori, Ivan, Luciene, Alexandre e Yuri (meus queridos sobrinhos), isso só foi possível porque vocês existem e estiveram comigo, mesmo eu sendo tão ausente nesse período. À minha querida mãe, a quem dedico esta tese, ainda me lembro do sorriso que me deu quando recebeu a notícia que eu tinha entrado na seleção do doutorado na PUC/SP e do quanto me motivou e me ajudou a cumprir esta tarefa. Obrigada Maria Inês, Jorge Cláudio, Raquel e Daniel – nossas conversas e encontros foram oásis de existência nesse momento tão crucial. Obrigada Lívia K., Rogério (Roger Far), Cleusa, Catia, Gisele e Marcelo (Loiro) – vocês são, de fato, parte de minha família!

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RESUMO

A partir dos pressupostos da perspectiva materialista-histórico e dialética, buscou-se construir uma análise que permitisse a leitura da totalidade das relações de produção, notadamente os efeitos da crise estrutural do capital, e seus desdobramentos ideológicos na expressão da superestrutura no campo jurídico, penal e criminal. Para isso, elaborou-se narrativa da trajetória do Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania, criado em 2008 na cidade de São Paulo com o intuito de organizar a participação de representantes do segmento “sociedade civil” na 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, bem como se procedeu à análise dos documentos públicos e propostas do Grupo para esta Conferência. Concluímos que a possibilidade de superação do Direito Penal e da relação hegemonicamente consolidada no processo de criminalização da massa excedente de mão-de-obra não pode se dar apenas pela transformação da superestrutura, mas sim a partir de uma práxis social (mediada contraditoriamente pela causalidade e teleologia) que, para contribuir para a emancipação humana deve integrar em seus enfrentamentos a superação do Estado Democrático de Direito Penal, compreendido como forma-Estado síntese da expressão da barbárie no capitalismo contemporâneo, em que convive a igualdade jurídico-política com a faceta classista do Estado, qual seja, totalitária, penal e policial para os trabalhadores.

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RESUMÉN

Desde de los presupuestos de la perspectiva materialista-histórica y dialéctica, se intentó construir un análisis que permitiera la lectura de la totalidad de las relaciones de producción, en particular los efectos de la crisis estructural del capital, y sus implicaciones ideológicas en la expresión de la superestructura en el ámbito jurídico, penal y criminal. Para ello se elaboró narrativa de la trayectoria del Grupo de Trabajo Seguridad Pública, Justicia y Ciudadanía, creado en 2008 en la ciudad de São Paulo con el fin de organizar la participación de representantes del segmento "sociedad civil" en la 1 ª Conferencia Nacional de Seguridad Pública, así como se procedió al análisis de los documentos públicos y las propuestas del Grupo para esta Conferencia. Se concluye que la posibilidad de superación del Derecho Penal y la relación hegemónicamente consolidada en el proceso de criminalización de la masa excedente de mano de obra no se puede dar solamente por la transformación de la superestructura, sino de una praxis social (mediada contradictoriamente por la causalidad y la teleología), que, para contribuir a la emancipación humana debe integrar en sus enfrentamientos la superación del Derecho Penal del Estado Democrático, entendido como forma-Estado expresión de síntesis de la barbarie en el capitalismo contemporáneo, en el cual convive la igualdad jurídico-política con la faceta clasista del Estado, a saber, totalitária , penal y policial para los trabajadores.

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ABSTRACT

This study, which has been supported by the dialectical and historical materialism principles, has intended to conduct the relations of production analysis in their totality, noticeably considering the capital structure crisis effects and its ideological consequences over the superstructure into the juridical, penal and criminal fields. Therefore, we have developed the narrative of the Public Security, Justice and Citizenship Working Group’s trajectory. The Group was founded in 2008 in the city of São Paulo in the purpose of arranging “civil

society” representatives participation into the 1st National Conference on Public

Security. It’s also been carried out the analysis of public documentation and the Group’s propositions for that Conference. We have concluded that the possibilities of overcoming both Penal Law and hegemonically defined relation among mass criminalization and manpower surplus cannot only be performed by superstructure transformation but, namely, by social praxis. Such praxis, mediated by contradictions between causality and teleology, and aimed at contributing to human emancipation, must face the overcoming of Penal Law in the Democratic State of Law. The aforementioned state is considered as the formulation synthesis of barbarism in the contemporary capitalism in which coexists juridical-political equality and institutional classism, based on a totalitary, penal and police model for workers.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 12

1.1 INCURSÃO NO TEMA: UM BREVE RELATO ... 12

1.2APRESENTAÇÃO DA TESE ... 18

2. CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E OS DESDOBRAMENTOS NAS

POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA ... 28

2.1 CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E A GESTÃO DA MISÉRIA ... 44

2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS DE “ESTADO PENAL”,“ESTADO POLICIAL” E “ESTADO DE EXCEÇÃO” 58

3. A SUPERESTRUTURA SE REESTRUTURA: MOVIMENTO LEI E ORDEM E O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO ... 71

3.1 CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL: DA LEGITIMAÇÃO À CRÍTICA DA

SUPERESTRUTRA ... 74

3.2ATÔNICA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL NO BRASIL ... 91

4. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA:

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIAL DE MARX PARA A ANÁLISE DA PRÁXIS SOCIAL COMO OBJETO DA PSICOLOGIA SOCIAL ... 103

4.1APRÁXIS SOCIAL COMO OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA SOCIAL 116

4.2 APONTAMENTOS PARA UMA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL: MEDIAÇÕES DA CAUSALIDADE E TELEOLOGIA .. 125

5. LUTA DE CLASSES E PRÁXIS SOCIAL: A ANÁLISE DE UMA

EXPERIÊNCIA DURANTE A 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA ... 130

5.1A1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA (1ª

CONSEG)...133

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5.3. O GRUPO DE TRABALHO SEGURANÇA PÚBLICA, JUSTIÇA E CIDADANIA (GTSPJC): TRAJETÓRIA E PROPOSTAS ... 142

5.4.MEDIAÇÕES E REFLEXÕES TEÓRICAS:ANÁLISE DAS PROPOSTAS PARA A 1ª CONSEG ... 160

5.4.1. Participação Social e Democracia: os desafios no interior do Estado Democrático de Direito Penal ... 161

5.4.2. Política Pública de Segurança e Direitos Humanos: uma contradição insolúvel? ... 166

5.4.3 Sistema Prisional e a resistência ao encarceramento em massa e à criminalização dos pobres ... 170

5.4.4 Sistema de Polícias: para! Quem precisa? ... 174

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: APONTAMENTOS SOBRE A PRÁXIS SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL ... 180

7. REFERÊNCIAS ... 188

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1. INTRODUÇÃO

“Só padece de solidão aquele que se isola das lutas de seu tempo” (Dom Quixote, Miguel de Cervantes).

1.1 Incursão no tema: um breve relato

Foi em um estágio curricular no ano de 1998, durante o curso de psicologia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Bauru), que tive o primeiro contato com o interior da prisão, seus atores, funcionários e presos. Como uma equipe de estagiários, iniciamos uma intervenção grupal com pessoas em situação de privação de liberdade que aguardavam a progressão de pena, em uma Penitenciária masculina de segurança máxima, para um regime considerado mais “brando”, o semiaberto.

Os sons das grades se fechando atrás de mim, aquela escuridão típica do cárcere, aqueles rostos sem vida e sem expressão, todo o horror e angústia que senti pela primeira vez ainda estão vívidos em minha lembrança quando trato da questão prisional. Outro mundo se descortinou diante de meus olhos: regras de convivência, relações hierarquizadas entre os funcionários, entre estes e os que estavam cumprindo suas penas e entre a própria população aprisionada. Nesse estágio de Orientação Vocacional eu e meus colegas de faculdade1 tivemos uma longa jornada com aquele grupo de pessoas presas e buscamos refletir sobre o projeto de vida que estavam construindo dentro da perspectiva de terem suas penas progredidas do regime fechado para a modalidade do regime semiaberto. A partir dessa experiência, pudemos conhecer algo que parece estar inacessível para a sociedade além-muros: os sonhos, desejos e expectativas dos encarcerados sobre os rumos futuros de sua própria existência.

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Em meus primeiros estudos sobre a teoria do cotidiano, a partir das reflexões trazidas pela autora Agnes Heller e sobre a psicologia sócio-histórica, notadamente as contribuições de Vigotski e Leontiev, foi possível produzir um relato desta experiência de estágio, intitulado: A construção de um espaço de vivência não-cotidiana com população carcerária. Dessa forma, discutiu-se a possibilidade, ainda que momentânea, de superar os grilhões (simbólicos, mas também muito concretos em vários casos) que limitavam a circulação de identidades e subjetividades a que todos estavam fadados a reproduzirem no interior do cárcere. Surgiria ali o gérmen de uma reflexão que me perseguiria até hoje: seria possível desenvolver uma inserção profissional qualificada no contexto prisional, de modo que superasse a função punitiva e segregadora dessa instituição?

A partir dessa experiência, busquei indagar-me incessantemente sobre o papel de uma instituição que sabidamente está falida e fadada a sempre fracassar, quando se foca em seu ideal “ressocializador”. Contudo, também foi por meio dessa experiência que me coloquei diante da contradição de uma instituição que fora erigida não para “reintegrar” aqueles que ali estavam, mas, simplesmente, para segregá-los, aniquilá-los, puni-los e neutralizá-los. Nessa época, imbuída das provocações trazidas por Foucault em seu célebre Vigiar e Punir, já havia compreendido que a função primordial das prisões era lançar um controle na massa social, de modo a estampar a todos a figura do mal, do desviante, do delinquente – dispositivos fundamentais para a constituição e consolidação da sociedade disciplinar.

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Estar tão próxima da exclusão propiciada pela prisão, compreender as implicações macrossociais dessa realidade, conhecer alguns dos elementos determinantes da vida de cada uma das pessoas presas na realização do delito, observar a degradação de vidas enclausuradas naquele cotidiano institucional... Todos estes elementos eu pude analisar a partir de algumas de suas determinações constitutivas, o que me colocou na trincheira da luta pela vida e direitos humanos nas prisões.

Nesse momento, pude perceber que o trabalho do psicólogo nas instituições prisionais assumia uma posição institucional mais próxima de um ideal punitivista e segregador, do que aliada a uma perspectiva que pudesse promover a liberdade dos sujeitos encarcerados. Era a época da obrigatoriedade da elaboração dos laudos para progressão de pena, do exame criminológico como elemento para avaliar a condição individual do sentenciado para desfrutar de um benefício2. Assim, a prática em psicologia jurídica, ao restringir as condições sociais, históricas e os determinantes da vida concreta das pessoas encarceradas em características individuais e psicológicas, contribuiu para a naturalização e patologização das consequências da exploração social da miséria a partir da elaboração de uma noção sobre o denominado criminoso.

Foi nesse momento, em 2003, que ingressei como aluna do Mestrado em Educação: Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com a proposta de refletir e conhecer melhor a educação levada a cabo no interior das prisões, precisamente por partir da ideia de que a possibilidade de haver uma suspensão da realidade desumanizadora imposta pelo cárcere estava potencializada, principalmente, pelas ações realizadas no campo da educação. Se à psicologia cabia olhar a pessoa presa como

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desviante (sob a égide do Exame Criminológico), cabia à educação compreender este indivíduo como educando, como aluno.

Dessa forma, pude avançar nas leituras da psicologia sócio-histórica, nas contribuições de Leontiev sobre a atividade (como uma categoria que nos dá condições de compreender os nexos psicológicos envolvidos no trabalho), e de Vigotski sobre a aprendizagem e os processos psicológicos complexos, bem como nos intérpretes e outros pesquisadores que partiam desses autores para discutir a educação, como Newton Duarte e Demerval Saviani. Pude também compreender que a Educação no sistema prisional como lócus da superação de uma vivência desumanizadora do cárcere era uma visão idealizada, a qual pude desconstruir no decorrer do mestrado3. Nesse momento, desvelava-se a seguinte questão: qual seria o eixo a perseguir, no que se refere às prisões, que dá condições de entender a função específica que esta instituição exerce na sociedade capitalista em sua configuração atual, apontando suas contradições?

Importante registrar nessa breve história que, ao final da elaboração da dissertação de mestrado, solicitei à Secretaria de Administração Penitenciária transferência da unidade prisional em que atuava (no interior de São Paulo), para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha (HCTP). A partir de 2004, portanto, iniciei minhas atividades junto a esta instituição e, moto-contínuo, uma nova realidade era apresentada para mim. O HCTP me ensinou que pior que a realidade prisional, era poder aliar o estigma do criminoso ao do louco nas denominadas medidas de segurança.

Novamente, vidas enclausuradas, vidas interrompidas, sujeitos diagnosticados com transtornos psiquiátricos e avaliados como portadores de alto grau de periculosidade... Novos desafios se colocaram e, contraditoriamente, também se deu uma possibilidade de nova síntese, pois

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neste local pude encontrar uma forma de ser psicóloga que conciliava, ao menos sensivelmente, minhas posições ético-políticas e o fazer laboral, pois tive a experiência de atuar no processo de desinstitucionalização de internas que estavam na Colônia de Desinternação Progressiva - Ala Feminina. Nesse ínterim iniciei de maneira mais sistematizada uma intervenção militante no que diz respeito à interface da Psicologia com o sistema prisional, fundamentalmente pela condição de conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.

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Em 2007 pedi exoneração do cargo público que ocupava (psicóloga da Secretaria de Administração Penitenciária). O plano era conseguir me organizar para iniciar o doutorado, iniciado em 2008. Contudo, além deste fato, havia a compreensão de que, como trabalhadora do cárcere, não ocupava um lugar social que garantiria condições de poder avançar com ações mais efetivas na luta pelos direitos humanos e pela desconstrução daquela instituição.

Uma experiência fundante desse movimento de reposicionar-me diante da questão penal e criminal foi minha participação no Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania, criado para organizar a intervenção de alguns representantes do segmento da Sociedade Civil na 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública. Isso me qualificou para ampliar a atividade política para além das questões penitenciárias, possibilitando uma articulação com outras esferas das lutas sociais que também são criminalizadas pelo Estado. Quais as perspectivas e desafios dessa luta? Frente a toda essa realidade e suas contradições, em meu doutoramento busquei responder ao seguinte problema: como se constitui a práxis social no enfrentamento às políticas de encarceramento, buscando desvelar quais são as lutas de nosso tempo e como elas se configuram hoje? Em que medida estas se voltam para uma ação emancipatória e qual o contorno deste horizonte que se coloca para a sua práxis: emancipação política ou humana?

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proporcionando uma reflexão ainda mais contundente do papel da psicologia nos espaços da prisão, a partir da análise da categoria da totalidade e historicidade.

Também em 2010 pude iniciar experiência docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a qual se efetivou após concurso ao final daquele ano. Desde então, venho atuando junto ao Departamento de Psicologia Social e encontrado formas ainda mais integradas de aliar aos debates críticos, projetos e supervisão de estágios, potencializando ações no campo da Psicologia como instrumento de transformação social no âmbito dessa contribuição sócio-técnica específica.

Por fim, neste breve relato descritivo de meu percurso no tema, desde 2011 estou como conselheira do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2010-2013) e pude participar ativamente da publicação de Resolução do Conselho Federal sobre a atuação do psicólogo no sistema prisional (Resolução CFP 012/2011) que, dentre outras orientações, coloca que é dever do psicólogo atuar a partir da perspectiva dos direitos humanos, buscando superar a fragmentação posta pela atuação como mero auxiliar do Poder Judiciário e retirando, por força de normativa, a elaboração de avaliação psicológica nos moldes do Exame Criminológico na prática desta categoria no âmbito prisional, sendo que estes enfrentamentos todos ainda continuam e desdobram-se em outras lutas e especificidades...

1.2 Apresentação da tese

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compreensão de que o Estado Democrático de Direito Penal é a forma-Estado que nos ajuda a compreender a essência contraditória das políticas voltadas

para a “questão social” 4 (modus operandi na gestão do Estado para os pobres)

aliado ao caráter repressivo (e exterminador) que o mesmo vem apresentando na atualidade por meio das políticas de segurança pública.

Sob o imperativo da autorreprodução destrutiva do capital (MESZÁROS, 2002), configura-se o encarceramento maciço da população expropriada aliado às políticas sociais compensatórias, de caráter neoliberal. A categoria forjada para esta análise, Estado Democrático de Direito Penal, encerra em si esta contradição do Estado Burguês em que convive a igualdade jurídico-política com a faceta de classe do Estado, qual seja, totalitária, penal e policial para os trabalhadores e, principalmente, para aqueles em situação de subemprego ou desemprego. Nesse sentido, abordaremos nessa tese a problemática específica das ações caracterizadas como de caráter repressivo do Estado em seu sentido estrito, a saber, as políticas de segurança pública, ainda que tenhamos como suposta a articulação intrínseca delas com as políticas sociais (bem como a compreensão de que estas políticas sociais carregam matizes conservadores e coercitivos), a partir da reflexão de sua função subsidiária no contexto da precarização do trabalho típica da crise estrutural do capital.

Fundamentalmente, a partir da década de 1990 houve um crescimento vertiginoso das prisões e do recurso maciço ao encarceramento nas sociedades modernas, principalmente nos denominados países desenvolvidos e democráticos5. A “penalidade neoliberal”6 (WACQUANT, 2001) apresenta-se

4

O conceito “questão social” será problematizado no Capítulo 2, contudo, vale apontar aqui que o trataremos a partir do debate relativo à típica produção de precarização de condições de vida imposta pelo modo de produção capitalista à classe trabalhadora, o que significa que estamos tratando de apenas

uma questão social: a exploração do trabalho no capitalismo e seus efeitos na vida concreta da classe que vive do trabalho.

5

De acordo com dados informados por Wacquant (2003, p. 30), o Bureau of Justice Statistics, Correctional Populations inte United States publicou o seguinte quadro: a população sob controle das autoridades penais (em milhares de pessoas) cresceu em mais de 159%, de 1980 a 1992, e este quadro só veio se agravando a partir de então. Wacquant (2001, p. 103) também expõe esse processo de crescimento encontrado na Europa, ao destacar os índices de alguns países, de acordo com a fonte

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(na aparência) como um paradoxo ao propor remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado social. Contudo, o Estado, ao empreender tal tarefa, não o faz em contraposição às políticas sociais voltadas aos pobres, mas em ocasião delas e em sua complementação, tendo como objetivo a manutenção da exploração classista característica do modo de produção capitalista (essência). A ideologia e as práticas da Tolerância Zero, erigidas no interior do Movimento Lei e Ordem, andam pari passu com as investidas neoliberais no trato social e tais ações são todas manifestações deste Estado Democrático de Direito.

Com a finalidade de expor os múltiplos determinantes que compõem esta realidade, buscou-se trabalhar a partir do método erigido por Marx em sua teoria social para a compreensão da Economia Política, o que significa a necessidade de desvelar as mediações que compõem e determinam o objeto de nossa análise, qual seja, a práxis social no enfrentamento ao Estado Democrático de Direito Penal, compreendendo que este está inserido na totalidade que dialeticamente relaciona as condições materiais da produção e reprodução da vida social.

Evidencia-se no texto Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política, escrito em 1859, que “[...] o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é elevar-senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado” (MARX, 1978, p. 117). Nesse sentido, o método crítico-dialético construído por Marx compreende, necessariamente, a noção de processualidade histórica, a categoria ontológica da totalidade, a negatividade, a contradição, o processo de produção e reprodução do Ser Social em suas contradições, em suas conexões e mediações. Além disso, está a compreensão de que a teoria, ao revelar o movimento do real, contribui com subsídios para uma ação transformadora sobre a realidade, outrora objeto de sua análise. Portanto, ao analisar o fenômeno de constituição de políticas de encarceramento (as quais

6

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apresentaram recrudescimento em nível mundial na atualidade), temos que compreendê-lo a partir da dimensão da totalidade das relações de produção, a qual “[...] forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência” (MARX, 1989, p. 25).

Marx afirma que “em todas as formas de sociedade se encontra uma produção determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua

posição e influência sobre as outras” (1978, p. 18). É preciso, pois, desvelar as

tendências encontradas na forma mais elaborada do Estado Democrático de Direito Penal para compreendermos como este se desenvolve nos demais países, tomadas suas características e diferenças. Em outra passagem do mesmo texto, Marx pontua que: “a anatomia do homem é a chave da anatomia

do macaco” (idem, p. 17), ou seja, para realizar a análise de uma dada

realidade, há que se ter como parâmetro os elementos mais desenvolvidos encontrados na totalidade.

Dessa forma, para analisar o aparente paradoxo da constituição de um Estado autoritário que lança mão de recursos de encarceramento em massa no seio das sociedades denominadas democráticas, há que se desvelar os elementos que se apresentam em sua expressão mais desenvolvida, condições em que as contradições estejam mais evidentes, como é o caso da implementação de políticas penais cada vez mais totalitárias na gestão da miséria nos EUA, a partir do final da década de 80 do século XX (WACQUANT, 2001, 2003). As perguntas fundamentais que direcionam o estudo diante do fenômeno investigado são: que conjunto de relações o determina? Quais suas contradições essenciais e suas tendências de desenvolvimento?

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(WACQUANT, 2001, p. 23). Nesse sentido, a relação do Estado com a população em situação de “vulnerabilidade social” se dá por meio de contornos bem claros no campo do controle moral e na propagação de um ideário reprodutivista, pautado na lógica do trabalho precarizado.

Há, portanto, um complexo jogo de interdependência nas políticas sociais e penais, que, inserido na totalidade, deve ser explicitado para que se compreendam os determinantes do desenvolvimento atual das políticas penais, bem como o papel que tal conformação de Estado ocupa no desenvolvimento do capital, na geopolítica mundial e no controle social das massas. Assim, do ponto de vista das políticas de segurança se instaura um novo senso comum penal, gestado nos EUA e disseminado globalmente (WACQUANT, 2001).

Tal análise sobre a realidade estadunidense pode contribuir para a reflexão sobre o notório direcionamento coercitivo que o Estado vem assumindo nos diferentes países ditos democráticos. É nesse sentido que nos interessa conhecer o Movimento de Lei e Ordem, surgido na década de 1970 nos Estados Unidos da América e que ganha expressão e notoriedade a partir da disseminação da política de Tolerância Zero, doutrina elaborada a partir de meados de 1980 pelo Manhattan Institute e a Heritage Foundation. Esta doutrina tem suas bases nas contribuições de James Q. Wilson (cientista social) e George Kelling (psicólogo) sobre a relação causal entre desordem e criminalidade – a Teoria das Janelas Quebradas, que é uma reapresentação da noção de gênese delitiva que fora sistematizada ao final do século XIX. Nesta perspectiva, velhas ideias da criminologia clássica se travestiram de tecnologia penal eficiente.

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No caso da América Latina, segundo Zaffaroni (2007) e Rosa del Olmo (2004), as políticas criminais e penais, bem como o desenvolvimento de uma criminologia latino-americana se deram a partir de um contorno altamente opressor, baseado nas concepções pseudocientíficas das teorias racistas e lombrosianas, principalmente no que diz respeito à população negra (aos indígenas cabia fundamentalmente o extermínio), e pela configuração de um sistema penal inquisitorial violador dos direitos humanos. Sem a experiência de um Welfare State, as prisões latino-americanas tornam-se espaços privilegiados para a efetivação do gueto, ou como menciona Vera Malaguti Batista (2003), de um apartheid criminológico.

Estados Unidos da América, Europa, América Latina... O desenvolvimento quase em progressão geométrica dos índices de encarceramento e de ações realizadas pelas políticas de segurança pública, aliado à redução dos gastos sociais, ou mesmo aumento de implementação de ações sociais compensatórias, à erradicação ou neutralização dos sindicatos, à flexibilização das regras de contratação, de demissão e a organização do trabalho, e, consequentemente à instituição do trabalho assalariado flexível como sinônimo de “emprego e cidadania, via a instauração conjunta de trabalho forçado (workfare) para os beneficiários da ajuda social” (WACQUANT, 2001, p. 77), constituem ingredientes fundantes da constituição do Estado Democrático de Direito Penal e que devem ser considerados para uma análise que permita reconstruir o fenômeno em suas bases concretas. A que responde este movimento e como se articula em relação à tendência expansionista (e destrutiva) do capital?

Discutiremos estas questões no Capítulo 2: Crise Estrutural do Capital e os Desdobramentos nas Políticas de Segurança Pública, tendo

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Sob o corolário da transnacionalização do capital e as necessárias formas de controle sobre as massas, uma das expressões que traduzem a síntese mais complexa do Movimento Lei e Ordem na atualidade é a política de guerra às drogas, que apresenta uma intencionalidade de criminalizar as estratégias de sobrevivência para uma considerável parcela da população em vulnerabilidade que encontra no pequeno comércio de drogas uma fonte de remuneração mais diretamente acessível, legitimando, assim, uma guerrilha de perseguição penal a estes sujeitos e também aos usuários pobres. Os acontecimentos na região da Luz na extensão da Rua Helvética e arredores (região denominada de Cracolândia) no município de São Paulo no início de 20127 revelam exemplarmente ações repressivas no campo da segurança pública, aliadas a uma concepção conservadora de política social voltada à população em vulnerabilidade social.

Dessa forma, também no Brasil a guerra às drogas potencializa-se na medida em que se disseminam justificativas no campo da saúde sobre a epidemia do uso de drogas, em especial do uso do crack. Constitui-se como ponto legitimador de um controle ainda mais acirrado sobre a população pobre com investimentos no campo da segurança pública e participação das Forças Armadas e, desde 2012, da Força Nacional de Segurança Pública sob a prerrogativa da Garantia de Lei e Ordem (GLO), operando sob diretrizes que causam indignação a qualquer defensor de um Estado Democrático de Direito. Discutiremos estas contradições no Capítulo 3: A Superestrutura se reestrutura: Movimento Lei e Ordem e o Surgimento do Direito Penal do

Inimigo, de forma a incluir análises de outras políticas que não as específicas

de segurança pública, criminais e penitenciárias, pois partimos da hipótese de que há mesmo uma complementariedade entre estas e as políticas sociais num Estado Democrático de Direito Penal.

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Em relação ao crescimento da população prisional adulta, alguns dados demonstram uma realidade contundente. No Brasil, de acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) 8, de janeiro de 2000 a dezembro de 2010, a população prisional mais que dobrou, passando de 232.755 presos para 496.251. Somente no Estado de São Paulo, se somarmos os dados referentes à Secretaria de Segurança Pública e Secretaria da Administração Penitenciária, em 18 anos houve um crescimento de cerca de 340% (de 55.000 presos em 1994 para 189.059 em 2012, em números aproximados) 9.

A partir do censo demográfico da população prisional realizado no Estado de São Paulo10, se verificou que 71% dos presos não haviam completado o Ensino Fundamental, 14% haviam passado pela FEBEM (atual Fundação CASA) por conflito com a lei, 34% voltaram a ser presos por terem sido enquadrados em outro delito e cerca de 80% estavam presos pelo crime de roubo (MATSUMOTO, 2005), ou seja, o tipo penal mais encontrado é o crime contra o patrimônio. Estes dados também são representativos da população prisional brasileira, bem como daqueles que (ainda) estão em liberdade e são alvos preferenciais das investidas penais e da política de segurança pública, e apontam para a configuração de uma seletividade no projeto de encarceramento, pois, no interior de suas instituições, está caracterizada uma população expropriada dos direitos sociais, num movimento incessante de criminalização dos pobres – processo que Zaffaroni (2001) denomina de “culpabilidade por vulnerabilidade”.

Somente a partir destas análises sobre as expressões penais como desdobramentos dos determinantes atuais do movimento do Capital - que Mészàros (2002) aponta como sendo a crise estrutural do capital, é que

8 Disponível em: www.mj.gov.br/depen/. Acesso em: 20/05/2012. 9 Disponível em:

http://portal.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D2 8407509CPTBRNN.htm. Acesso em: 20/07/2012 (Dados coletados no site do Ministério da Justiça, pois a Secretaria de Administração Penitenciária não atualiza dos dados estatísticos de população prisional em seu site no Estado de São Paulo desde 2006).

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poderemos investigar quais são as resistências e enfrentamentos realizados por coletivos organizados e que se colocam contra as políticas de encarceramento em massa.

Há que se considerar a dimensão subjetiva que viceja no interior das manifestações e participações populares nos processos de construção das políticas públicas no campo penal e de segurança pública, tanto agindo para o recrudescimento das leis (exemplificada pelo clamor popular exigindo mais punição), quanto às mobilizações visando estratégias minimalistas das ações penais como resposta às mazelas sociais do capitalismo (caracterizadas por seu viés contra-hegemônico). Quais as possibilidades de enfrentamento e como a Psicologia Social pode compreender estes fenômenos? Voltaremos a estes questionamentos no Capítulo 4: Emancipação política e emancipação humana: contribuições da teoria social de Marx para a análise da práxis

social como objeto da psicologia social.

Uma experiência realizada no campo contra-hegemônico foi a organização da sociedade civil para participar da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (1ª CONSEG), realizada em 2009. O presente trabalho parte de um processo de sistematização da trajetória do Grupo de Trabalho de Segurança Pública, Justiça e Cidadania (GTSPJC), criado em 2008 na cidade de São Paulo para mobilizar e organizar a participação da sociedade civil na 1ª CONSEG e que contou com a participação de diversas entidades, coletivos e movimentos sociais vinculados à defesa dos direitos humanos nas políticas de segurança e propõe-se a problematizar as contradições postas neste enfrentamento e a caracterizar a práxis social levada a cabo nas mobilizações e pautas políticas para esta Conferência.

(28)

experiência durante a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública,

tendo como foco a 1ª CONSEG.

Por fim, como será apresentado no Capítulo 6: Considerações finais: apontamentos sobre a práxis social no enfrentamento ao Estado

Democrático de Direito Penal, compreender como se desenvolve e se

manifesta a atividade política nestas condições, a partir da análise de um caso específico (mobilização de representantes da sociedade civil na cidade de São Paulo para participar da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública), é também buscar desvelar: (a) quais são as lutas de nosso tempo e como elas se configuram hoje; (b) em que medida estas se voltam para uma ação emancipatória e (c) qual o contorno deste horizonte que se coloca para esta práxis: emancipação política ou humana?

Eis, portanto, o objeto de estudo: a práxis social no enfrentamento às políticas de encarceramento em massa neste contexto de acirramento da autorreprodução destrutiva do capital. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é desvelar a relação posta entre as lutas sociais dos trabalhadores, a partir das propostas elaboradas por este Grupo de Trabalho (como representante de parte do segmento da sociedade civil na 1ª CONSEG), em suas contradições quanto ao processo emancipatório levado a cabo na práxis social dentro de um Estado Democrático de Direito Penal.

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2. CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E OS DESDOBRAMENTOS NAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA

Ao basearmo-nos nos pressupostos apresentados pela perspectiva de Marx para analisar a sociedade civil-burguesa, faz-se mister explicitar as vicissitudes do modo de produção capitalista em sua fase contemporânea e, para isso, partiremos das contribuições de István Mészàros, dentre outros autores, a respeito do sistema sociometabólico do capital para podermos compreender qual o papel que as políticas criminais de encarceramento em massa tem exercido no denominado Estado Democrático de Direito.

O desenvolvimento do capital está caracterizado, de acordo com Mészàros (2002):

[...] pela subutilização institucionalizada tanto de forças produtivas como de produtos e, por outro, pela crescente, mais constante do que brusca, dissipação ou destruição dos resultados da superprodução, por meio da redefinição prática da relação oferta/demanda no próprio processo produtivo convenientemente reestruturado. É precisamente esta importante mudança na relação entre produção e consumo que habilita o capital a se livrar, por enquanto, dos colapsos espetaculares do passado, como a dramática queda de Wall Street em 1929. Por esta via, no entanto, as crises do capital não são radicalmente superadas em nenhum sentido, mas meramente “estendidas, tanto no sentido temporal como em sua localização estrutural na ordenação geral” (pp. 696-697).

Ao refletir sobre as tendências da crise estrutural do capital, Mészàros parte, fundamentalmente, das análises produzidas por Marx, como demonstra este trecho dos Grundrisse (texto finalizado em 1858), ao dizer que:

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Dessa forma, para Mészàros (2002), o sistema sociometabólico do capital, que tem seu núcleo central formado pelo tripé capital-trabalho assalariado-Estado, passa por uma crise estrutural (que é a crise de acumulação do capital) caracterizado por uma longa onda recessiva que apresenta algumas especificidades e características como tentativas para a superação desta crise, como a produção destrutiva e a precarização do trabalho, as quais serão problematizadas no decorrer deste capítulo. Ao contrário dos ciclos de expansão que configuraram o capitalismo ao longo da história (com alternância de períodos de expansão e crise), temos presenciado, desde final da década de 60 e início dos anos 70 do século XX, uma crise “endêmica, cumulativa, crônica e permanente” (MÉSZÀROS, 2009), que é

caracterizada pela “disjunção radical entre produção para as necessidades

sociais e autorreprodução do capital” (ANTUNES, 2009, p. 12, grifos do autor). A tese apresentada por Mészàros em Para Além do Capital e reapresentada no livro A crise estrutural do Capital, demonstra, a partir dos pressupostos de Marx, que o sistema capitalista não pode mais se desenvolver sem recorrer à exacerbação da taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias. Isso traz desdobramentos profundos para a produção, circulação e consumo, bem como para a cultura e formas de sociabilidade e, consequentemente, para a constituição subjetiva dos seres humanos que partilham desta realidade concreta.

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enquanto um modo global de controle do metabolismo social. [...] O sistema do capital é caracterizado por uma tripla fratura entre 1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes (MÉSZÀROS, p. 11)11.

Assim, segundo Mészàros (2002), a partir dos anos de 1970, há uma entrada do sistema metabólico do capital em uma crise estrutural, sendo que este argumento também pode ser sustentado por várias razões:

a) Até o momento, mesmo após décadas de hegemonia incontestável do neoliberalismo por todo o mundo, o capital não conseguiu retomar as taxas de lucro e crescimento existentes na época dos anos dourados. Mesmo que em alguns países exista a ideia de crescimento e expansão, há que se considerar que o desenvolvimento do capital é combinado e desigual12 e que, por isso, precisamos analisar a totalidade e não fenômenos isolados, como já foi exposto aqui.

b) O processo de reprodução ampliada do capital, de fato, é intenso e aparece como incontestável, mas isso não significa que a crise não é orgânica e permanente. Pois, esse mesmo fenômeno coexiste com um sistema capitalista que só existe na e através da crise;

c) A explicitação do caráter incontrolável e desgovernado do processo de reprodução do capital contribuiu para a compreensão de que as tentativas de reformar o capital (Estado de Bem-Estar Social) ou de controlar o capital (experiências de transição pós-capitalista) fracassaram completamente ou tiveram que se submeter a ele – por exemplo, a adesão de toda a social-democracia ao neoliberalismo ou nos processos de restauração de sistemas claramente capitalista no leste europeu ou, ainda, nas aberturas ao mercado realizadas na China

11 Disponível em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/out4_02.pdf 12

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ou em Cuba. Assim, a tese de Mészàros é que a crise do socialismo realmente existente não foi imanente ao comunismo, mas produto da própria crise do capital;

d) A grande máscara que revela a gravidade da crise é justamente o fato de que o capital hegemônico na contemporaneidade é o capital financeiro, isto é, a forma mais elaborada, complexa e parasitária de capital;

e) É exatamente no bojo desse movimento centrífugo e descontrolado que vemos fortalecida a ideologia da democracia e desenvolvimento como corolários dos Estados-nações frente à transnacionalização do capital; f) Por fim, a característica mais fundamental da crise estrutural é o fato de

que o gigantismo da produção capitalista só é possível pela ampliação de sua dimensão destrutiva. Assim, não há um processo de reprodução ampliada do capital caracterizado por uma produção genuína, mas por uma autorreprodução destrutiva que se manifesta das mais diferentes formas: nulificação de vastas quantidades de riqueza e recursos acumulados (por exemplo, na utilização em larga escala da ajuda externa para salvaguardar bancos e agências financeiras da bancarrota em 2008), intensificação da liquidação de pequenos e médios capitais, subutilização e obsolescência planejada de aparatos tecnológicos (que aparece na esfera fenomênica como movimento de permanente renovação do capital), destruição de força de trabalho (intensificação das taxas de extração de mais-valia relativa, trazendo para baixo a equalização da taxa diferencial de exploração a partir dos processos de precarização do trabalho, retirada de direitos, etc.), a extração predatória dos recursos naturais para movimentar o circuito da obsolescência programada e a importância crescente do complexo militar-industrial na economia capitalista.

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massa dos que só dispõem da sua força de trabalho) e para a humanidade. O fundamento último desta verdadeira mutação na dinâmica do capital reside no que o Prof. Mészàros vem caracterizando como a especificidade do tardo-capitalismo: a

produção destrutiva, que presentifica a crise estrutural do capital. Todos os fenômenos e processos em curso na ordem do capital nos últimos vinte e cinco anos, através de complexas redes e sistemas de mediação – que exigem investigações determinadas e concretas para a sua identificação e a compreensão da sua complicada articulação – estão vinculados a esta transformação substantiva. Eles afetam a totalidade das instâncias constitutivas da vida social em escala planetária (NETTO, 2010, p. 22).

Nesse sentido, na tese do Mészàros o caráter estrutural da crise não é uma tendência atual, mas um processo orgânico e permanente, pois não há qualquer possibilidade de superação (no sentido hegeliano, Aufhebung) dessa crise segundo a lógica do próprio capital. Isso não significa que há uma profecia sobre o fim do capital, mas apenas que não há qualquer possibilidade dele se reproduzir sem, ao mesmo tempo, produzir barbárie e destruição. Da mesma forma, ele não supera suas crises conjunturais, mas apenas joga para o futuro o desdobramento de seus problemas.

Portanto, para Mészàros: “[...] a crise estrutural não se origina por si só em alguma região misteriosa: reside dentro e emana das três dimensões

internas” (2002, p. 798) e na articulação entre estas, a saber: produção,

consumo e circulação/distribuição/realização. Para o autor, na medida em que essas dimensões estivessem funcionando no sentido de garantir a extração da mais-valia, com aumentos da taxa de lucro, não haveria crise estrutural, mas sim crises cíclicas, as quais não afetariam o conjunto das três dimensões, não

colocando “[...] em questão os limites últimos da estrutura global” (idem,

ibidem).

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Assim, para o autor só é possível considerar uma crise estrutural do capital quando:

[...] a tripla dimensão interna da autoexpansão do capital exibe perturbações cada vez maiores. Ela não apenas tende a romper o processo normal de crescimento, mas também pressagia uma falha na sua função vital de deslocar as contradições acumuladas do sistema. (...) quando os interesses de cada uma deixam de coincidir com os das outras, até mesmo em última análise. A partir deste momento, as perturbações e “disfunções”

antagônicas, ao invés de serem

absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas, tendem a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com elas um perigoso complexo mecanismo de deslocamento de contradições (Ibid., p. 799).

Contudo, ao recorrer à maximização do expediente de utilização decrescente do valor de uso, determinando a separação entre o que é produzido da contrapartida de atender a uma necessidade humanamente configurada, o capital em sua fase contemporânea volta-se tão-somente à sua autorreprodução, o que, por sua vez, faz intensificar suas consequências destrutivas.

Não há como nas relações sociais de produção calcadas pela reprodução da lógica do capital se subsumir o valor de uso em relação ao valor de troca, mas a subordinação em níveis cada vez mais elevados deste último sobre o primeiro, por meio da produção de bens cada vez mais supérfluos, descartáveis e de obsolescência programada, constitui-se recurso primordial que tem sustentado a manutenção de seu ciclo reprodutivo na atualidade. A precarização estrutural e a corrosão do trabalho, bem como a destruição dos recursos naturais, são elementos que compõe tal realidade, delineando um quadro assustador no qual não há horizonte possível sem que haja uma transformação radical:

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Assim, a autorreprodução destrutiva do capital, característica de seu sistema metabólico, tornou-se abrangente e adquire feições totalitárias e incontroláveis, na medida em que determina toda sorte de relações de produção e reprodução da vida (em suas bases materiais e culturais, bem como dos recursos naturais para sua manutenção). Ou seja, não se caracteriza apenas por ser uma crise especificamente econômica. Para Mészàros (2002), o movimento do capital se expressa, na atualidade, por ter se aproximado dos limites absolutos de sua própria reprodução em seus limites estruturais.

Em primeiro lugar [...] a expressão “limites absolutos” não implica algo absolutamente impossível de ser transcendido, como os apologistas da “ordem econômica ampliada” dominante tentam nos fazer crer para nos submeter à máxima do “não há alternativa.” Esses limites são absolutos apenas para o sistema do capital, devido às determinações mais profundas do seu modo de controle sociometabólico. Em segundo lugar [...] não devemos imaginar que o incansável impulso do capital de transcender seus limites deter-se-á de repente com a percepção racional de que agora o sistema atingiu seus limites absolutos. Ao contrário, o mais provável é que tente de tudo para lidar com as contradições que se intensificam, procurando ampliar a margem de manobra do sistema do capital em seus próprios limites estruturais (MÉSZÀROS, 2002, p. 219).

Para Mészàros (2002), como o alcance do capital é global e estrutural, não há como enfrentar suas determinações se não se romper radicalmente com suas bases também de maneira universal. Dessa forma, o autor nega a possibilidade de alternativas à ordem hegemônica ocorrerem em regiões determinadas do cenário geopolítico mundial (em países isolados) e critica as tentativas gestadas no interior das políticas da social-democracia, as quais nomeia de linha de menor resistência ao capital.

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acumulação relativa do capital (ainda que perdurem formas de acumulação primitiva), e da necessária expansão do consumo.

O fato de o capital poder continuar a acumulação por meio da mais intensa exploração de mais-valia absoluta e relativa, e, ao mesmo tempo (ao contrário das expectativas de Marx, que possuíam bons fundamentos para o século XIX), estar longe de ser inexoravelmente pressionado a “ampliar a periferia da circulação”, indica que os limites para a expansão do capital estão significativamente ampliados e que as condições objetivas de saturação da estrutura global de operações lucrativas do capital significativamente redefinidas. Naturalmente, esta mudança, por sua vez, também significa que as tendências que apontam para a necessidade de uma alternativa socialista estão efetivamente bloqueadas enquanto prevalecerem as condições recém-criadas que permitem ao capital manter seu controle sobre o metabolismo socioeconômico graças à adequada reconfiguração da linha de menor resistência (MÉSZÀROS, 2002, p. 683).

Como Marx já pontuou extensivamente a respeito das contradições imanentes do capital, Mészàros (2002) destaca que, para compreendermos sua essência (tendência), temos que analisar quais as formas que sua aparência assume na atual fase monopolista financeira (contratendência). Assim, o monopólio, tendência geral do capital, é contrabalanceado pela concorrência (contratendência), a qual aparece como se fosse a lógica atual que pauta as relações de produção. O capital como contradição viva deve, pois, ser analisado nesta dialética tendência-contratendência, de modo que:

[...] cada tendência principal desse sistema de produção e distribuição só se faz inteligível se levamos plenamente em conta a contratendência específica à qual aquela está objetivamente ligada. Isso acontece mesmo quando, no relacionamento entre elas, um dos lados das interdeterminações contraditórias necessariamente predomina, de acordo com as circunstâncias sócio-históricas prevalecentes (MÉSZÀROS, 2002, p. 653).

(37)

ser analisada de forma conjuntural e a partir do pressuposto da lei do desenvolvimento desigual e combinado, o que significa que pode haver um movimento pendular entre estas contradições num mesmo país e diferenças significativas na comparação entre países (até mesmo de um mesmo continente) e que todas elas devem ser interpretadas tendo como pano de fundo as diferentes nuances do desenvolvimento capitalista em sua totalidade. Assim, ao afirmar que a partir da década de 1970 se inicia uma crise estrutural, Mészàros (2002, 2003, 2009) aponta para a limitação das margens de manobra de deslocamento de contradições no interior do sistema metabólico do capital e, por isso, circunscreve que, a partir de então, suas bases contraditórias se expressam de maneira mais contundentes.

Entretanto, a absoluta necessidade de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão — o segredo do irresistível avanço do capital — trouxe consigo, também, uma intransponível limitação histórica. Não apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês, mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capital em geral. Pois este sistema de controle do metabolismo social teve que poder impor sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente irracional, independentemente do caráter devastador de suas consequências; ou teve que adotar algumas restrições racionais, que, diretamente, contradiziam suas mais profundas determinações como um sistema expansionista incontrolável. O século XX presenciou muitas tentativas mal sucedidas que almejavam a superação das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica (com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções estruturais viáveis (MÉSZÀROS, p. 9).13

Outra característica do sistema metabólico do capital, a partir das análises que Mészàros (2002) faz ao avançar nas contribuições dadas por Marx, dá-se pelo crescimento do complexo industrial-militar induzido pelas políticas financeiras e de relações exteriores baseadas na lógica monopolista levada a cabo, fundamentalmente, pelos Estados Unidos da América. O

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imperialismo14 é a tônica dominante da autorreprodução destrutiva do capital e, segundo Mészàros (2003), podemos observar cada vez mais o fortalecimento de sua dimensão militar. Segundo ele, “com suas bases militares, os Estados Unidos ocupam militarmente o território de nada menos que 69 países: um número que continua a crescer com a ampliação da OTAN” (p.55).

Mészáros (2003) discute, nesse contexto, sobre dois elementos postos no desenvolvimento da ideologia e estrutura organizacional estadunidense, a saber: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Tratado de Mútua Segurança entre Japão e Estados Unidos, afirmando que nos dois casos há a lógica de transformação de uma associação militar defensiva em ofensiva e de consolidação da lógica de estratégia de ataque preventivo. Em ambos tratados há a autorização para que os EUA ataquem qualquer país sem que seja respeitada a soberania nacional (tanto dos alvos dos ataques, quanto dos países considerados aliados) e sem que seja comunicado até mesmo aos organismos internacionais de controle de segurança criados pelo imperialismo no pós-guerra (Conselho de Segurança da ONU). Nesse sentido, o que aparece como capital globalizado é, na aparência, a expressão da tendência imperialista levada a cabo também pela política expansionista-militar estadunidense. Trataremos com mais detalhes, ao final deste capítulo, sobre os efeitos do complexo industrial-militar nas políticas de segurança pública e penal, ao discutirmos a crise estrutural do capital e as tentativas de manutenção de seu ciclo reprodutivo também a partir da utilização do recurso ao encarceramento maciço e violência de Estado, principalmente contra a juventude pobre e negra.

Em relação à situação do trabalho, temos vivenciado uma precarização e erosão do trabalho contratado e regulamentado (características do modelo

14 Mészàros aponta três fases distintas na história do imperialismo, a saber:

a) Imperialismo colonial moderno construtor de impérios;

b) Imperialismo “redistributivista” antagonisticamente contestado pelos principais potências em favor de suas empresas quase-monopolistas;

(39)

hegemônico de trabalho assalariado no século XX). É relevante, pois, abordar o fenômeno da reestruturação produtiva do capital nesse contexto.

De acordo com Antunes (2006), em relação ao Brasil, cujo desenvolvimento capitalista é caracteristicamente hipertardio, somente a partir do “getulismo” vivenciamos um verdadeiro processo de acumulação industrial. O desenvolvimento industrial brasileiro, marcadamente estatal e de feição nacionalista, conheceu seu segundo salto no padrão de acumulação durante o governo de Juscelino Kubitschek (meados da década de 50 do século XX). Mas, foi a partir do golpe de 1964, portanto, durante a ditadura civil-militar com o direcionamento para a industrialização e internacionalização do Brasil, que nosso país experimentou seu terceiro salto na acumulação industrial.

Chico Oliveira (2003) ao analisar esta realidade, afirma que:

Celso Furtado, em Formação econômica do Brasil, fornece a chave desta conjunção: crise mundial de 1930 e revolução interna, uma espécie de 18 de Brumário brasileiro, em que a industrialização surge como projeto de dominação por outras formas da divisão social do trabalho, mesmo às custas do derrocamento da burguesia cafeicultora do seu lugar central (p. 127-128).

Contudo estes ciclos de desenvolvimento no Brasil têm algumas peculiaridades que merecem ser destacadas. De acordo com Ianni (2004), no nosso país a história é atualidade, na medida em que vivemos num mosaico de contextos em que formas primitivas de acumulação convivem com a mais desenvolvida expressão do capitalismo financeiro. É este contexto de fragmentação que vai configurando uma desarticulação como característica predominante na formação social brasileira – Ianni comenta que o Brasil Moderno é, pois este caleidoscópio de muitas épocas:

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Já em meados de 1980, sob a chamada Nova República, este padrão de acumulação sofreu alterações importantes, por meio de uma incipiente mutação organizacional e tecnológica no interior do processo produtivo. Partiremos de reflexões que já foram produzidas sobre esse momento histórico, exatamente porque representa condição fundante para a compreensão de como o acirramento das políticas penais, que se deu em escala mundial, constitui-se no Brasil.

De acordo com Ricardo Antunes e Márcio Pochmann (2008), as características do processo de reestruturação produtiva do capital, observáveis em escala mundial, constituem o acirramento da superexploração do trabalho, as formas de subcontratação e de terceirização, a “acumulação flexível” e o

receituário do “ideário japonês”. Ao analisar a história recente de nosso país,

compreende-se que foi nos anos 90 do século XX que a reestruturação produtiva desenvolveu-se intensamente no Brasil.

Foi, portanto, a partir dos anos 90, sob a condução política em conformidade com o ideário e a pragmática definidos no Consenso de Washington, que se intensificou o processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, processo que vem se efetivando mediante formas diferenciadas, configurando uma realidade que comporta tanto elementos de continuidade como de descontinuidade em relação às fases anteriores. Há uma mescla nítida entre elementos do fordismo, que ainda encontram vigência acentuada, e elementos oriundos das novas formas de acumulação flexível e/ou influxos toyotistas no Brasil, que também são por demais evidentes (ANTUNES, 2006, p. 19).

O processo de reestruturação produtiva é, portanto, expressão da reorganização acumulativa do capital e um desdobramento da tentativa de amenizar sua crise estrutural (acirramento de suas contradições intrínsecas), o que significa que não pode ser explicado como uma consequência do desenvolvimento linear e racional do capitalismo (até mesmo etapista ou evolucionista), como sua manifestação de um desenvolvimento tecnológico. Este processo de reestruturação iniciou-se em um momento característico do capitalismo que, de acordo com Otávio Ianni (2004), pode ser denominado

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de mundo, ou seja, a liberação crescente e generalizada das atividades econômicas propagadas a partir do Consenso de Washington15, compreendendo a produção, distribuição, troca e consumo. É a constituição do assim chamado Estado Mínimo.

É com o novo ciclo de globalização do capitalismo que se desenvolvem as classes sociais e os grupos social-mundiais, simultaneamente à criação de estruturas mundiais de poder nas quais predominam total ou amplamente os interesses das elites governantes e das classes dominantes mundiais (IANNI, 2004b, p. 142).

A implementação das políticas neoliberais nos chamados países em desenvolvimento se deu de maneira globalizada, ainda que com matizes específicos em cada região. No caso do Brasil, alguns elementos relativos à abertura de mercado e modernização da economia, principalmente a partir dos anos de 1990, são percebidos pelos efeitos gerados para a massa dos trabalhadores, num processo de precarização cada vez maior das condições de trabalho, aumento do desemprego estrutural e mudanças nos hábitos de consumo e distribuição das mercadorias.

A situação do desemprego no Brasil dentro deste contexto é relatada por Pochmann (2006), quando nos informa que:

No ano de 2003, o indicador de desemprego nacional, segundo o IBGE e com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, alcançou mais de 8,5 milhões de pessoas, ainda que para o Datafolha, em pesquisa publicada em maio de 1999, o volume de desempregados no país estaria em torno de 10 milhões de pessoas. Se considerado ainda o conjunto de dados produzidos pelo Censo Demográfico do IBGE para o ano 2000, o universo de desempregados seria de 11,5 milhões de pessoas.

Referências

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