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Intervenção do SENHOR por causa de Sarai

1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b

2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai

O Senhor intervém

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, esta é a primeira e única vez em que o Senhor se manifesta nesta narrativa, sua intervenção é determinante. O Senhor feriu com grandes feridas o Faraó e a sua casa, como mais tarde, lançará pragas sobre outro Faraó por ter abusado de Israel (cf. Ex 7,8-11,10)235. Em toda a narrativa, as duas personagens Sarai e YHWH não falam sequer

uma palavra. Sarai parece passiva diante das duas potências que a circunda, Abrão e o Faraó. Todavia resta-lhe alguém a quem pode se dirigir: e o Senhor a ouviu e interveio.

O narrador diz: „por causa de Sarai‟. A expressão

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, como foi visto anteriormente, é polissêmica e pode significar a palavra, seja o ato de falar, o enunciado ou o seu conteúdo, o assunto ou o tema. Também significa evento ou fato, ocasião, coisa, algo. Resta aqui uma incógnita, de fato não se sabe ao certo o que Sarai terá feito ou pronunciado, mas sabe-se que foi por ela que o Senhor interveio. A interpretação da expressão deixa

234 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 181-183. 235 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.

entender que o Senhor interveio devido ao que aconteceu a Sarai, ou seja, pelo o fato de ter sido tomada pelo Faraó.

Não se sabe o conteúdo que Sarai dirigiu ao Senhor, poderá ter sido uma súplica, um grito, um lamento elevado a YHWH “[...] gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e do fundo da servidão o seu clamor subiu a Deus. E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lembrou- se de sua aliança [...]” (Ex 2,23-24), e assim o Senhor ouviu a Sarai, esposa de Abrão.

A intervenção do Senhor leva a crer que Sarai é uma pessoa respeitada por Deus e que ela está contemplada em seu projeto sobre Abrão236 (cf. Gn 21,12). Deus a protege e a defende do Faraó, assim como séculos depois fará com os filhos e as filhas, dos filhos de Sarai, quando estarão sob a opressão de outro Faraó. O primeiro patriarca e a primeira matriarca antes de gerarem um filho, geram a história futura daquele povo, Israel, que nascerá do filho, Isaac.

O pensamento clássico237 judeu explica que esta descida de Abrão e Sarai ao Egito foi um precursor do exílio egípcio, deste modo a expulsão de Abrão do Egito como um homem rico abriu caminhos espirituais da redenção que possibilitaram seus descendentes saírem do Egito carregados de ouro e prata. Igualmente o cuidado de Sarai para não ser desonrada pelo Faraó dotou, mais tarde, suas descendentes, as mulheres judias do Egito, com a virtude para permanecerem fiéis às suas famílias.

A ação de Deus salva a promessa nas suas duas dimensões, horizontal e vertical, a promessa de Deus para com o homem e do homem para com sua semelhante carne de sua carne, osso dos seus ossos. Livrando Sarai das mãos do Faraó, Deus salva a aliança feita com Abrão e mostra a dignidade da aliança feita no matrimônio238.

236 Cf. GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 66. Segundo o

prof. Matthias “[...] a história de Abraão e Sara, trabalha com a concepção de que o descendente herdeiro das promessas divinas deve nascer da união deste casal [...] „eu a abençoarei e dela te darei um filho‟ (Gn 17,16).”

237 Cf. SEFER BERISHIT1, 2008, p. 75.

238 Cf. GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30; SKA, Jean Louis.

Segundo Ska, a narração é convite a não fixar-se na ordem histórica. Esse corresponde à reflexão sobre o poder de YHWH, Senhor de Israel, e até mesmo no Egito. O Faraó demonstrou temor a YHWH. O Deus de Israel é o verdadeiro soberano do Egito, seu poder e divindade são superiores ao poder e divindade do Faraó, porque de outra ordem. O objetivo do narrador não é fixar o leitor em eventos sensacionais, tanto que nesta narrativa ele nem chega a elencar ou descrever que tipos de feridas atingiram o Faraó, mas o convida a ir além e confirmar a sua experiência de fé no Deus de Israel, o qual nem o Faraó com seus subalternos são capazes de contornar239.

As pragas que atormentaram o Faraó e sua casa parecem convencê-lo de que cometera um ato proibido, ainda que não saiba qual. Essas são as primeiras pragas do Egito, primeira manifestação da vitória dos pais de Israel. Interessante também é o texto paralelo (cf. Gn 20,2), os reis, Faraó e Abimelec, parecem inocentes do malfeito pelo qual são punidos: a responsabilidade cabe a Abrão e Sarai240.

O Faraó sofre por ignorância, mas é, todavia, punido. Aqui se colhe alguns pressupostos da „teologia de Israel‟: quem não é filho de Abraão e está fora da família da aliança é responsabilizado por crimes, ainda que estes sejam cometidos involuntariamente, e deve, portanto, ser sujeito à punição adequada, caso o crime seja cometido contra um membro da família de Abrão241.

Na mesma linha de reflexão também Gunkel242 comenta que, o narrador apresenta o Faraó como inocente do adultério, e ainda assim é ferido por Deus. A variante em Gn 20,7, narra de forma ainda mais ofensiva à sensibilidade dos leitores. Segundo Gunkel nas entrelinhas é possível constatar uma idéia de fundo, ou seja, a de que os adversários de Israel

239 Cf. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens, 2005, p. 56-57. 240 Cf. CHOURAQUI, Andre. A Bíblia, 1995, p. 138.

241 Cf. HAMILTON, Victor P. The new international commentary on the Old Testament: The book of Genesis

chapters 1-17. Michigan: Grand Raipds, 1990, p. 384-385.

sempre se sairão mal, independente do caso, pois YHWH é o Deus de Israel e é mais forte do que os deuses todos.

Enfim o narrador parece propor ao leitor a convicção de que a ação de Deus é o essencial. O leitor inicialmente é levado a fixar-se em questões morais, detendo-se no pedido de Abrão a Sarai, no abandono de Canaã, a traição a que foi vítima Sarai, todavia estes se tornam secundários diante da intervenção de Deus. Israel sempre teve presente esta salvadora intervenção de Deus. Aquele que prometeu é verdadeiramente fiel e digno de ser acreditado243. Todavia a história não acaba por aqui, tem-se ainda um caminho a fazer e o leitor é convidado a acompanhar o seu desfecho.

CONSIDERAÇÕES

Prosseguindo o estudo desta narrativa, atinente à tradução se observa certa unidade. A maior parte dos verbos se encontram no modo ativo, conjugados no qal, com exceção de dois verbos, um no piel (cf. v.15b,

Wlïl.h;(y>w:

) e outro no hifil (cf. v.16a,

byjiÞyhe

).

Com relação a análise estilística percebe-se que estes versículos apresentam um tom carregado de força enfática, reforçado pelo uso de diferentes figuras de linguagem com esta característica: a anabasis (cf. verbos dos vv. 14c; 15abc) ou gradação; paralelismo composto (cf. vv. 14cd; 15a); paralelismo reto (cf. v. 15); epístrofe (cf. v. 15), enumeração (cf. v. 16b);

anagoge, poliptoto e pleonasmo (cf. v. 17).

Chegando na análise narrativa percebe-se a relação entre esta e a anterior, ou seja a estilística. De fato as figuras de linguagem corroboram este momento da narrativa, ou seja, o clímax, momento chave, dinâmico e emocionante, carregado de conflitos caracterizado por cenas de tipo sumário, mudanças de tempo, de foco, além da presença de novos e significativos personagens.

Destaca-se aqui o contorno surpreendente que sofre a narrativa. A entrada de dois personagens que nem sequer tiveram voz, o Senhor e Sarai. O uso de artifícios literários, repetições, pleonasmo, poliptoto e paralelismos, fazem o leitor intuir que o Senhor age com grande poder, e que Ele é mais poderoso que qualquer soberano e mais potente que todos os deuses estrangeiros. A ação do Senhor neste capítulo é central e toda a construção linguística está a seu favor.

O estudo histórico-teológico reafirma os dados do estudo linguístico-literário e indicam a importância de compreender melhor o que pode significar o Egito na experiência dos hebreus, assim como o Faraó. Diante de tão grande império e poder, o clamor de uma vítima chega até Deus e este age em seu favor. Assim a beleza de Sarai, aparente motivo de ambiguidade, tornou-se, por sua ousadia, sinônimo de vida e salvação para seu esposo, para si e para todos os que lhes sucedem.

As entrelinhas permitem identificar o protagonismo de Sarai na garantia da fidelidade e continuidade da promessa feita a Abrão e à posteridade que dela descenderá. É ela o modelo de mulher justa, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as bênçãos divinas se prolongam na história.

CAPÍTULO IV

SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO

Chega-se ao ponto nodal da narrativa, o que se denomina desfecho, desenlace ou conclusão. Aqui se apresenta a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer o final está se configurando, seja ele feliz ou não, seja surpreendente, cômico ou trágico.

Após o caminho feito, o narrador passa a voz ao Faraó que até então não havia tomado a palavra. Dando a palavra ao Faraó, o narrador deixa sair de sua boca a afirmação de que Sarai não é somente irmã de Abrão, mas também sua mulher. Como o Faraó chegou a esta conclusão não se sabe, ele parece tão surpreso com a questão quanto os leitores, ele exige explicações que, no entanto, essa narrativa não evidencia. Todavia, na narrativa paralela (cf. Gn 20,1-20) o patriarca se justifica.

Neste capítulo se apresentará um estudo sincrônico, analisa-se a narrativa e a questão da esposa-irmã sob o aspecto literário e histórico-teológico. Tanto na análise literária quanto na análise cultural têm-se basicamente considerações fundamentadas no

contexto histórico cultural do Antigo Oriente Próximo. O leitor é convidado a prosseguir entrando mais especificamente na temática deste trabalho e assim colher os elementos que justificam o título escolhido.