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Apontamentos para uma Ontologia do Ser Social no Estado Democrático de Direito Penal: Mediações da Causalidade e Teleologia

4. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIAL DE MARX PARA A ANÁLISE DA

4.2 Apontamentos para uma Ontologia do Ser Social no Estado Democrático de Direito Penal: Mediações da Causalidade e Teleologia

Há que se atentar para a questão posta por Lukács, no que diz respeito à compreensão da ontologia do ser social, para avançarmos em uma análise materialista, histórica e dialética sobre os desdobramentos da estrutura na superestrutura. Para o autor, do ponto de vista ontológico, há três grandes tipos do ser: a natureza inorgânica, a natureza orgânica e o ser social, os quais devem ser compreendidos em suas especificidades e dinâmicas inter- relacionais. Para o autor, há uma coexistência entre os três grandes tipos do ser:

Os três tipos do ser existem simultaneamente, entrelaçados um no outro, e exercem também efeitos muitas vezes simultâneos sobre o ser do homem, sobre sua práxis [...] O ser humano pertence ao mesmo tempo (e de maneira difícil de separar, mesmo no pensamento) à natureza e à sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 41-42).

Isso significa dizer que o ser humano é, simultaneamente, ser da natureza e ser social e que para compreendermos especificamente o que é o ser social, temos que apreender os processos de produção e reprodução da vida material posta em movimento na sociedade, em suas múltiplas determinações e mediações. Como já vimos, é por meio do trabalho (atividade prática humana – práxis) que se efetiva esta inter-relação ser humano- natureza-sociedade; o trabalho constitui, portanto, o fato ontológico fundante do ser social, pois ele possibilita este salto entre a esfera natural e social.

Este, como Marx demonstrou, é um pôr teleológico conscientemente realizado, que, quando parte de fatos corretamente reconhecidos no sentido prático e os avalia corretamente, é capaz de trazer à vida processos causais, de modificar processos, objetos, etc. do ser que normalmente só funcionam espontaneamente, e transformar entes em objetividades que sequer existiam antes do trabalho [...] Portanto, o trabalho introduz no ser a unitária inter-relação, dualisticamente fundada, entre teleologia e causalidade; antes de seu surgimento havia apenas processos causais (LUKÁCS, 2010, pp. 43-44).

Os desdobramentos da base material no campo da produção de uma superestrutura (que se dá pela lógica de um direito penal erigido pelo Estado burguês cada vez mais autoritário) não se dão pela mera passagem mecânica (transposição) dos elementos específicos dos determinantes econômicos para o campo jurídico. Há um incessante jogo de discursos e práticas contraditórias (mediações) que devem ser levadas em consideração.

A base material é fundamental e dela deriva a base dos determinantes da produção da própria humanidade, como já vimos anteriormente. Mas o jogo entre tais condições materiais e sua subjetivação como forma de compreensão do mundo e condição para a sua transformação também é fundamental para a produção humana (FURTADO, 2011, p. 68).

Nesse sentido, como nos aponta Furtado (2011), e baseando-nos nas reflexões trazidas por Lukács sobre a leitura marxista do ser social, para se compreender a especificidade do ser social há que se analisar a relação entre causalidade e teleologia. A mediação da teleologia, esta capacidade do ser

humano de projetar-se para um fim idealmente planejado, é fundamental para não reproduzirmos leituras deterministas e reducionistas sobre a reestruturação da superestrutura e seu possível enfrentamento na luta pela emancipação humana.

Este ato de dar respostas aos carecimentos (necessidades) do mundo objetivo é dado pelo agir humano; este por sua vez é constituído de uma prévia-ideação, uma posição teleológica que põe em movimento os meios necessários para a transformação do real. Não obstante, cabe ressaltar que esse momento de prévia-ideação se confronta na natureza com matérias regidas por leis próprias. Isso quer dizer que a natureza é regida por causalidades que o homem não pode eliminar, mas que pode, tão-somente, transformar, ou seja, o ser-em-si das coisas (a natureza) jamais poderia se transformar em algo diferente de suas propriedades imanentes (ORGANISTA, 2006, p. 134-135). Ora, se há um acirramento das contradições na base produtiva, com efetiva limitação das margens de manobra de deslocamento destas contradições imanentes do capital, caracterizando, assim, a crise estrutural do capital, estes elementos estão também na base material (estão no mundo, na particularidade) do processo de apropriação subjetiva (singularidade) e, simultaneamente, estão na base da configuração de uma dimensão subjetiva que também responde a essa lógica de acirramento das contradições e de retirada dos direitos arduamente conquistados pela humanidade e que formam o gênero humano (universalidade).

A criação de algo não-existente na natureza (como a produção de um novo objeto que vai atender necessidades humanamente configuradas) somente é possível a partir da mediação entre teleologia e causalidade. Este

novo objeto, do ponto de vista ontológico, não é mais um ser-em-si, mas

causalidade posta.

O momento de síntese entre teleologia e causalidade é constituído de objetivação que, ao mesmo tempo, transforma a realidade e a própria subjetividade. A consequência disso é que, para Lukács, a teleologia é uma experiência de todo ato laborativo da vida cotidiana (ORGANISTA, 2006, p. 135).

Ao considerar o incessante processo de produção (e reprodução) das ideologias que se dão a partir da base material do capital, pudemos perceber a diversidade de elementos que perfazem este campo da superestrutura: mudanças na esfera legislativa, na concepção de indivíduos perigosos, nas alianças psi-jurídicas, no acirramento de um direito penal autoritário, na implementação de políticas sociais complementadas pelas ações criminalizantes do Estado frente à população trabalhadora, notadamente os que estão em situação de precarização e degradação do trabalho. Nesse sentido, refutamos interpretações sobre a relação base-superestrutura que se dão a partir de uma

[...] interpretação simplificada em demasia do modelo de base/superestrutura como uma rígida correspondência de um para um entre seus dois termos-chaves de referência – estipulando uma determinação unilateral do mundo das ideias pelo mundo material – está fundada na redução mecânica da base em si a um de seus múltiplos constituintes, carregando consigo o desaparecimento de todas as ligações dialéticas relevantes e a substituição do conceito de estrutura social (ou estrutura socioeconômica) pelo conceito de “base” estritamente identificado com a objetividade fetichista da tecnologia (MÉSZÀROS, 2011, p. 47).

Para Lukács, a relação entre causalidade e teleologia na gênese do ser social pode ser ilustrada nos seguintes termos:

A insuprimível determinação do ser por processos causais, que se liga inseparavelmente, no ser social, com sua crescente capacidade de influenciar, até dirigir por meio de pores teleológicos, cria aquela dualidade dialética que Marx – como repetidas vezes dissemos – expressa afirmando que os seres humanos fazem eles próprios a sua história (ao contrário da mera dinâmica da natureza), mas não são capazes de fazê-lo em condições que eles próprios tenham escolhido (LUKÁCS, 2010, p. 340).

A leitura que se pretende, portanto, a partir das considerações que será apresentada no próximo capítulo, parte da dialética que permite a leitura da “totalidade das relações de produção”, que significa ampliar as reflexões tendo como ponto de partida a realidade concreta, o modo de produção e reprodução

da vida material do ser social, na análise de suas especificidades, que no caso do presente trabalho, significa compreender como se dão os enfrentamentos no campo ideológico a respeito da constituição de um Estado Democrático de Direito Penal a partir da práxis social mediada pela teleologia e causalidade.

5. LUTA DE CLASSES E PRÁXIS SOCIAL: A ANÁLISE DE UMA