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Criminologia e Direito Penal: da Legitimação à Crítica da Superestrutra

3. A SUPERESTRUTURA SE REESTRUTURA: MOVIMENTO LEI E ORDEM E O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

3.1 Criminologia e Direito Penal: da Legitimação à Crítica da Superestrutra

Como já foi apresentado anteriormente, a partir do momento histórico que se caracteriza pela exacerbação do pauperismo no seio do desenvolvimento do capital, adquirindo este feições imperialistas e ainda mais totalitárias, é que no campo das ciências humanas, desenvolve-se uma série de teorias oriundas desse campo ideológico erigido pelas contradições postas no real, dentre elas, a concepção de uma gênese delitiva localizada unicamente no sujeito que cometia o crime. Assim, ao abstrair o contexto e o fato do delito, a Escola Liberal Clássica do Direito Penal 34, o compreende como “[...] possuidor de uma estrutura real e um significado jurídico autônomo, metafisicamente hipostasiado: o ato da livre vontade de um sujeito.” (BARATTA, 2002, p. 38).

Rosa del Olmo, em seu célebre livro A América Latina e sua

Criminologia (2004), problematizou o surgimento da criminologia como uma

ciência dedicada ao estudo do delito e da delinquência, forjada e determinada por momento histórico específico na Europa. Para a autora, a criminologia como ciência surge no final do século XIX, fundamentalmente a partir da obra

L’uomo delinquente de Cesare Lombroso35.

Ora, todo sistema penal responde a um sistema de produção (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004) e estas mediações são escamoteadas pelo processo de ideologização, subsidiados pelas teorias supostamente científicas produzidas para esta finalidade. Nesse sentido, a descontextualização, parte fundante do processo de naturalização da “questão social” e da produção da ideologia dominante (que é expressão das ideias da classe dominante), era característica dessas concepções e é neste momento histórico que Cesare

34 Referência a teorias sobre o crime, direito penal e a pena desenvolvidas na Europa entre

séculos XVIII e XIX, como por exemplo as teorias de Bentahm na Inglaterra, Feuerbach, na Alemanha e Beccaria na Itália (Baratta, 2002, p. 32).

35 Cesare Lombroso (1835

– 1909), médico italiano, considerado o idealizador e fundador da escola de antropologia criminal italiana principalmente pelo lançamento de seu livro, “O Homem Delinquente”, em 1876.

Lombroso escreve seu L’uomo delinquente, síntese importante de uma época

em que se urgiam explicações científicas sobre a desordem que assolava e ameaçava a ordem burguesa.

Os estudos da escola italiana não faziam mais que corroborar “cientificamente” o que se queria demonstrar. Recorde-se que, por exemplo, os primeiros estudos de medição de Lombroso foram feitos com soldados, mas esses soldados eram do sul da Itália. A inferioridade racial era a única inferioridade que a ideologia dominante podia aceitar para justificar as diferenças que a exploração originava. (...) Não há dúvida então que a antropologia criminal (leia-se criminologia) seria o instrumento necessário nesse momento também dentro da Itália. (DEL OLMO, Rosa, 2004, p. 51)

Em relação ao delinquente, compreendido a partir da concepção liberal característica da ideologia surgida neste contexto histórico e, a partir daí, disseminada, “[...] a solução seria isolá-lo em um ambiente institucional fechado que proporcionaria as condições necessárias para refletir e adquirir os hábitos da ordem” (DEL OLMO, Rosa, 2004, p. 57). As ciências do campo psi-jurídico deram legitimidade para a compreensão de que este comportamento desviante não era apenas fruto do livre arbítrio, mas também de fraturas e falhas na constituição orgânica ou moral destes indivíduos criminosos.

A ideologia liberal estava mudando e, em consequência, também mudava a ideologia punitiva. Se os métodos anteriores haviam fracassado, o delito devia ser controlado de outra maneira [...] O delito se converteria em um problema médico-psicológico pela necessidade de curar o delinquente, ou, em última instância, isola-lo, se incurável, para que não contaminasse os outros [...] O “estado de periculosidade” será o elemento decisivo para que a criminologia decida se o indivíduo se “cura” ou não. Para cada indivíduo examinado no “laboratório carcerário” haverá um tipo de tratamento. Tratamento que se concebe como “medida de defesa social” e não como simples castigo. Entretanto, a “classificação dos perigosos sociais dependerá do “senso comum” de quem classifica (e decide o tipo de tratamento). Isto é, de acordo com os valores próprios da ideologia de uma determinada sociedade histórica” (DEL OLMO, Rosa, 2004, pp. 67-68).

As alianças psi-jurídicas no tratamento do delinquente ganham sustentação a partir das teorizações sobre os inimigos naturais da sociedade

elaboradas por Rafael Garofalo36, jurista e criminólogo italiano da Escola Criminal Positiva e que trabalhou juntamente com Lombroso. Garofalo afirmava ser papel da sociedade produzir uma espécie de seleção natural, eliminando os seus inimigos: “mediante uma matança no campo de batalha a nação se defende de seus inimigos externos; mediante uma execução capital, de seus inimigos internos” (Garofalo, 1891 in: Zaffaroni, 2007, pp. 93-94). A definição que Garofalo propagava sobre o inimigo estava encharcada pelo etnocentrismo e teorias racistas, importantes elementos ideológicos característicos desta época. A respeito disso, Zaffaroni comenta que:

A periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo onticamente reconhecível, provenientes da melhor tradição positivista e mais precisamente garofaliana, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na supressão

física dos inimigos. O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais cedo ou mais tarde, acaba no campo de concentração

(ZAFFARONI, 2007, p. 104, grifos do autor).

Além do dispositivo da periculosidade, outro elemento importante é gerado pelos criminólogos italianos, a saber: a classificação (supostamente científica) dos anormais. É creditada a Enrico Ferri a descoberta de que o criminoso é um anormal moral (RAUTER, 2003): suas características seriam a insensibilidade, covardia, preguiça, vaidade, mentira, sendo que o criminoso seria incapaz de ter controle moral – como os indivíduos tidos como honestos. Esta expressão do anormal moral é ainda mais potente em sua capacidade de disseminar-se no corpo social, na medida em que os marcadores não são mais as características físicas (como em Lombroso). “A anormalidade, a tendência para o crime, pode agora ser reconhecida em hábitos de vida, em comportamentos considerados antissociais” (Idem, 2003, p. 35). Surge, nesta época, a tendência a classificar os indivíduos segundo sua disponibilidade futura para o crime.

36 Nascido em 1851 e falecido em 1934, Garofalo foi importante expoente da Escola Criminal

Positiva Italiana, fundada por Cesare Lombroso. Introduziu a relevância dos aspectos psicológicos e antropológicos nos estudos da criminologia, considerando a periculosidade uma característica inata dos delinquentes, os quais eram tomados por ele como uma variação involuída da espécie humana.

Contudo, isso não significou a superação das teorias racistas no Direito Penal, nem sua disseminação nas políticas criminais. Não por acaso, os estudos no campo da criminologia da Escola Positiva também contribuíram para o chamado racismo científico. Lombroso, ao definir características físicas e psíquicas “herdadas de seus ancestrais”, fortaleceu, assim, a ideia de que os criminosos teriam um biótipo diferente dos considerados normais. Essa concepção ganhou terreno em vários países e se desenvolveu de forma característica no Brasil, país que viveu a escravatura e que ainda reproduz elementos do preconceito travestidos de uma ideologia de democracia racial. Como afirma Vera Malaguti Batista:

O processo de construção da ordem burguesa no Brasil enfrenta o problema da massa de ex-escravos excluída do mercado de trabalho, aperfeiçoando a eficácia das instituições de controle social, baseado no modelo racista e positivista de Cesare Lombroso. (BATISTA, 2003, p. 58).

Essas noções continuam ordenando muitas das teóricas criminológicas na atualidade, bem como as práticas repressivas e preventivas no campo da segurança pública. Um exemplo disso diz respeito aos critérios utilizados pelos policiais quando fazem a abordagem policial em indivíduos considerados suspeitos. A autorização para a abordagem pessoal, ou busca pessoal, é regulada pelo disposto no Código de Processo Penal em seu artigo 244: “a busca pessoa independerá de mandato, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita”. Nesse sentido, a constituição do que é considerada fundada

suspeita está povoada pelas concepções racistas e se desdobra na escolha de

quais são os indivíduos considerados perigosos na sociedade hoje.

Nilo Batista, em seu discurso proferido na abertura do XV Congresso Internacional de Direito Penal, ao referir-se à escravatura negra no Brasil que dura até 1888, fala da articulação do direito penal público a um direito penal privado- doméstico, na implantação de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilação e tortura dos negros [...] São raízes que frutificam na implantação da ordem burguesa no final do século XIX, na recepção da doutrina da segurança nacional no século XX, nas políticas urbanas de apartação, nas campanhas de lei e ordem (BATISTA, 2003, p. 57).

Dessa forma, a Escola Criminal Positiva, que teve como principais expoentes Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo, produziu e disseminou uma criminologia atravessada pelo conceito de gênese delitiva articulada com o racismo científico e uma noção de periculosidade como característica de personalidade, a partir de uma suposta elaboração científica que se dá pela experiência sensível, positivada e observável, aplicando métodos de redução, observação e experimentação aos fatos sociais, filosóficos e humanos.

Eis a expressão de uma criminologia liberal que funciona como “[...] ideologia substitutiva, adequada à mediação das contradições sociais no período monopolista do capitalismo” (CIRINO dos Santos, Juarez. In: BARATTA, Alessandro, 2002, p. 14). De fato, este processo de criminalização dos pobres, como Cirino dos Santos nos aponta, é o “mais poderoso mecanismo de reprodução das relações de desigualdade do capitalismo” (idem, p. 18).

É precisamente a partir desta ideologia de defesa social, surgida a partir da revolução burguesa, mas potencializada pelas teorias científicas do século XVIII e XIX, que se disseminam os saberes e as práticas tanto da Escola Clássica Liberal (Bentham, Beccaria e Feuerbach) quanto da Escola Criminal Positiva (Lombroso, Ferri e Garofalo). O conteúdo dessa ideologia de defesa social pode ser sintetizado pelos seguintes elementos:

a) Princípio de legitimidade. O Estado como expressão da

sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle social (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias). Estas interpretam a legítima reação da sociedade, ou da grande maioria dela, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante individual e à reafirmação dos valores e das normas sociais.

b) Princípio do bem e do mal. O delito é um dano para a

sociedade. O delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem.

c) Princípio da culpabilidade. O delito é expressão de uma

atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas, presentes na sociedade mesmo antes de serem sancionadas pelo legislador.

d) Princípio da finalidade ou da prevenção. A pena não tem, ou

não tem somente, a função de retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contramotivação ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de ressocializar o delinquente.

e) Princípio de igualdade. A criminalidade é violação da lei penal

e, como tal, é o comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos. A reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos.

f) Princípio do interesse social e do delito natural. O núcleo

central dos delitos definidos nos códigos penais das nações civilizadas representa ofensa de interesses fundamentais, de condições essenciais à existência de toda sociedade. Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos (BARATTA, 2002, p. 42).

Nesse sentido, é o conceito de defesa social (ou de controle social como aparece em muitas referências no campo crítico do direito penal) que apresenta a síntese mais completa do desenvolvimento de uma matriz dominante do direito penal na era moderna e seus princípios podem ser observados em vários estatutos jurídicos contemporâneos.

Partindo da compreensão de que os criminosos são “[...] possuidores de características biopsicológicas anormais em relação aos indivíduos íntegros e respeitadores da lei, justificava-se a intervenção repressiva ou curativa do Estado” (BARATTA, 2002, p. 147). Estes elementos são essenciais para compreendermos as mediações presentes no Estado Democrático de Direito Penal.

Em teoria do controle social, propostas científicas ingênuas produzem efeitos políticos perversos: a violência autoritária das elites de poder econômico e político das sociedades contemporâneas costuma existir sob a forma de primários programas repressivos de controle da criminalidade. Na atualidade, essa ingênua ciência do controle social oscila entre o discurso da tolerância zero, que significa intolerância absoluta, e o discurso do direito penal do inimigo, que significa extermínio de seres humanos, ambos propostos como controle antecipado de hipotéticos crimes futuros: a teoria simplista da relação

desordem urbana/criminalidade de rua do discurso de tolerância zero explica a criminalização da pobreza (desocupados, pedintes, sem-teto), de infrações de bagatela (grafiteiros, usuários de droga, pequenos furtos), de bêbados etc.; a teoria simplista dos defeitos de personalidade do discurso do direito penal do inimigo propõe a neutralização/extermínio de futuros autores de crimes econômicos, sexuais, de tráfico de drogas e de outras formas da chamada criminalidade organizada. (CIRINO dos Santos, pp. 22-23)37

Dessa forma, a partir de uma reapresentação destas velhas ideias da criminologia, uma das atuais expressões do Movimento Lei e Ordem no campo do Direito Penal e elemento fundamental para a constituição do senso comum penal vigente, dá-se pela configuração de um Direito Penal do Inimigo, ou Direito Penal autoritário, o qual tem encontrado exponencial desenvolvimento em vários países pós-episódio ocorrido em 11 de Setembro de 2001 nos EUA.

A tese do Direito Penal do Inimigo foi elaborada em 1985 por Günther Jakobs, na obra Bürgerstrafrecht und Feindsrafrecht (Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo), que afirma que existem dois tipos de Direito Penal diferentes:

El Derecho penal del ciudadano es el Derecho de todos, el Derecho penal del enemigo el de aquellos que forman contra el enemigo; frente al enemigo, es sólo coacción física, hasta llegar a la guerra [...] El Derecho penal del ciudadano mantiene la vigência de la norma, el Derecho penal del enemigo (en sentido amplio: incluyendo el Derecho de las medidas de seguridad) combate peligros (Jakobs; Meliá, 2003, p. 33)38

No Direito Penal do Inimigo ocorre a antecipação da punição do inimigo, como no recurso suntuoso às prisões cautelares, um recrudescimento das penas e supressão de garantias processuais, bem como de seus direitos civis, além da configuração de novas leis voltadas a combater os inimigos (terroristas, crime organizado, traficantes etc.).

37 Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf.

Acessado em: 28/11/2012.

38Tradução livre: “O direito penal do cidadão é o direito de todos, o direito penal do inimigo é

aquele que se forma diante do inimigo, é só coação física até chegar à guerra [...] O direito penal do cidadão mantém a validade da lei, o direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo a lei sobre medidas de Seguridade), combate perigos”

De acordo com as reflexões críticas postas por Juarez Cirino dos Santos, o Direito Penal do Cidadão se dá pela “[...] afirmação da validade da norma, como contradição ao fato passado do crime, cuja natureza de negação da validade da norma a pena pretende reprimir” (p. 2)39, enquanto no Direito Penal do Inimigo, haveria a “[...] medida de força dotada do efeito físico de custódia de segurança, como obstáculo antecipado ao fato futuro do crime, cuja natureza de negação da validade da norma a pena pretende prevenir” (idem, p. 3).

Para Jakobs (2003), a origem da concepção de inimigo no ordenamento jurídico das sociedades ocidentais se dá a partir das contribuições de Rosseau, Fichte, Hobbes e Kant. Contudo, Zaffaroni (2007) critica esta tese, apontando que no Direito Romano já havia a figura do inimicus e dos hostis.

Enquanto inimicus significa o inimigo pessoal, sem nenhuma conotação política, os hostis, no Direito Romano, configuravam outra espécie de sujeitos: os estrangeiros e os que incomodavam o poder soberano eram chamados de

hostis alienigena, já os que eram considerados inimigos pelo Senado Romano

por ameaçar a República eram denominados hostis juricatus (ZAFFARONI, 2007).

O estrangeiro (hostis alienígena) é o núcleo troncal que abarcará todos os que incomodam o poder, os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros, que, como estranhos, são desconhecidos e, como todo desconhecido, inspiram desconfiança e, por conseguinte, tornam-se suspeitos por serem potencialmente perigosos [...] Nas subclassificações posteriores desta categoria geral inclui-se o hostis estrangeiro que é explorado, desde o prisioneiro escravizado da Antiguidade até o imigrante dos dias de hoje. Se bem que as condições jurídicas tenham variado substancialmente, trata-se sempre de um estrangeiro vencido, o que acarreta a necessidade bélica ou econômica, e, portanto, deve ser vigiado, porque como todo prisioneiro, tentará, enquanto puder e quando houver oportunidade, subtrair-se de sua condição subordinada.

O inimigo declarado (hostis judicatus) configura o núcleo do tronco dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de plantão, do qual participarão os inimigos políticos puros de todos os tempos. Trata-se de inimigos declarados, não porque declarem

39 Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf.

ou manifestem sua animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais (ZAFFARONI, 2007, p. 22-23).

Dessa forma, Zaffaroni (2007), em sua obra O inimigo no direito penal, analisa este movimento de reestruturação jurídico-político-social a partir das mudanças perpetradas pelas sociedades ocidentais nas legislações penais. O processo de reificação dos indivíduos tidos como perigosos, bem como a naturalização do contexto social por meio de características pessoais atribuídas a eles, sustenta a negação, do ponto de vista jurídico, do status de pessoa humana. São os pressupostos da Escola Criminal Positiva postos em movimento.

De acordo com ele, os hostis judicatus, desde os primórdios do Direito Romano, só são possíveis dentro da concepção de um Direito Penal do autor. A partir desta doutrina, a norma penal ocupa-se com quem o agente é, sua condição ontológica, e não com o fato por ele praticado (em contraposição ao

Direito Penal do fato).

Salo de Carvalho (2010), ao discutir o Sistema Inquisitório (Direito Penal do autor), afirma que:

Em termos genéricos, a epistemologia inquisitiva no direito penal (teoria da lei penal, teoria do delito e teoria da pena) potencializa modelos de direito penal de autor nos quais são reprimidos comportamentos individuais ou estados/condições pessoais em detrimento da violação externa de bens jurídicos normativamente tutelados (direito penal do fato). Em termos político-criminais, a tensão entre os dois modelos extremos delineia projetos de direito penal máximo (sistema inquisitório) e de direito penal mínimo (sistema garantista) (CARVALHO, 2010, p. 78).

Do ponto de vista jurídico, as Constituições Federais na vigência de um

Estado Democrático de Direito, como é o caso da Constituição brasileira, e

suas legislações infraconstitucionais baseiam-se na noção de Direito Penal do

fato e, contraditoriamente, perfilam-se na ideologia da Defesa Social; é,

portanto, no interior destas sociedades que vem se alastrando o poder do Direito Penal do Inimigo. Segundo Zaffaroni (2007), na América Latina:

[...] as medidas de contenção para os inimigos ocupam quase todo o espaço de ação do sistema penal em seu aspecto repressivo, por via da chamada prisão ou detenção preventiva,

provisória, ou seja, o confinamento cautelar, a que estão

submetidos ¾ dos presos da região. De fato e de direito, esta é a

prática de toda a América Latina para quase todos os prisioneiros. (ZAFFARONI, 2007, p. 109).

Zaffaroni (2007) afirma, assim, que os índices de encarceramento na América Latina derivam-se do confinamento cautelar e não em função das reformas penais. Vigora, portanto, em nossas sociedades dois sistemas penais: o de condenação e o cautelar.

Na lógica positivista, as medidas cautelares podem ser tomadas durante a investigação policial ou no decorrer do processo criminal e são justificadas pelo fato de prevenir que o réu provoque mal a outrem ou prejudique a coleta e análise de provas criminais. Dados atuais apontam para um encarceramento de cerca de 183 mil presos por prisões preventivas, o que corresponde a 37% da população prisional brasileira - conforme foi noticiado no jornal Folha de São

Paulo de 04/07/201140.

Cirino dos Santos reflete sobre os desdobramentos da constituição (e diferenciação) de um Direito Penal do Inimigo, ao analisar criticamente as propostas de Jakobs, pois este expediente proporciona uma duplicidade na imputação penal (sistema penal do fato passado e do perigo futuro) e no processo penal, o qual seria

[...] cindido entre a imputação fundada no princípio acusatório para o cidadão, acusado com as garantias constitucionais do processo legal devido (ampla defesa, presunção de inocência etc.), por um lado, e a imputação fundada no princípio inquisitório para o inimigo, punido sem as garantias constitucionais do processo legal devido (defesa restrita,