Elizangela Chaves Dias
Sarai como esposa e irmã de Abrão
um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a
MESTRADO EM TEOLOGIA
SÃO PAULO
Elizangela Chaves Dias
Sarai como esposa e irmã de Abrão
um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a
MESTRADO EM TEOLOGIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Teologia sob a orientação do Prof. Doutor Matthias Grenzer.
SÃO PAULO
Banca Examinadora
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Em agradecimento e reconhecimento por todos os que, de diversos modos, fizeram parte desta etapa de minha vida pessoal e acadêmica.
Primeiro a Deus, de quem provém todo o conhecimento, fonte de ciência e sabedoria. Aos meus pais pela vida, apoio e incentivo.
A congregação das Irmãs missionárias de São Carlos Borromeo - Scalabrinianas, na pessoa da Superiora Provincial, Ir. Neusa de Fátima Mariano, que me motivou e encaminhou para o estudo e aprofundamento acadêmico científico, bem como as Irmãs de seu conselho pelo incentivo e interesse.
As co-irmãs de minha comunidade, pelo respeito e paciência, pois a pesquisa exige tempo e dedicação e isto não seria possível sem a colaboração de cada uma.
Ao prof. Dr. Matthias Grenzer, que me acolheu nesta instituição, acompanhou meu trabalho, motivou e valorizou a minha investigação.
Ao prof. Dr. Bóris, que com sua dedicação, sua maestria e solicitude demonstrou amor pela pesquisa e interesse pelos estudantes, sempre positivo colaborou para o desenvolvimento e êxito desta pesquisa.
Ao prof. Vitório, que transmitiu o amor pelo estudo das Escrituras Hebraicas.
Aos colegas Frei Tony e Ir. Jilvaneide, que iniciaram este caminho comigo e que embora imersos em seus trabalhos e pesquisa sempre foram muito solícitos em colaborarem comigo. Ao Prof. João Ultramari, Ir. Erta Lemos, Ir. Sandra Maria Pinheiro e Morah Rivka que dedicaram seu tempo para ler, comentar, confrontar e corrigir este trabalho. Agradeço de coração.
Aos professores que compõem a banca, por aceitarem o convite e por lerem este trabalho, acolho com muita gratidão todas as observações.
A presente dissertação tem como objetivo apresentar um estudo exegético de uma narrativa
bíblica: Gênesis 12,10-13,1a. Seguindo o estilo de comentário, a pesquisa avança junto à
tradição bíblica em questão. Em cada capítulo, são realizadas duas investigações: 1) um
estudo linguistico-literário, que compreende tradução, análises morfológico-sintática,
estilística e narrativa; e 2) um estudo histórico-teológico, que se serve de pesquisas referentes
ao ambiente histórico-cultural bem como à teologia presente no texto. Neste sentido, esta
pesquisa tem como hipótese a questão: “Sarai como esposa e irmã de Abrão”. Ao longo do estudo, será possível constatar uma crescente compreensão do conteúdo da expressão „esposa
e irmã‟. Diante dos argumentos encontrados – juntando reflexões histórico-arqueológicas e
bíblico-teológicas – parece ser plausível dizer que Sarai é esposa e irmã de Abrão, não somente em sentido denotativo, mas também metafórico. Mais ainda: esta expressão se torna
chave de uma interpretação intertextual, pois „irmã‟ e „esposa‟ são figuras de peso teológico
-simbólico na linguagem bíblica.
This paper aims to present an exegetical study of a biblical narrative: the Genesis 12,10-13,1a.
It follows the style of commentary. The research advances with the biblical tradition in
question. In each chapter two investigations are carried out. 1) a linguistic and literary study
which includes translation, morphological analysis, syntactic, stylistic and narrative; and 2) a
historical-theological that serves as a research on the historical and cultural context, as well
as, the theology in the text. In this sense, this research has hypothesized the question: 'Sarai as
wife and sister of Abraham'. Throughout the study it is possible to visualize a growing
understanding of the scope of the term 'wife and sister'. Based on the arguments found, adding
reflections on historical-archaeological and biblical-theological, it seems plausible to say that
Sarai is Abraham´s wife and sister not only in the denotative sense, but also in a metaphorical
one. Moreover, this expression becomes a key to the interpretation as 'sister' and 'wife' that are
important characters in the theological and symbolic language of the bible.
AT = Antigo Testamento
BHS = Bíblia hebraica stuttgartensia D = Deuteronomista
DBHP = SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário bíblico hebraico – português. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2004.
DITAT = HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
E = Eloísta
GLAT = BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). Grande lessico dell´Antico Testamento.
J = Javista
NT = Novo Testamento P = Sacerdotal
s = seguinte ss = seguintes
UNFPA = Fundo de População das Nações Unidas v. = versículo
SUMÁRIO ... 9
INTRODUÇÃO ... 11
CAPÍTULO I ... 15
FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO ... 15
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d ... 16
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ... 16
1.2 Análise estilística ... 25
1.3 Análise narrativa ... 27
2. Estudo histórico- teológico ... 30
2.1 A personagem Abrão ... 30
2.2 A fome na terra ... 32
2.3 Desceu ao Egito ... 34
2.4 Morar como imigrante ... 36
CONSIDERAÇÕES ... 38
CAPÍTULO II ... 40
SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA ... 40
1. Estudo linguístico-literário de Gn 10,11e-13d ... 41
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ... 41
1.2 Análise estilística ... 50
1.3 Análise narrativa ... 53
2. Estudo histórico-teológico ... 56
2.1 A identidade de Sarai... 56
2.2 Sarai esposa de Abrão ... 58
2.3 Sarai mulher bela ... 59
2.4 Beleza, vida e morte ... 61
CONSIDERAÇÕES ... 63
CAPÍTULO III... 66
INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI ... 66
1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b ... 67
1.1 Tradução e análise morfológico-sintático ... 67
1.2 Análise estilística ... 75
1.3 Análise narrativa ... 80
2. Estudo histórico- teológico ... 84
2.1 O Egito para Israel ... 84
2.2 O Faraó ... 87
2.3 Salvo pelos méritos de Sarai ... 89
2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai ... 94
CAPÍTULO IV ... 99
SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO ... 99
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19 ... 100
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ... 100
1.2 Análise estilística ... 104
1.3 Análise narrativa ... 106
2. Estudo histórico-teológico ... 108
2.1 Estatuto da irmã-esposa ... 108
2.2 Sarai esposa e irmã de Abrão ... 111
2.3 Sarai protótipo do povo da Aliança ... 115
2.4 Um novo olhar sobre Sarai ... 118
CONSIDERAÇÕES ... 121
CAPÍTULO V ... 123
EXPULSÃO E SUBIDA ... 123
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,20-13,1a ... 124
1.4 Tradução e estudo morfológico-sintático ... 124
1.2 Análise estilística ... 126
1.3 Análise narrativa ... 129
2. Estudo histórico-teológico ... 131
2.1 Incidência do caso da esposa irmã ... 131
2.2 Releitura do Êxodo ... 135
2.3 Subida do Egito ... 139
2.4 Atualidade da narrativa ... 140
CONSIDERAÇÕES ... 144
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 146
INTRODUÇÃO
Contar histórias é uma atividade presente na vida do homem desde a sua origem. Relatar
um fato da vida, discorrer sobre um evento, narrar uma partida de futebol, ler ou ouvir uma
novela, contar piadas ou contos de fadas são práticas quotidianas de pessoas comuns. Tendo a
Bíblia em mãos o leitor, livre de preconceitos, provavelmente perceberá que o Livro Sagrado não
é um tratado de ciências, história ou geografia, e também notará que a mensagem revelada não foi
transmitida sob forma de uma sabedoria atemporal. E poderá até mesmo surpreender-se ao
verificar que grandes momentos da Revelação foram transmitidos sob forma narrativa.
Segundo Ska1 existe uma afinidade entre as narrações bíblicas e a literatura de fiction, pois ambas fazem parte do mesmo gênero narrativo. De fato, entre os elementos constitutivos
do gênero narrativo está a dimensão temporal, na qual a sucessão dos elementos é relacionada
a uma cronologia e não somente a estruturas de linguagem como a dedução ou a persuasão.
Na narrativa, o leitor reconstrói a experiência no tempo de sua leitura. Assim, no plano da
forma literária, é possível identificar uma dimensão sine qua non da revelação bíblica, sua inserção na história e no tempo.
A narrativa ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e
de personagens, não pretende dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que
preencha uma série de lacunas. O texto se apresenta como uma máquina preguiçosa pedindo
ao leitor que faça uma parte de seu trabalho2.
1 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa. In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.) – GARGANO,
Innocenzo – SKA, Jean Louis – PISANO, Stephen. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 126-127.
Este estudo parte do pressuposto de que o autor da narrativa a ser estudada fez uso de
uma das antigas formas literárias da cultura hebraica, a narrativa histórica. Essa apresenta uma
síntese da relação da Aliança entre os hebreus e Deus, concentrada nos pontos altos do
passado do povo. É uma resposta indireta à pergunta: Quem somos e o que representamos?
De onde viemos e como chegamos aqui? 3.
As narrativas do Antigo Testamento têm natureza variada. Por isso, não há uma forma
literária singular que se possa denominar „narrativa veterotestamentária‟. O que há em comum
é o fato de não terem sido compostas originalmente apenas para preservar o conhecimento de
que certas coisas aconteceram, servindo sim, para sustentar uma tese teológica ou para ilustrar
um evento significativo no processo do povo da Aliança4.
Por diversos fatores, costuma ser difícil para os leitores atuais a percepção do
significado que pode ter sido óbvio para os autores antigos e seu público. Um exemplo disto
são as três narrativas da „esposa-irmã‟ (cf. Gn 12,10-13,1a; 20,1-18; 26,1-17), nas quais o patriarca, para viver temporariamente num país estrangeiro, diz que a esposa é sua irmã,
enganando o rei estrangeiro, salvando a si mesmo e lucrando muitos bens.
Diante de tal fato, caberia o questionamento se esses relatos que apresentam grandes
figuras do passado de Israel, teriam como objetivo propor ao leitor modelos de virtude. Os relatos
são „memórias‟ dos fundadores e heróis do passado. Que esses tenham tido defeitos ou não, é
secundário, diante do fato de serem antepassados e terem desempenhado um papel determinante
na formação do povo. Os relatos não estão preocupados unicamente em oferecer modelos morais
a serem imitados. Pelo contrário, oferecem experiências para compartilhar. O drama da
personagem não tem a pretensão única de edificar, quer comover. O leitor não é convidado a
julgar, reprovar ou condenar. O relato quer convocar o leitor a entrar nas aflições da personagem,
a participar do drama, a recompor uma experiência, a se tornar ativamente consciente das forças
que o confronta e de seguir nos tempos da leitura as etapas de seu percurso5.
A perícope bíblica delimitada para o presente estudo sincrônico de abordagem literária
é uma narrativa. Esta se encontra em Gênesis 12,10–13,1a e se localiza entre o chamado de Abrão e sua separação de Ló. Seguindo o estilo de comentário, em cada capítulo, será
realizada duas investigações: 1) Estudo linguístico-literário e 2) Estudo histórico-teológico.
Como esse texto massorético6 oferece poucas variantes com relação aos escritos antigos,
quando aparecerem as variantes essas serão apresentadas na nota de rodapé.
A segmentação do texto para o aprofundamento segue a lógica da análise narrativa. No
início, primeiro capítulo, é feita uma apresentação, a fim de introduzir o leitor no contexto da
história (cf. vv. 10-11d). Em seguida, no segundo capítulo, o narrador passa a voz a Abrão. Neste
capítulo o leitor começa a perceber os conflitos e as complicações em que estão se envolvendo o
patriarca e sua esposa (cf. vv. 11e-13). Segue um elevado elogio à beleza da matriarca, o futuro de
Sarai é comprometido, e também a promessa de descendência e a aliança parecem ameaçadas,
chegando ao clímax da narrativa, (cf. vv. 14-18b) no terceiro capítulo. Nesse, o narrador retoma a
voz e apresenta o momento em que Deus intervém em favor dos „indefesos‟. O quarto capítulo delineia o desfecho (cf. vv. 18c-19) onde o narrador passa a voz ao Faraó e este anuncia a verdade
sobre Sarai e Abrão. Para concluir Abrão e Sarai podem continuar a caminhar (cf. 12,20–13,1a) rumo à terra que o Senhor lhes prometera, no quinto capítulo.
5 Cf. SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento? In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.). Metodologia do
Antigo Testamento, 2000, p. 30-33.
6 Massoretas eram judeus estudiosos que se dedicavam a tarefa de guardar a tradição oral da vocalização e
Algumas observações metodológicas: quando se fala ou se faz alguma citação Bíblica,
com exceção do texto em estudo, se usará o texto da Bíblia de Jerusalém, das edições Paulinas, na
versão em português do ano de 1981. Para o texto em estudo, portanto, se usará a versão hebraica,
da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, e a tradução é pessoal como resultado do estudo. A análise
morfológica e sintática, bem como a tradução do texto em estudo, virá destacada em itálico no
corpo do texto para facilitar a visualização. Mesmo sabendo que o uso de aspas simples é
endereçado a citações dentro de outras citações se fará uso das mesmas também quando se
CAPÍTULO I
FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO
Nas Sagradas Escrituras não são raras as narrativas e lendas que falam da fome em Canaã,
especialmente como motivo para a emigração (cf. Gn 26,1; 43,1; 47,4; Rt 1,1; 1Rs 4,38; 8,12; Sm
21,1). Por outro lado, o Egito é a terra de ricos grãos, a terra do prazer e da cultura, visada por
seus vizinhos. Especialmente em tempos de fome as pessoas buscaram refúgio e grãos no Egito,
cuja fertilidade dependia não da chuva como em Canaã, mas apenas do Nilo, pois ele pode gerar
riqueza todo o ano, enquanto toda a Canaã lamenta as más colheitas.
Desceram ao Egito, pois, saindo de Canaã se vai para baixo (cf. v. 10b). Voltando para
Canaã se sobe. O narrador sabe do que se trata ao ilustrar tal detalhe. O casal está na fronteira,
uma situação interessante (cf. Gn 31,52; Rt 1,7 ss), uma posição difícil. A fome os leva a ir
para o Egito. Mas ali são estrangeiros sem proteção e direito. Abrão tem medo de ser morto
por causa de sua esposa bonita. Neste dilema, ele encontra um caminho, sagaz, simples e
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:
7 10a Aconteceu uma fome na terra,O texto inicia com
yhiîy>w
:, esta é uma fórmula usual para abrir um texto sob seu aspectonarrativo. Esta é a primeira indicação que situa o leitor dentro do estímulo da leitura e
introduz a narrativa. O
yhiîy>w:
inicial instala o leitor num fluxo de continuidade.No livro do Gênesis esse verbo é atestado 316 vezes no qal, e 122 vezes como
yhiîy>w
:. Emgeral o verbo
hy"h'
é traduzido do hebraico para o português pelos verbos ser e acontecer, mesmo que os motivos estilístico aconselhem outras traduções. Assumindo o sentido de existir, subsistir,serve para indicar o perdurar, ou seja, indicar ou situar no tempo de um acontecimento ou uma
condição. Nos textos de caráter narrativo uma parte considerável de atestações são construídas a
partir das locuções resultar, acontecer, suceder como uso introdutivo na forma do imperfeito ou
do perfeito consecutivo. Nestes casos trata-se de locuções introdutivas formais, também chamadas
de função expletiva, ou com especificações relacionadas à situação temporal8.
Segundo Schökel, em geral, este verbo expressa uma constatação. O verbo pode ser o
predicado de uma oração: há, existe, acontece. O sentido de suceder é comum em narrativas, muitas vezes com função expletiva9. Nas construções
yhiîy>w:
ehy"h'w>
prescindindo da função deauxiliar, obtêm-se dois grupos ternários: existir, haver, suceder; ser, estar, tornar-se. Cada um dos
7 Construção das frases verbais em hebraico: verbo + sujeito + objeto + adjunto. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso.
Fundamentos para exegese do Antigo Testamento: manual de sintaxe hebraica. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 108.
8 Cf. BERNHARDT, K. H. hy"h'. In: BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). GLAT.
Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 429-435.
9 A função expletiva: elemento de caráter estilístico que serve somente para realçar. Em construções no passado
seis elementos pode ser tomado como referência de um paradigma gerado por uma série de
operações: por negação: ex. não haver = faltar; por partículas negativas: ex. ter; negativo carecer;
por transformação: o intransitivo ficar no transitivo deixar. As operações indicadas podem ser
exigidas pela língua receptora ou recomendadas por razões de estilo. O resultado é uma grande
variedade de equivalências ou traduções possíveis do verbo hebraico
hy"h'
10para o português.O verbo
hy"h'
é encontrado sete vezes neste texto (cf. vv. 10a, 11a, 12a, 12e, 13c, 14a e16b), das quais quatro vezes (cf. vv. 10a, 11a, 14a, 16b) se encontram na forma
yhiîy>w:
imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal e sempre na fala do narrador. Dessas, observa-se no texto massorético que duas possuem o acento disjunto11 (cf. vv. 11a e14a) zaquef gadol § e as outras duas não (cf. vv. 10a e 16b) possuem o assento disjuntivo. Se é
verdade que os assentos massoréticos influenciam na semântica e na sintaxe, nota-se que as
formas com acentos disjuntivos assumem função expletiva, enquanto as outras assumem
função de predicado.
Para a tradução faz-se necessário observar se o verbo apresenta uma ação pontual ou
continuada, no presente caso nota-se que o verbo faz parte dos elementos que se designam
quadro ou cenário da narrativa, ou seja, dados estáticos. Segundo Ska12, o quadro ou cenário
com frequência são descritos pelos recursos a proposições especificantes (função expletiva do
verbo), imperfeitos ou também outros tempos segundo o caso. Observando estes dados o
verbo foi traduzido para o pretérito perfeito da língua portuguesa, pois o quadro da narrativa
pertence aos dados estáticos, sendo assim, traduz-se por aconteceu.
10 As orações sem sujeito são formadas pelos verbos impessoais: haver, significando existir, acontecer,
realizar-se; fazer, ser e estar, indicando tempo transcorrido ou tempo relativo ao fenômeno da natureza, nevar, chover. Portanto é necessária atenção na tradução do verbo hy"h' e do sentido que ele exerce na frase.
11 Mesmo o estudo não sendo específico sobre os acentos massoréticos ocorre notar que, segundo Edson de
Faria, além da vocalização e das notas da Massorá, os massoretas adicionaram ao Texto Massorético sinais de acentuação e estes possuem as seguintes funções: 1) marca a sílaba tônica de cada palavra do versículo; 2) marcam a divisão semântica e estabelecem relações sintáticas; 3) marcam a melodia das palavras dos versículos. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 120-124.
Segue o termo
b['r"
13 este é apresentado como substantivo masculino singular, ele assume a função nominativa da frase, ou seja, o sujeito. Como o termo não está acompanhado de artigo, traduz-se do hebraico para o português como sujeito indefinido uma fome. Essa palavra usual para fome ocorre mais de 100x no AT14, podendo também ser traduzida por fome, carestia,necessidade, penúria15.
No texto a palavra
#r<a'_B'
é composta de uma preposiçãoB
, um artigoh;
e um substantivomasculino singular#r<a,
. Esta palavra aparece aproximadamente 2400x no AT. Os dois principais sentidos da palavra são: cosmológico e designação territorial específica, principalmente com referência à terra de Israel16. Sintaticamente17 esta palavra se distinguecomo um genitivo adverbial, ou melhor, adjunto adverbial, classificado como genitivo locativo. Este caso indica o local ou a esfera em que algo ou alguém se situa. Quando a frase se refere a uma localização, a construção preposicional básica é composta de
B
, portanto, étraduzida do hebraico para o português por na terra.
Sob a palavra
#r<a'_B'
encontramos o acento chamado atnah +, este é o principal divisordo versículo, o que indica que aqui é introduzida uma pausa maior. Pode ser expresso, em
português, por meio de uma vírgula. Novamente há uma nota entre este termo e o anterior
referente à massorá parva18 que significa versículo incomum.
13 Entre este termo e o termo anterior encontra-se o sinal êcicerllus, que remete a uma nota massorética
bo na
massorá parva, este sinal representa o número dois e significa que a construção se encontra somente duas vezes na Bíblia. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 96.
14 Cf. WHITE, Willian. b['r". In: HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K.
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1437.
15 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. b['r". In: DBHP, 2004, p. 624. 16 Cf. HAMILTON, Victor P.
#r<a,. In:DITAT, 1998, p. 125.
17 Na oração o substantivo pode aparecer nos casos: nominativo, acusativo, dativo ou genitivo e assumir diversas funções
sintáticas. São genitivos a) as cadeias de construto; b) os sufixos pronominais em substantivos ou preposições; c) os substantivos regidos por preposições. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 18, 21, 117; WALTKE, Bruce K – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, p. 136-137.
18
‘hm'y>r:’c.mi ~r"Ûb.a; dr<YE‚w:
10b E desceu Abrão para o EgitoA oração inicia com o verbo
dr:y"
que significa descer, ir para baixo, baixar, marcharabaixo, pôr-se. O verbo
dr<YE‚w
: é imperfeito consecutivo19- terceira pessoa do masculino singular do qal. O verbo é traduzido para o pretérito perfeito do português, portanto desceu, por apresentar uma ação pontual do sujeito~r"Ûb.a
;, Abrão20.A trama desperta curiosidade no leitor, o qual é levado a perguntar para onde desceu, e
segue a resposta ‘
hm'y>r:’c.mi
, em hebraico essa forma designa o Egito, encontra-se no dual,provavelmente identificando as duas divisões básicas daquele país: o alto Egito ao sul e o
baixo Egito ao norte, região do delta do Nilo. Nota-se a presença do sufixo diretivo no final
conhecido como he locale
h
'21, resultando na preposição que indica a direção para qual desceAbrão, ou seja para o Egito.
~v'ê rWgæl'
10c Para imigrar ali,Após duas orações coordenadas o leitor se depara com uma oração subordinada adverbial de propósito, formada pela preposição
l
. mais um verbo no infinitivo construtorWg
e um advérbio~v'ê
, nesta frase, com sentido locativo.
19 O wav consecutivo normalmente denota sequência numa narrativa, mas pode indicar também uma sequência lógica ou
uma ação que é anterior ao verbo precedente, denominado por alguns linguistas de narrativa descronologizada. Cf. WEBER, Carl Philip. w". In: DITAT, 1998, p. 371-372.
20 O nome de Abrão se tornará Abraão em Gênesis 17,5. O nome é atestado no Oriente próximo antigo, no XX sec.
a.C. Popularmente o nome Abraão significa pai de uma multidão. Mas, existem três possibilidades etimológicas: 1) em nexo com o acádio ´abam-rama, amais o pai (exortação ao neonato e aos seus irmãos); 2) interpretando ram como excelso, de origem semítica,o pai é excelso e 3) a interpretação teofânica, ´ab-rami, meu pai é exaltado (é grande em relação ao seu). Cf. CLEMENTS, R. E. ~r"Ûb.a;. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda: Gn 12, 1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 25.
21 O acusativo no hebraico pode assumir funções adverbiais, equivalendo de maneira genérica a um adjunto
adverbial. Neste caso é presente um acusativo terminativo, que indica o local para onde alguém ou algo se dirige. Destaca-se ainda a presença do sufixo h ' denominado he-locale, esse é usado para indicar a direção de um verbo de
Em hebraico a preposição
l
.; para, em, com relação a, de, por, desde; equivale aocaso dativo. Esta preposição pode indicar a direção para onde um objeto se dirige em seu
movimento físico. Ela exprime localização no tempo e/ou no espaço, indica finalidade. A
combinação
l
. + infinitivo construto, pode ser usada como complemento verbal ou paraintroduzir uma oração subordinativa. As orações infinitivas podem ser de tipos variados, ou
seja: propósito, resultado, temporal ou final22.O sujeito do infinitivo pode ser o sujeito do
verbo principal ou um substantivo não envolvido naquela oração.
`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi(
10d Porque pesada era a fome na terra.A conjunção
yK
i( pode assumir diversas funções na tradução: introduzir oraçõessubordinativas temporais, causais, concessivas, consecutivas e uso adverbial ou enfático. Nesta
narrativa é identificada como uma conjunção subordinativa causal e acompanhada de um adjetivo masculino singular
dbeîk
', traduzido do hebraico para o português pelo adjetivo pesada. O adjetivo em uso predicativo concorda em gênero e número com o substantivo que qualifica. Em oraçõesnominais, como essa, o adjetivo precede o substantivo que qualifica23. A palavra que segue
apresenta um diferencial no substantivo
b['Þr"h'
definido pelo artigo em relação a presença no v. 10ab['Þr"
. O sinal massorético`
24sof passuq indica o fim do versículo.yhi§y>w:
11a E aconteceuO versículo inicia com o verbo
yhi§y>w:
, o mesmo já analisado anteriormente como imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal. Foi dito que este verbo, entre outras22 Cf. WALTKE, Bruce K- O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 600, 605-607;
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81-82.
funções, é utilizado para introduzir uma narrativa, todavia a esta altura a narrativa já foi introduzida.
Sendo assim, o verbo nesta posição ganha função temporal, ou seja, indica uma mudança de tempo
na narrativa e simultaneamente resgata em si tudo o que foi dito anteriormente.
O uso do verbo neste versículo assume uma função expletiva dando certa ênfase ao
que segue. Seu uso seria comparado ao de uma interjeição e poderia até mesmo ser suprimido,
pois não serve como predicado da oração. O mesmo está significado por um acento
massorético disjuntivo zaqef gadol §25, o qual acentua a função expletiva do
yhi§y>w:
, traduzido do hebraico para o português por e aconteceu.byrIßq.hi rv<ïa]K;
11b Quando se aproximavaA oração inicia com uma conjunção
rv<ïa]K;
26 que pode significar quando, como, de acordo com; e pode também indicar uma força causal visto que, por causa de. No texto éidentificada como uma conjunção subordinada temporal, traduzida do hebraico para o português por quando. Sendo a função de uma conjunção ligar duas orações ou dois termos semelhantes, esta introduz uma oração subordinada temporal. O versículo não só se abre com uma indicação de mudança de tempo denotado pela fórmula introdutória
yhi§y>w:
, mas de fato apresenta uma mudança de tempo indicada pela conjunção temporal que introduz uma oraçãosubordinada temporal27.
O verbo
br"q:
pode ser traduzido do hebraico para o português como aproximar-se,acercar-se, apresentar, juntar, agregar. Pode assumir sentido espacial ou temporal. O verbo
25 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
26 Essa conjunção quando usada para introduzir uma oração subordinada denota que a situação é contemporânea,
ou seja, a relação temporal da oração principal com a da oração subordinada é de contemporaneidade. Cf. WALTKE, Buce k. – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 643.
27 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 143; OSWALT,
byrIßq.hi
28 é um perfeito – terceira pessoa do masculino singular do hifil. Mesmo estando no hifil, ou seja, que tem por característica ser um causativo do qal, no presente caso assume uma voz reflexiva, nesta voz o sujeito é ao mesmo tempo agente e paciente da ação, isto é, pratica e sofre a ação, portanto pode ser traduzido no português por se aproximava. Todavia resta um pouco de suspense sobre quem ou o que se aproximava: Abrão ou o tempo?.hm'y>r"+c.mi aAbål'
11c para chegar ao Egito,Este verbo
awb
é um dos que mais ocorre no texto massorético, corresponde a muitossignificados em português, diferenciados segundo alguns critérios: entrar, meter-se; transpor;
chegar, acercar-se; ir, vir, voltar; apresentar-se, comparecer, incorporar-se, acudir; incorrer; atacar;
suceder, cumprir-se; futuro, vindouro29. Em sentido físico indica o movimento em relação com seu termo. Para diferenciar seu sentido toma-se como critério a relação do móvel com o limite do
referencial espacial. Se, superado o referencial se diz entrar; a passagem do limite será transpor;
tocá-lo é chegar; maior distância é acercar-se; sem definir distâncias é ir ou vir. Em Gênesis
12,11c tem-se a idéia de que se estava chegando, ou seja, bem próximo ao ponto de referência30.
No texto encontra-se
aAbål'
, infinitivo construto do qal. O infinitivo construto aparece com a preposiçãol
.31 em vários casos complementares e explicativos, geralmente seusignificado é de propósito, meta, ou resultado. Ele possui qualidades de substantivos ou
verbos, no caso para chegar assume a função de um verbo em uma oração subordinada adverbial final.
28 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. br"q;;. In: DBHP, 2004, p. 590. Segundo Lambdin, o uso estativo deste verbo no
hifil não é muito comum (Qal br"q;; aproximar-se / Hifil byrIßq.hi estar próximo, a ponto de „fazer algo‟). Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 257; COPPES, Leonard J. br"q;;. In: DITAT, 1998, p.1367.
29 Cf. MARTENS, Elmer A. awb. In: DITAT, 1998, p. 155. 30 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso.
awb. In: DBHP, 2004, p. 91.
31 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81, 104;
O substantivo
hm'y>r"+c.mi
é um acusativo terminativo32, ou seja, indica o lugar para onde alguém ou algo se dirige. Na análise sintática é classificado como adjunto adverbial de lugar, traduzido no português como ao Egito. Sob a palavra encontra-se um assento massorético atnah+
33indicando que esta é a metade do versículo.ATêv.ai yr:äf'-
la, ‘rm,aYO’w:
11d Disse a Sarai mulher dele:Depois de duas orações subordinadas segue a oração principal como um divisor de águas
entre a fala do narrador e o discurso direto. Dado sua importância se procurará dar maior atenção
ao seu sentido e conteúdo. A raiz
rm'a;
34 é comum nas línguas semíticas e carrega o sentido decomunicar. Em hebraico é centralizada no que indica o processo comunicativo (dizer) como
forma verbal presente seja nos textos antigos ou recentes e em qualquer contexto literário.
Frequentemente é usado para indicar o início de um discurso.
O campo semântico de
rm'a;
é bastante vasto, neste sentido o verbo dizer pode ser a melhor tradução na língua portuguesa, pois colhe a substância do termo hebraico comocomunicar, nomear, mencionar, chamar, assegurar, responder, louvar, insultar, comandar,
dizer a si mesmo ou ao coração, pensar, considerar, refletir, interpretar, significar, exclamar,
afirmar, prometer e outros. O verbo não se reduz ao falar meramente mecânico, técnico, fonético, mas como expressão racional de um sujeito, perceptível e compreensível da parte de
outro sujeito; não é o falar como função dos organismos vocais e como fenômeno físico, mas
como portador e transmissor de um conteúdo com significado pronunciado e expresso.
32 Acusativo terminativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo
Testamento, 1998, p. 21-23.
33 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
34 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rm'a'. In: DBHP, 2004, p. 64-65; S. Wagner. rm'a'. In: GLAT. Vol. I di IX.
Este verbo se coloca em relações intersubjetivas e é constituído com o duplo objetivo:
um no acusativo para a coisa dita e outro no dativo para a pessoa endereçada, ou seja, ele é
duplamente transitivo requerendo complemento direto e indireto, pois quem diz, diz alguma
coisa a alguém. Por isso
rm'a;
anuncia e marca o início de um discurso, seja este direto ouindireto e este discurso representa o objeto do verbo.
Partindo da pessoa com quem se fala
rm'a;
pode ser construído com as preposiçõesla,
oul.
. Como exprime uma relação pessoal o termo pode ser usado em vários âmbitos da vida social(cultura, moral, direito, religião), e campos interpessoais (sistemas, sentimentos, ensinamento,
pensamento, comunicação e outros) configurando relações existentes entre homem e natureza,
homem e mundo, homem e criação, Deus e homem, homem e Deus. Sendo assim os sujeitos
deste verbo podem ser os mais diferenciados, não só por artifício literário para dar maior
vivacidade à narrativa, mas em seu sentido próprio.
Nesta narrativa há cinco incidências do verbo
rm'a;
(cf. vv. 11d; 12c; 13a; 18b; 19a),nesta primeira ele aparece como
‘rm,aYO’w:
imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal verbo transitivo direto e indireto, sendo traduzido no pretérito perfeito do português, portanto disse. Como foi visto o verbo solicita complemento direto e indireto.O narrador apresenta então o complemento indireto identificado pela preposição
la,
. Esta preposição pode ser traduzida por para, em, ao lado, contra, com referência a e contém aidéia de movimento em direção a alguém ou a alguma coisa, podendo ser aplicado em vários
contextos que expressam idéia de movimento, de direção ou de localização. Neste estabelece
o nexo com a pessoa para quem o interlocutor se dirige
yr:äf'
, demonstra-se aqui a relaçãointersubjetiva estabelecida pelo verbo
rm'a;
anteriormente comentada35.
O nome
yr:äf'
36 é um nome próprio dado à esposa de Abrão. O nomehV'ai
37 pode sertraduzido como mulher, esposa, fêmea, cada uma, toda. Por sua vez
ATêv.ai
é um substantivo feminino construto com sufixo de terceira pessoa do masculino singular, é classificado sintaticamente como um adjunto adnominal restritivo, porque complementa de modo a especificar, delimitando e restringindo o nomeyr:äf'
, como esposa dele, mulher dele. Este substantivo é acentuado por um zaqef qatan ë 38, que tem função disjuntiva e divide em duaspartes a divisão feita pelo atnah. Como será introduzido um discurso direto utiliza-se dois pontos. O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Abrão.
Até aqui o leitor acompanhou a construção do texto no que diz respeito à sintaxe,
morfologia e tradução, todos estes elementos colaboram para colher a beleza de sua
construção, assim como o sentido nesta possível tradução, agora o estudo convida a dar mais
um passo no que se refere à beleza estilística.
1.2 Análise estilística
Nos parágrafos acima, a atenção do estudo estava voltada ao modo como o autor ou
redator articula as palavras. No que segue, o leitor é convidado a voltar sua atenção para a
maneira com a qual o autor ou redator procura dar maior expressividade, maior colorido,
maior vivacidade ao texto. Observando o versículo como um todo é possível colher alguns
aspectos referentes à beleza da construção estilística.
36 Cf. COHEN, Gary G.
yr:äf'. In: DITAT, 1998, p. 1494.
37 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hV'ai In: DBHP, 2004, p. 80-81.
38 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:
10a‘hm'y>r:’c.mi
~r"Ûb.a;
dr<YE‚w:
10
b~v'ê rWgæl'
10c`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi(
10dAconteceu uma fome na terra
E desceu Abrão para oEgito
Para imigrarali,
Porque pesada era a fome na terra.
O leitor se encontra diante de uma construção estilística chamada paralelismo
reto39, facilmente visualizável. O sujeito e o complemento „fome na terra‟ se enquadram como uma moldura de um quadro envolvendo o conteúdo do mesmo. A moldura AB e
A‟B‟ oferece informação sobre o sujeito e o complemento do quadro, o conteúdo C e C‟
se referem à ação da personagem destacado nesta construção, ou seja, Abrão, enquanto
D e D‟ se referem ao lugar de destino.
Identifica-se uma relação de oposição entre terra e Egito expressa na construção B x D
e entre D‟ x B‟. No v. 10b e 10c identifica-se um paralelismo do tipo CD e C‟D‟ simétrico chamado sintético porque o versículo é organizado em dois períodos consecutivos. Verifica-se
que, no segundo período aparecem os mesmos elementos do primeiro ABCD = D‟C‟B‟A‟ e as frases expressam algo equivalente.
Do ponto de vista da sintaxe do texto há duas orações coordenadas correspondentes ao
v. 10a e 10b e duas orações subordinadas no v. 10c final e 10d explicativa. A primeira oração
coordenada apresenta o contexto e, a segunda apresenta a ação da personagem, sendo que as
duas subordinadas complementam e justificam a oração da qual são subordinadas, ou seja,
v.10b, apresentando a finalidade da ação de Abrão e o porquê da mesma.
No v. 11a continua a voz do narrador, mas há uma mudança de tempo introduzida pela
fórmula
yhi§y>w:
, bem como da posição em que se encontra o casal com relação ao destino,conferir nos vv.10b e 11b-c. A construção estilística deste versículo será analisada no próximo
capítulo. Todavia cabe ainda observar certa simetria neste versículo, o qual é composto por
dois períodos de subordinação centralizados no verbo
‘rm,aYO’w:
.
39 Paralelismo: relação de equivalência, por semelhança ou por contraste, entre dois ou mais elementos. Em
yhi§y>w:
byrIßq.hi rv<ïa]K;
hm'y>r"+c.mi aAbål'
ATêv.ai yr:äf'-
la, ‘rm,aYO’w:
11a Aconteceu,
11b quando se aproximava
11c para chegaraoEgito, 11d disse a Sarai mulher dele:
Fórmula expletiva Or.Sub.adv.temporal Or.Sub.adv.final Or. Principal
O leitor moderno diante de tais construções provavelmente tentaria fazer ajustes, pois
as formas literárias atuais não encorajam a repetição e muito menos a toma por base. Mas o
poeta hebreu pensava, exprimia-se e pertencia a uma tradição diversa. Ele parece não ter
pressa, um pensamento importante não poderia ser esgotado numa única afirmação, sendo
assim, com o uso de paralelismos, o poeta hebreu procura expressar mais plenamente o
significado latente do texto40.
Numa narração, o estilo não se fecha em si mesmo, mas fornece indicações que
revelam o movimento do texto e permitem acompanhar o seu percurso e as suas
transformações de modo dinâmico na leitura.
1.3 Análise narrativa
A análise narrativa parte do pressuposto de que o texto sagrado faz parte de um todo
coerente, contudo para o estudo sente-se a necessidade de elucidar suas estruturas, deixando claro
que uma leitura narrativa não elimina outras abordagens. A leitura não é um ato ingênuo, nesta é
preciso conhecer as convenções que o texto fornece. O método narrativo respeita as estruturas
linguísticas e estilísticas da narrativa, antes parte do exame desses elementos para desvendar a
direção que toma a narrativa.
Qualquer narrativa se estrutura sobre cinco elementos fundamentais: os fatos que
compõe a história; as personagens que vivem estes fatos; o tempo e o lugar em que estes
acontecem; e a necessária presença do narrador, pois, ele caracteriza a narrativa. Ele é o
elemento organizador de todos os outros componentes. É o narrador quem faz o mediador
entre o que é narrado (história) e o autor, entre o narrado e o leitor. Eis que o narrador
introduz a narrativa:
O início da narrativa consta da introdução ou apresentação, é também chamada de
exposição. Aqui são apresentados os fatos iniciais, as personagens, o tempo e o espaço. É a
parte na qual se informa o leitor, situando-o diante da história que confrontará.
O leitor é informado de que aconteceu uma fome na terra, sabe-se então tratar de um ambiente hostil de difícil sobrevivência. Os elementos apresentados, fome, imigração, Egito,
Abrão, de certa forma criam uma tensão que organiza os fatos e prende a atenção do leitor,
gerando certo suspense e curiosidade sobre o que pode vir a acontecer.
Segundo a rapidez e duração do relato os críticos distinguem dois tipos: a „cena‟ e o „sumário‟41. No sumário o tempo relatante é mais breve que o tempo relatado, portanto
pode-se dizer que o tempo aprepode-sentado é sumário, pois o narrador nada diz a respeito do ano em
que aconteceu, desde quando, o que fizeram outras pessoas. O narrador não se demora em
detalhes, mas volta o seu foco para a primeira personagem apresentada, Abrão. Este foi
41 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 134-135.
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:
‘hm'y>r:’c.mi ~r"Ûb.
a; dr
<YE‚w:
~v'ê rWgæl'
`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi(
10a Aconteceu uma fome na terra, 10b E desceu Abrão ao Egito 10c Para imigrar ali,
10d Porque pesada era a fome na terra.
yhi§y>w:
byrIßq.hi rv<ïa]K;
hm'y>r"+c.mi aAbål'
ATêv.ai yr:äf'-
la, ‘rm,aYO’w:
11a E aconteceu,
obrigado a descer para o Egito e morar ali como estrangeiro, imigrante, porque a fome não era
qualquer uma, mas é qualificada como uma fome pesada.
Aludindo ao tempo cronológico, o leitor tem uma informação que o situa: a personagem.
É narrado um acontecimento com o patriarca Abrão42, ou seja, mais ou menos no século XIX
a.C. É uma época de fome, mas como começou não se sabe. De fato, a narrativa ao construir um
mundo que inclui uma pluralidade de acontecimentos e de personagens não pode dizer tudo
sobre esse mundo. Refere-se a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas, afinal o
texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho43.
No versículo seguinte (cf. v. 11a) continua a voz do narrador, todavia o leitor
percebe uma mudança no quadro da narrativa, ou seja, uma mudança temporal, marcada
pela fórmula expletiva e aconteceu e pela posição em que se encontra a personagem com relação ao destino. Antes ela estava descendo (cf. v. 10b), agora ela já está se aproximando
para chegar (cf. v. 11b-11c), tal mudança gera no leitor certa expectativa e curiosidade a
respeito do que pode vir a acontecer.
Certamente qualquer pessoa pode ler uma narrativa, porém, dependendo dos leitores
os graus de compreensão e impactos da leitura são diferentes. Considerando que o leitor
ideal seja um hebreu, ou um dos herdeiros da fé monoteísta e que tem o Patriarca Abrão
como ponto comum de fé, as figuras como fome, Abrão, imigrar, Egito, tem uma
repercussão, que lhes toca profundamente o sentido da fé e da história pessoal. Por isso, os
leitores precisam ter certo conhecimento a respeito do mundo „real‟ para presumi-lo como o pano de fundo do mundo ficcional.
2. Estudo histórico- teológico
2.1 A personagem Abrão44
A narrativa bíblica apresentada coloca o leitor diante de pontos nodais, sobre os quais
é chamado a confrontar-se, sendo assim é necessário estabelecer uma ordem, para tanto foi
eleita a personagem, Abrão, situando-lhe no tempo e no espaço.
O ciclo Abrão é situado, pela maioria dos estudiosos, no século XIX a.C.. Segundo a
hipótese documental45, esta narrativa pertence à chamada fonte Javista (J), datada do século IX
a.C, por isso há autores que ressaltam a importância das tradições pré-literais. Esta hipótese
procura esclarecer, que o documento Javista não é uma invenção do autor do século IX a.C.,
mas foi escrita no século IX a.C.. Deste modo, restam dez séculos de distância entre a tradição
oral e o documento escrito, o que justificará certos anacronismos46 identificado na narrativa.
44 O núcleo histórico das tradições de Abrão é objeto de debates à luz das repercussões arqueológicas. Os
documentos de Nuzi, os nomes de pessoa semítico-ocidental de Mari, as relações e os movimentos amoritas entre Canaã e a Mesopotâmia foram utilizados para reconstruir o ambiente histórico cultural de Abraão de Ur da primeira metade do II milênio. Alguns pesquisadores hipotizam para a época patriarcal duas ondas migratórias, uma amorita e outra aramaica, correspondente ao quadro da expansão amorita por volta de 2000a.C. O fato de Abraão ser chamado de Hebreu (cf. Gn 14,12) é considerado como índice de sua participação aos Hapiru. Não obstante tentativas de situar o patriarca em 2000a.C., a Bíblia relaciona os
patriarcas entre os arameus “Meu pai era um arameu errante” (cf. Dt 26,5; Gn 25,20; 28,5; 31,20.24), as
referências a estes povos se dá num documento assírio datado de cerca de 1110 a.C. Sugere-se que existe uma continuidade racial entre os amoritas da época patriarcal e os arameus dos séculos XI e Xa.C. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 27-28; CLEMENTS, R.E. ~r"b.a. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112-113.
45 Embora a referência as fontes, aos documentos ou as tradições não sejam mais relevantes dentro da pesquisa
exegética da teologia atual, a maioria dos manuais ainda apresentam essa discussão. Penso ser importante não ignorá-la. Conforme a mesma, o Pentateuco corresponde a compilação de quatro documentos, diversos em idade e de ambiente posterior ao de Moisés. Existiam inicialmente duas obras narrativas: O Javista (J), que usa, desde a narrativa da criação, o nome YHWH (o qual Deus revelou a Moisés), e o Eloísta (E) que se dirige a Deus com nome de Elohim. O J teria sido escrito no século IX a.C., em Judá (Sul), o Eloísta no século VIII a.C., em Israel (Norte). Após a queda do Reino do Norte (722 a.C) os documentos teriam sido fundidos (JE). Na época do rei Josias (622 a.C) teria sido adjunto o Deuteronômio (D) formando um possível documento (JED), e depois do exílio, o Código Sacerdotal (P), o qual serviu na armadura e quadro (JEDP) para o Pentateuco. Cf. SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 111-177; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 21-35; ZENGER, Enrich – BRAULIK, Georg. Os livros da Torá/ do Pentateuco. In: ZENGER, Enrich – BRAULIK, Georg – NIEHR, Herbert (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 83-157.
46 Prováveis anacronismos: Gn 21,34 diz que „Abraão viveu muito tempo na terra dos filisteus‟, mas estes povos
Outros estudiosos apresentam diferentes possibilidades de datação, há quem diga que a
posição de Abrão como ancestral comum a Israel provavelmente se deu no período em que
existiam significativos laços entre Judá e Israel, e Judá gozava de uma posição predominante.
Estas condições indicam como idade mais adaptada a época do reino davídico – salomônico47. Por outro, lado há quem diga que os escritos definitivos são frutos pós-exílicos48.
No Capítulo 11 do livro do Gênesis é possível conhecer a família e a origem de Abrão.
Seu pai Taré, teve três filhos: Abrão, Nacor e Arã. Arã morreu deixando um filho, Lot e duas
filhas Melca e Jesca. Nacor casou-se com Melca. Abrão casou-se com Sarai, uma mulher
estéril. O Pai de Abrão tomou a ele, a Sarai e a Ló e partiram de Ur dos caldeus49 para ir ao
país de Canaã, mas chegados em Harã se estabeleceram ali. Diz ainda que os anos de vida de
Taré foram duzentos e cinco anos50, e que ele morreu em Harã (Gn 11,27-32).
Após tais fatos, Abrão foi chamado a estabelecer uma aliança com Deus, para tanto ele
deveria deixar sua parentela e a casa de seu pai e seguir rumo à terra que Deus lhe mostraria.
Deus prometeu fazer dele um grande povo e abençoá-lo. Abrão51 juntamente com a esposa
Sarai e o sobrinho Ló partiram de Harã caminharam para a terra de Canaã, habitada pelos
cananeus, mas o Senhor prometeu a Abrão que esta terra pertenceria a seus descendentes.
47 Cf. CLEMENTS, R.E.~r'b.a
;
. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p.113-114.
48 Segundo esta posição o exílio do início do sec. VI a.C. minou a fé do povo, muitos prestavam culto às
divindades estrangeiras como Baal (Oséias entre 755-721 a.C., queda da capital, Samaria). O grupo que permaneceu fiel reabriu o coração à esperança de restauração (Ezequiel e Jeremias) do povo (586-538). O sonho se torna possibilidade quando Ciro, o persiano, entra em cena e permite o retorno à pátria (538). Neste ponto os círculos de sacerdotes, escribas e mestres, recolheram os documentos que tinham, interrogaram a memória histórica do povo e si confrontaram com as novas reflexões do período exílico, então a fé de Israel em YHWH é reconfirmada, e o povo de Israel retoma a unidade na fé num ancestral comum Abrão, homem escolhido por Deus e destinatário da promessa divina, exemplo de fé, assim como a unidade através do Templo. Cf. SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 199-243.
49 O nome da Cidade da qual partiram Taré e sua família (Ur dos caldeus) Ur é conhecida e muito antiga, mas o
termo “Caldeu” é problemático. Os caldeus só surgem nos textos assírios no século IX a.C e referir-se a “Ur dos
Caldeus” pressupõem a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja, babilônicos, que acontece somente no século VII a.C, provavelmente no início do segundo milênio seria chamada Ur dos Sumérios. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 28.
50 Com referência aos anos da vida de Taré existem versões diversas. Segundo o Pentateuco samaritano ele teria
morrido aos 145 anos, se ele teve Abrão aos setenta anos (cf. Gn 11,26) e Abrão o deixou quando tinha 75, conclui-se que Abrão tenha deixado Harã somente por ocasião da morte de seu pai (cf. Gn 11,26 e 12,4; At 7,4). Segundo a versão que temos, Taré teria vivido ainda 60 anos após a partida de Abrão. Cf. Nota da Bíblia de Jerusalém em Gn 11,31.
51 Idade de Abrão e Sarai: Abrão contava com 75 anos quando partiu e sua esposa era 10 anos mais nova que ele, portanto
Abrão atravessou o país até Siquém52, denominado lugar santo, onde construiu um
altar a YHWH, dali caminhou rumo a Betél53, construindo um altar a YHWH e seguiu de
acampamento em acampamento até o Negueb. Este gesto de percorrer de norte a sul,
simboliza a tomada de posse da terra, construindo altares como marcas que o ligam a terra,
embora Abrão permaneça sempre um estrangeiro de passagem54.
Abrão é o eleito de Deus, o escolhido com quem Deus faz aliança e através de quem
abençoa todos os povos da terra. Apesar de ter chegado ao Sul do território que o Senhor lhe
prometera, passa por uma situação de fome, que o obriga a procurar sobrevivência fora da
terra que lhe foi prometida.
2.2 A fome na terra55
No hebraico a palavra terra tem uma gama de sentidos, mas o texto situa o leitor na
terra de Canaã56. Como foi visto anteriormente, Abrão veio de acampamento em
acampamento até se estabelecer em Negueb, onde a fome era pesada sobre a terra. Neste
sentido a terra também pode ser associada a solo, enquanto se refere à condição da terra57 e de
seus produtos. Nos tempos antigos a distribuição e a conservação de alimentos eram precárias,
a fome significava sofrimento e inanição.
52 A cidade de Siquém terá um papel importante na vida de Jacó (cf. Gn 33,18-20; 35,1-4), mais tarde as tribos
formarão ali uma federação (cf. Js 24). Enquanto Betél se tornará a capital do Reino do Norte, após a morte de Salomão (cf. 1Rs 11-12). Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 64.
53 Betél se tornará o centro religioso do Reino do Norte, em competição com Jerusalém (cf. 1Rs 26-33). Cf.
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000. p. 65.
54 Cf. NORTH, Roberth. Abraão. In: BRUCE M. METZEGER – MICHAEL D. COOGAN (Orgs.). Dicionário
da Bíbliavol.1: as pessoas e os lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002s p. 2-3; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 65.
55 Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 60-67.
56 O mundo bíblico é divido em duas partes: Israel e as nações, não obstante Deus governe todos os lugares, a
área de santidade e autorevelação se limita às fronteiras da terra de Israel. Cf. HAMILTON, Victor P. #r<a,. In: DITAT, 1998, p. 124-25.
57 Com o significado de solo, o termo se refere à condição da terra e dos seus produtos. Essa doa a gordura (cf.
A fome pode ter suas origens naturais. Partindo do Negueb, este é caracterizado como
uma estepe árida com baixo índice pluviométrico anual, menos de 20 centímetros, o que
possibilita o plantio, mas não garante a colheita. Outras regiões relativamente planas são
formadas por um solo depositado pelo vento, porém, as alterações climáticas permitem
somente a sobrevivência de pastores. O sudeste é um deserto, pois o índice pluviométrico
anual é de 10 centímetros, a paisagem é composta de pedras e vales secos, um deserto rochoso
e marcado por uádis. Existem regiões que recebem até 50 centímetros de chuva por ano e o
solo suporta campos de grãos, oliveiras e vinhas.
As alterações nos índices pluviométricos se devem ao fenômeno dos principais ventos
de inverno, provenientes da direção leste do Mediterrâneo, estes carregam consigo o ar úmido, e
quando encontram as colinas são forçados a vir para baixo, resfriado-se assim até o ponto de
orvalho e liberação da umidade em forma de chuva. Mas, do lado contrário das colinas, o ar
desce, se aquece e fica seco. As chuvas que caem em raros temporais a leste da crista das
colinas de Judá, são localizadas e logo desaparecem nos uádis ou evaporam-se ao sol.
O clima é do tipo mediterrâneo, verões quentes sem chuva e invernos frios e úmidos.
Praticamente há duas estações, as chuvas se concentram em poucos dias no ano, sendo assim a água
da chuva tem poucos dias para penetrar no solo. Chove menos ao sul e vai aumentando à medida
que avança ao norte, embora a maior parte da terra é árida e a taxa de evaporação é elevada. Em
contraste com o Egito e a Mesopotâmia, como reconhece o Deuteronômio 11,10-12, citando a
advertência de Moisés aos Israelitas:
Deste modo é possível compreender porque a maior punição para os israelitas era a
ação Divina de bloquear os céus, o que equivale à fome e à morte.
Abrão se encontra em dificuldade, e isto surpreende o leitor, pois há pouco Deus
prometera aquela terra a ele e à sua posteridade, prometendo também abençoá-lo. Abrão
percorre a terra de norte a sul, ou seja, simbolicamente toma posse da terra, mas o que se
presencia é uma fome. Como se vê, a seca era frequente em Canaã, enquanto o vale do Nilo e
o Egito produziam bastante trigo. De fato a fome é um tema presente na vida do povo de
Israel, tanto que levará Israel a habitar no Egito (Gn 47,4).
O texto é imparcial quanto à ação de Abrão, não emite julgamentos morais ou
dogmáticos, a única explicação oferecida para justificar a ação de Abrão é que a fome era
pesada sobre a terra, obrigando-o a buscar no Egito, a sobrevivência. A decisão de Abrão é
compreensível. De fato quando a terra não pode manter os seus, esses encontram meios para
sobreviver, sendo a migração um dos meios comuns aos pastores transmigrantes. Por outro
lado, Israel é peregrino, desde a divina eleição é convidado a colocar-se a caminho.
2.3 Desceu ao Egito
A palestina é uma região montanhosa, limitada a oeste pelo Mar Mediterrâneo e a leste
pela fenda Araba, abaixo do nível do mar. Sendo assim, por qualquer lugar que se viaje em
Canaã se seguirá sempre ou para baixo ou para cima. Estando em Canaã, terra prometida, está
geográfica e teologicamente no ponto central da atenção. Segundo Hartley58, com referência a
terra de Israel um viajante ou „sobe‟ ou „desce‟. Por vezes o verbo „descer‟ é usado quando de fato o destino é para cima. Em tais casos o sentido é de ir para o sul ou de sair da cidade em
direção ao campo, ou até mesmo de ir por altos e baixos. Abrange-se também o sentido de
passar de uma posição de evidência para uma de menor importância, neste sentido descer
58 Cf. HARTLEY, John E.
significa abandonar o lugar de prestígio, logo descer ao Egito tem a nuança de deixar a terra prometida para habitar em meio a pessoas que estão fora da Aliança. Descer ao Egito é
equivalente a abandonar a Deus e buscar auxílio humano.
A região do delta do Nilo é formada por lodo depositado por milhões de anos, mas o
restante do Egito é um longo vale de um rio, limitado ao leste e oeste por grandes desertos áridos
e inóspitos. A civilização Egípcia se desenvolveu num clima estável e terras extremamente férteis,
regularmente irrigadas pelo Nilo. Por isso, os egípcios puderam desenvolver uma rica economia
agrícola produzindo trigo, cevada, vegetais variados, frutas e uvas. Em tempos remotos, o Egito
era o celeiro do Oriente Médio, principalmente em tempos de escassez59.
O patriarca Abrão é situado no Reino Médio60 2134-1786 a.C. Durante a XI dinastia,
monarcas originários de Tebas, estabeleceram o controle sobre todo o Egito e fundaram o Reino
Médio. Os soberanos mais poderosos foram os da XII dinastia. O Reino Médio foi significado
pela revivescência artística, e mais no fim um período de debilidade política permitiu a entrada
de um grupo de estrangeiros na região do delta do Nilo, esses eram conhecidos como hicsos61
ou „chefes das terras estrangeiras‟ e provavelmente de origem pastoril, alguns estudiosos vêem
esse período como o cenário das narrativas de José no Egito62.
A partir da época Mosaica, em geral, a Bíblia coloca a terra do Egito numa posição
negativa. Suas riquezas oriundas do Nilo e sua civilização são vistas, nas tradições bíblicas,
como uma tentação constante (cf. Gn 26,1-6; 46,1-4; Nm 11,4-5). É o Faraó quem oprime o
povo de Deus, negando-se a dar liberdade a Israel. Por isso, os profetas de Israel atacam a
aproximação de seu país ao Egito. No entanto, duas passagens do AT chamam a atenção com
referência a este país, Josias, o piedoso rei de Judá, morre porque não deu ouvidos à Palavra
59 Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da
BíbliaVol.1, 2002, p. 66-69.
60 Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia. 2. ed. São Paulo: Vida Cristã, 2007, p. 59. 61 Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia, 2007, p.60.
62 Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização e cultura. 3. ed. São Paulo: Hemus,
de Deus por boca do Faraó Neco (cf. 2Cr 35,20ss). Na segunda, Isaías (cf. Is 19,16ss) antevê a
conversão do Egito e da Assíria ao Senhor63.
Os pressupostos possibilitam compreender o que seria para um hebreu ter que ir ao
Egito em busca de alimento, submetendo-se, por vezes, ao julgo de um povo que não conhece
o Deus único. Essa é uma verdadeira descida, deixar a terra que o Senhor deu, a terra da
Aliança, para descer a uma terra pagã e influenciada por „falsos deuses‟ a fim de receber desses o sustento para a vida.
2.4 Morar como imigrante64
Abrão desceu ao Egito, mas ao que tudo indica sua intenção não era somente buscar
viveres. Ele desceu para morar ali como imigrante, ou seja, viver entre pessoas que não são
parentes consanguíneos. Na condição de imigrante a pessoa não desfrutava os direitos civis
dos cidadãos, mas dependia da hospitalidade, a qual desempenha um importante papel no
Antigo Oriente.
Para a Bíblia o estrangeiro65 e também o inimigo podem chegar a ser considerados
como um irmão, mas nunca como iguais, pois as diferenças devem ser respeitadas e acolhidas
com a finalidade da fraternidade. A experiência de ser estrangeiro, da migração e do contato
com estrangeiros é um tema central na história dos filhos de Israel. O seminomadismo
patriarcal, as relações com povos limítrofes, a deportação, o exílio a que foram submetidos e
as dominações por potências estrangeiras, mostram que Israel viveu como estrangeiro junto a
63 Cf. HAMILTON, Victor P. ~y>r:’c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871.
64 Cf. KELLERMANN, D. rwg. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 2007-2024; WILLIS,
Timothy M. rwg. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da BíbliaVol.1, 2002, p. 94; STIGERS, Harold G. rwg. In: DITAT, 1998, p. 255-256.
65 No AT é possível distinguir três categorias de migrantes Nekar (rk'nE) ou estrangeiro de passagem, desconhecido,