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A Tônica do Estado Democrático de Direito Penal no Brasil

3. A SUPERESTRUTURA SE REESTRUTURA: MOVIMENTO LEI E ORDEM E O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

3.2 A Tônica do Estado Democrático de Direito Penal no Brasil

Historicamente, a partir da necessidade de fortalecimento um Estado de

Segurança Nacional, elemento constitutivo das Ditaduras Militares que

assolaram a América Latina no século XX, as instituições responsáveis pela segurança fortaleceram-se política e economicamente, estruturando um poder de polícia militarizado, autômato, violador de direitos cidadãos. Neste contexto, desenvolveram-se sociedades exacerbadamente penalistas e excludentes, não somente do ponto de vista do final da linha de produção das políticas penais e de segurança pública (vertiginoso crescimento da população encarcerada, aliado a altíssimos índices de extermínio popular pelo terrorismo de Estado), mas também pela forma que as sociedades latino-americanas (mas não somente elas) lidaram com a população expropriada em liberdade.

A recepção do programa Tolerância Zero, no Brasil, deu-se de forma concreta pela presença de William Bratton, chefe de polícia de Nova Iorque (1994 a 2002) e de Los Angeles (2002 a 2009), que ficou mundialmente conhecido por implantar, com o apoio político do prefeito Rodolfo Giuliani, o programa Tolerância Zero. Ele esteve no Brasil entre 2000 e 2002 como consultor do governo do Ceará, durante a gestão de Tasso Jereissati. Na cidade de Fortaleza aplicou algumas de suas estratégias e informou que houve redução dos índices de criminalidade. Durante este mesmo período ele conheceu o sistema de Justiça criminal brasileiro. Em entrevista ao jornal Zero Hora, em janeiro de 2010, fez observações quanto às ações da polícia do Rio de Janeiro com a tomada de territórios dos traficantes e

implantação de unidades pacificadoras. Bratton diz que em NY, em 1996, fizeram algo semelhante – uma operação chamada

Juggernaut. A estratégia era muito parecida, milhares de

policiais, ocupavam uma região e expulsavam os traficantes, ficavam na área para garantir que eles não voltariam. Relata que em dois anos fizeram uma varredura em toda a cidade e reduziram o crime (NASCIMENTO, Deise, 2011, p. 109-110). Este contexto nos revela um movimento de direitização (Ianni, 2004b) de elites governantes, das classes dominantes, dos poderes e setores da opinião pública. Em um de seus últimos escritos, Capitalismo, violência e terrorismo, Otavio Ianni nos ensina:

Sim, esta é a realidade: o mundo está amplamente organizado em moldes totalitários. Trata-se de um totalitarismo que se lança, simultaneamente, em diferentes níveis da vida social, de forma difusa e generalizada, imperceptível e truculenta, inefável e perversa (IANNI, 2004b, p. 297).

Em outra passagem, o autor comenta:

Note-se, pois, que com a formação do Estado terrorista, disfarçado de democrático, na realidade totalitário e nazi- fascista, institucionaliza-se a barbárie. Algo que se havia desenvolvido de forma difusa e indefinida na sociedade, em seus poros, frestas e recantos, logo se configura como ideologia e prática, técnica e missão do Estado como um todo ou de alguns dos seus aparelhos e agências de controle e repressão, em escalada nacional e mundial. É como se a essência do poder estatal, o monopólio da violência, aos poucos permeasse ativa e generalizadamente o conjunto das organizações e instituições estatais, realizando, de forma paroxística, a fusão entre o complexo industrial-militar, a tecno-estrutura estatal e o monopólio da violência (IANNI, 2004b, p. 290).

Um exemplo que devemos considerar são as recentes modificações na esfera legislativa, outorgando maiores poderes para as Forças Armadas atuarem em território nacional sob a prerrogativa da Garantia de Lei e Ordem (GLO). Esta garantia está prevista na Constituição Federal, contudo, a GLO sofreu recentes modificações nas estratégias de sua implementação.

O Decreto Presidencial nº 3.897, de 24 de agosto 2001, sancionado no governo Fernando Henrique Cardoso, flexibilizou o exercício das Forças Armadas em território nacional em situação de normalidade institucional sem que tenha sido declarado Estado de Defesa ou Estado de Sítio, nem mesmo declarada pelo governante do Estado a falência de seu sistema de polícia em garantir lei e ordem (todos estes elementos dispostos como condição para o uso das Forças Armadas no país conforme consta na Constituição Federal). Já o Decreto Presidencial nº 5.289 de 29 de novembro de 2004, publicado durante o governo Lula, cria a Força Nacional de Segurança Pública. Ambos os casos contrariam o caráter subsidiário das intervenções das Forças Armadas posto pelo Artigo 144 da Constituição Federal de 1988.

Foi este o artifício utilizado para as Forças Armadas atuarem na ocupação militar das favelas do Rio de Janeiro, na operação que ficou conhecida como pacificação. Também é por meio destas prerrogativas que o

Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack, coordenado pelos Ministérios da

Justiça e da Saúde e lançado em 2012, tem em sua metodologia a participação da Força Nacional de Segurança Pública para garantir a efetiva repressão do tráfico aliado à garantia de atendimento à saúde dos usuários de drogas – mais uma vez, políticas sociais caracterizadas pela lógica totalitária da segurança pública.

Outro exemplo da disseminação do Movimento Lei e Ordem pelas entranhas sociais brasileiras, fundamentalmente na constituição da figura do

inimigo como causador das desordens sociais, é a figura jurídica do auto de resistência, criado na época da ditadura militar no Brasil e que conheceu

desenvolvimento promissor no Estado Democrático de Direito. O auto de resistência garante ao policial legitimidade para assassinar um suspeito numa situação de resistência à prisão, sem que haja investigação por homicídio.

Em uma matéria publicada na Folha de São Paulo em 06/05/201042, no primeiro trimestre de 2010 o número de pessoas mortas em confronto com a Polícia Militar no Estado de São Paulo subiu 40%, em comparação a igual período do ano passado, sendo que a letalidade dos confrontos subiu 54%. Recentemente, de acordo com a análise feita pela equipe da Folha de São

Paulo (publicada em 05/07/2012) a respeito dos dados da letalidade policial

fornecidos pela Corregedoria da Polícia Militar, os policiais militares da Rota (grupo especial da PM do Estado de São Paulo), mataram 45% a mais no primeiro semestre de 2012 do que no mesmo período de 2011. Os dados de 2012 ao serem comparados com os cinco primeiros meses de 2010 revela um dado ainda mais contundente: aumento de 104,5%. 43

Já no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com outra reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 13/09/2011 observa-se também um aumento na letalidade policial: “entre 2007 e 2010, 4.370 pessoas morreram em confronto com agentes da lei. A média no período foi de três autos de resistência registrados por dia” 44. Este índice aumentou expressivamente (superando os números registrados na época da ditadura) desde 1995, momento em que, por meio de um decreto do Governador do Estado do Rio de Janeiro, criou-se uma premiação em dinheiro para policiais por atos de bravura. A medida, conhecida como gratificação faroeste, estimulou mortes em supostos confrontos (autos de resistência) e, de acordo com a matéria publicada, beneficiou permanentemente cerca de 5 mil policiais que chegaram a ter o salário aumentado entre 50 até 150%45.

42

“PM de SP mata mais porque o confronto está mais duro, diz comandante” http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u731006.shtml

43

“Mortes cometidas por policias da Rota sobem 45% em SP”.

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1115314-mortes-cometidas-por-policiais-da-rota-sobem- 45-em-sp.shtml

44 “Estado ainda lidera em autos de resistência a letalidade policial”

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estado-ainda-lidera-em-autos-de-resistencia-e- letalidade-policial,771867,0.htm

45

Atualmente a gratificação por “atos de bravura” está suspensa, por uma ação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro realizada em 1998, embora tenha, inicialmente, recebido veto do Govenador (Anthony Garotinho), por temer “(...) a desmotivação dos policiais. Graças a essa gratificação, premiei a produtividade e contive greves”. Matéria publicada na Folha de São Paulo, em 26/06/1998. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff26069830.htm

O extermínio programático posto em movimento pelo Estado opera pela seletividade mencionada por Zaffaroni como culpabilidade por vulnerabilidade, sendo que, no caso, a expressão correta seria exterminibilidade por

vulnerabilidade. Um dos exemplos é o município de São Paulo que, desde

2001, vem registrando índices cada vez mais alarmantes sobre as mortes perpetradas pelos agentes da lei, sendo que 93% das pessoas que morreram em supostos tiroteios com a Polícia Militar eram moradores da periferia da cidade.

As chamadas "resistências seguidas de morte" - na Saúde definidas como mortes por "intervenção legal" - também crescem de acordo com gênero, idade e raça das vítimas. Negros e pardos foram os que mais morreram nos últimos dez anos: 54% do total de vítimas na cidade, enquanto no Censo de 2010 apenas 37% da população de São Paulo se declara dessas raças. Quase todas as vítimas (99,6%) são homens. Em dez anos, só cinco mulheres morreram em supostos confrontos. Segundo Lígia Rechenberg, coordenadora de análise de dados do Instituto Sou da Paz, a idade dos mortos impressiona: 60% têm entre 15 e 24 anos. "A situação mais estranha é a dos jovens com 16 e 17 anos, que correspondem a 9% do total de vítimas e apenas 3,6% da população. É preciso entender por que esses adolescentes estão morrendo", diz Lígia.46

Sem dúvidas, no Brasil a possibilidade de ser vítima de homicídio tem crescido entre os adolescentes e jovens. O Índice de Homicídios na

Adolescência (IHA)47, publicado em 2010, estima o risco que adolescentes entre 12 e 18 anos tem de perder suas vidas por causa da violência. O IHA aponta para um valor médio no Brasil de 2,03 jovens mortos por homicídios antes de completar os 19 anos, para cada grupo de 1.000 adolescentes de 12 anos. Contudo, este índice sofre aumentos consideráveis ao focarmos em determinadas regiões do país: Foz do Iguaçu (PR), dentre as cidades com mais

46

“Confrontos com a PM: 93% morrem na periferia”.

http://www.estadao.com.br/noticias/geral,confrontos-com-pm-93-morrem-na- periferia,907560,0.htm

47 Ferramenta desenvolvida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da

República (SEDH/PR), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Observatório de Favelas, em parceria com o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj) dentro do Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens (PRVL). Relatório disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/documentos/idha.html

de 100 mil habitantes, lidera esta lista com 9,7, seguida pelos municípios de Governador Valadares (MG), com 8,5 e Cariacica (ES), com 7,3. De acordo com o relatório publicado no site da Secretaria Especial de Direitos Humanos, atualmente os homicídios representam 46% das causas de morte nessa faixa etária e a maioria é cometida com arma de fogo.

Como é possível constatar, nossas polícias tem aplicado com eficiência a doutrina da Tolerância Zero no território nacional, inclusive superando índices apresentados pela polícia estadunidense. Nos EUA, no período de 2006 a 2010, os homicídios justificados pelos agentes da polícia (equivalente aos

autos de resistência no Brasil) foram de 1963, enquanto que no Estado de São

Paulo, neste mesmo intervalo, 2262 pessoas foram mortas após supostamente entrarem em confronto com a Polícia Militar. De acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo em 22/07/2012: “Analisando as taxas de mortos por 100 mil habitantes, índice que geralmente é usado para aferir a criminalidade e comparar crimes em regiões diferentes, constata-se que no Estado de São Paulo, com população de 41 milhões de habitantes, a taxa é de 5,51. Já nos EUA, onde há 313 milhões, a taxa é de 0,63.”48

Trata-se, porém, de um estado de guerra permanente, cuja natureza se exprime menos no encarceramento massivo que no

extermínio executado em nome da lei – no Brasil, por exemplo, entre 1979 e 2008, morreram, em confronto com representantes da lei, quase 1 milhão de pessoas, número que pode ser comparado ao de países expressamente em guerra, como Angola, que demorou 27 anos para chegar a cifra semelhante (NETTO, 2010, p. 23).

O infográfico a seguir, publicado na página eletrônica

www.direitodireto.com, traz uma sistematização dos dados de várias fontes e

que nos ajudam a compreender essa complexa realidade a partir das estatísticas recentes sobre o encarceramento no Brasil.

48

“Polícia Militar de São Paulo mata mais que polícia dos EUA”.

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1123818-policia-militar-de-sao-paulo-mata-mais-que-a- policia-dos-eua.shtml

Há que se ressaltar que esta seletividade penal, ao realizar uma escolha pela classe trabalhadora, também opera por critérios específicos de raça/etnia, gênero e aspecto geracional. A taxa de encarceramento no Brasil, calculada a partir dos dados de 2012 do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério

da Justiça (DEPEN/MJ)49, é de 288,14 para 100.000 habitantes. De acordo com este mesmo órgão, o Brasil contava, em junho de 2012, com 549.577 pessoas presas, dentre as quais 93,44% são do sexo masculino e cerca de 6,55% do sexo feminino. Em relação ao quesito raça/etnia, ao juntarmos a designação de cor preta e parda, temos um total de 291.773 pessoas presas, o que significa mais de 53% da população prisional total. É importante salientar que estes dados se dão de maneira autodeclarada e que, portanto, estes dados oficiais estão passíveis de uma subnotificação e uma pesquisa mais apurada em relação a este quesito poderia desvelar ainda outras características dessa realidade, pois uma mediação importante se dá a partir da ideologia do embranquecimento da raça e da ideologia da democracia

racial, que são elementos importantes para os processos de subjetivação e

sociabilidade do povo brasileiro. Em relação à faixa etária, as pessoas presas que tem entre 18 e 24 anos ocupam o primeiro lugar neste quesito em todas as Unidades Federativas e representam um total de 138.363, ou seja, 25,17% das pessoas presas.

O resultado desta história é bem conhecido. Uma parte da juventude pobre e negra está sendo morta e outra parte engrossa as fileiras do sistema prisional. Gostaria de citar, por exemplo, a notícia que foi estampada em oito de agosto de 2004, na primeira página do Jornal “O Globo” com o seguinte título: “Rio: metade dos condenados tem entre 18 e 24 anos”. Logo abaixo do título tem a afirmação do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Miguel Pachá, lamentando que, “nossos jovens foram adotados pelo crime”. Se o crime “adotou” esses jovens, como afirmou o presidente do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro na época, por quais motivos o “Estado” e a “Justiça” não os adotaram? A continuação e o detalhamento da notícia aparecem na página 22 do jornal, com o título “Juventude fora da lei”, em que os dados de uma pesquisa a respeito da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, realizada

49 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-

22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-

pela Diretoria Geral de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça são apresentados. De acordo com esta pesquisa, de 01 de janeiro de 2003 a 31 de junho de 2004, entraram na Vara de Execuções Penais (VEP) 14.429 processos; destes, 53% corresponderam à condenação (à prisão ou penas alternativas) de jovens entre 18 e 24 anos. A notícia informa também que se ampliarmos a faixa etária para 29 anos, o percentual sobe para 72% (SANTOS, 2007, p. 14).

Estes dados devem ser analisados conjuntamente com o crescimento da taxa de homicídio contra a população pobre, negra e jovem; de acordo com o

Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil50, entre 2002 e 2010, a taxa (para cada 100 mil habitantes) de homicídios contra a população branca caiu de 20,6 para 15,5 homicídios (queda de 24,8%), enquanto a de negros cresceu de 34,1 para 36,0, representando um aumento de 5,6%.

Com isso a vitimização negra na população total, que em 2002 era 65,4 – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que brancos, no ano de 2010 pulou para 132,3% – proporcionalmente, morrem vítimas de homicídio 132,3% mais negros que brancos. As taxas juvenis duplicam, ou mais, às da população total. Assim, em 2010, se a taxas de homicídio da população negra total foi de 36,0 a dos jovens negros foi de 72,0 (WAISELFISZ, 2012, p. 38).

Embora não seja o foco do presente trabalho, há que se registrar que a questão da raça/etnia no tocante às políticas públicas criminais e penitenciárias está presente transversalmente às críticas que reiteramos e elaboramos. Assim, ao tratarmos das questões relativas ao controle penal pelo exercício do encarceramento e extermínio voltado aos indivíduos da classe trabalhadora, notadamente os setores mais precarizados de nossa sociedade, devemos, pois, ressaltar as características de nossa própria história, com nossa herança escravocrata e o alastramento do preconceito racial nas diferentes esferas e políticas públicas. Não se trata de retirar do foco a análise da luta de classes, mas sim de compreender as particularidades nas quais se desenvolve a

tendência geral de acirramento de políticas repressivas como resposta às mazelas produzidas pela autorreprodução destrutiva do capital em nosso país.

Este problema tem levado à adoção de perspectivas teóricas extremas: de um lado, a defesa de uma possível “centralidade” da questão étnica e racial em detrimento da questão classe; do outro, a negação da importância da questão étnica em relação à classe. Nem uma coisa nem outra. Nada vale desqualificar a questão “étnica e racial” na análise de “classe” numa sociedade constituída por diferentes etnias como a brasileira. Bem como, esquecer que a “classe” existe quando se analisa a questão “étnica e racial”. Melhor seria, buscar entender de quais maneiras estas duas questões se enraízam na sociedade, ou ainda, como a realidade recria as formas desta relação e como o estudo de uma ilumina a compreensão da outra. Entendo como importante seguir uma postura teórica que trate da relação entre “raça e classe” de forma “não-reducionista” (SANTOS, 2007, p. 19).

As estruturas de controle social que legitimaram e garantiram a relação de expropriação e exploração desde a época da invasão dos colonizadores, a dizimação dos povos originários, a ordenação da produção dada pela disseminação da escravidão como forma de garantir a extração dos recursos naturais e, posteriormente, de produção agrícola e agropecuária (também com o uso da mão-de-obra imigrante), transfere-se, da atuação dos capatazes do Brasil Colônia, para a lógica de funcionamento do sistema de segurança em nosso país. “O interesse de classes imprime, assim, a cada sistema penal a marca da concretização histórica” (PACHUKANIS, 1986, p. 124).

Dessa forma, fica evidente que todo o ordenamento jurídico-institucional do Estado, inclusive o monopólio da violência, deve estruturar-se de modo a garantir a reprodução do modo de produção vigente. Eis também o papel da superestrutura jurídica e penal em um país de herança escravocrata e que vivencia a ideologia da democracia racial e a realidade concreta de violência, segregação e extermínio da população jovem e negra. Nesse sentido, podemos dizer que nosso Estado Democrático de Direito Penal brasileiro é declaradamente racista, perpetuador da violência a partir da reprodução do preconceito racial e dizimador da força viva e potencialmente transformadora

de nossa juventude pobre e negra – tarefa que realiza de maneira altamente eficaz, já que nossa polícia configura-se como uma das mais violentas e letais do mundo.

Para Marx (1991):

[...] a segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade” (p. 44).

Desse modo, tratar de políticas públicas de segurança significa considerar a razão última do sentido de segurança que esta adquire no capital.

Assim constitui-se progressivamente o complexo amálgama do Direito Penal moderno onde podemos facilmente distinguir as camadas históricas que possibilitaram o seu aparecimento. Fundamentalmente, isto é, do ponto de vista puramente sociológico, a burguesia assegura e mantém o seu domínio de classe mediante seu sistema de Direito Penal, oprimindo as classes exploradas. Sob esta perspectiva os seus tribunais e as suas organizações privadas “livres” de furadores de greve prosseguem num único e mesmo objetivo (PACHUKANIS, 1986 p. 123).

Desse modo, os conceitos de polícia e de segurança pública desenvolvidos na realidade atual (que são formados exatamente pelas e nas relações sociais concretas) configuram-se como formas de legitimação da reprodução das condições cada vez mais excludentes nas quais estão submetidos os trabalhadores, fundamentalmente, aqueles em situação mais precarizadas ou em desemprego pleno. São estes os indesejáveis que se tornam alvos preferenciais das políticas criminais e que tem recebido atenção especial das ações de encarceramento em massa. Suas mortes têm