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2. Estudo histórico teológico

2.4 Morar como imigrante

Abrão desceu ao Egito, mas ao que tudo indica sua intenção não era somente buscar viveres. Ele desceu para morar ali como imigrante, ou seja, viver entre pessoas que não são parentes consanguíneos. Na condição de imigrante a pessoa não desfrutava os direitos civis dos cidadãos, mas dependia da hospitalidade, a qual desempenha um importante papel no Antigo Oriente.

Para a Bíblia o estrangeiro65 e também o inimigo podem chegar a ser considerados

como um irmão, mas nunca como iguais, pois as diferenças devem ser respeitadas e acolhidas com a finalidade da fraternidade. A experiência de ser estrangeiro, da migração e do contato com estrangeiros é um tema central na história dos filhos de Israel. O seminomadismo patriarcal, as relações com povos limítrofes, a deportação, o exílio a que foram submetidos e as dominações por potências estrangeiras, mostram que Israel viveu como estrangeiro junto a

63 Cf. HAMILTON, Victor P. ~y>r:’c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871.

64 Cf. KELLERMANN, D. rwg. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 2007-2024; WILLIS,

Timothy M. rwg. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1, 2002, p. 94; STIGERS, Harold G. rwg. In: DITAT, 1998, p. 255-256.

65 No AT é possível distinguir três categorias de migrantes Nekar (rk'nE) ou estrangeiro de passagem, desconhecido,

forasteiro, intruso (cf. Gn 17,12; Ex 12,43; Lv 22,25); Zar (rz") (cf. Jr 30,8; 51,51; Ez 7,21) estrangeiro étnico e político, inimigo (tzar) grupos confinantes com Israel: assírios, babilônios; Ger, gerim ou gur (rgEå) estrangeiro residente inserido no tecido social, não pertence ao povo por sangue, mas reside estavelmente. Cf. INOCENZZO, Cardellini. Stranieri ed emigrati-residenti in uma sintesi di teologia bíblica. In: Rivista Biblica (1992) 2, p. 129-181; P., Bovatti. Lo straniero nella Bibbia. In: Rivista del Clero Italiano (2002) 7/8, p. 408-502.

outros povos que, por vezes, teve que viver a própria fé forjando sua identidade cultural no contato com estrangeiros.

Entre as causas que levava uma pessoa ou um clã a sair de sua terra está a fome. De fato este é um motivo recorrente no AT: Elimelec parte com a família para Moab como refugiado (cf. Rt 1,1); outra carestia induz Elias a se alojar na casa da viúva de Sarepta (cf. Jr 17,20); Eliseu manda a Sunamita e a sua família para região mais fértil, para fugir da carestia (cf. 2Rs 8,1). A carestia também levou Isaac a buscar refúgio como estrangeiro junto a Abimelec em Gerara (cf. Gn 26,3); a estadia de Israel no Egito é devido ao fato de uma carestia ter expulsado os irmãos de José daquele lugar (cf. Gn 47,4). O mesmo que aqui acontece com Abrão, ele é o protagonista de uma experiência que o coloca em comunhão com os seus descendentes.

O sentido apropriado do substantivo

rgE

se colhe quando aplicado para designar Israel como peregrino no Egito (cf. Gn 23,9; 15,13). No AT estes

~yrIïg

E tem uma posição intermediária entre o nativo e o estrangeiro de passagem. Devido aos acontecimentos históricos, o imigrante residente indicava o cananeu residente em Israel ou o fugitivo proveniente do Reino do Norte. Com o passar do tempo, o termo passou a designar os prosélitos, ou o não israelita que acolhia a fé no Senhor.

Israel deve tratar o refugiado com amor (cf. Dt 10,19; Ex 22,20; 23,9), pois ele mesmo fez a experiência de

rgE

(cf. Ex 23,9). A condição de Israel como estrangeiro no Egito (cf. Dt 23,8; 26,5; Is 52,4; Sl 105,23) o leva a estender o mandamento de amar o próximo (cf. Lv 19,18) ao

rgE

: “O migrante residente entre vós será para vós como o nativo. E deves amá-lo

como a ti mesmo, porque fostes migrantes (

~yrIïg

E) no país do Egito. Eu sou YHWH, vosso Deus” (Lv 19,34), de modo amplo todo homem sob a terra é

rgE

, por isso o salmista (cf. Sl 39,13) sabe ser diante de Deus, somente um estrangeiro

rgEå

e um peregrino

bv'ªAT÷

, como seus pais. Neste sentido Abrão é o protagonista da história do povo de Deus, hóspede e peregrino sobre a terra. Nele todos são chamados a refletir sobre a própria condição existencial de homo viator.

CONSIDERAÇÕES

Neste primeiro capítulo intitulado “Fome na terra e descida ao Egito”, delimitou-se para o estudo o referido texto de Gn 12,10-11d. Estes quase dois versículos foram abordados sob duas perspectivas, ou seja, linguístico-literária e histórico-teológica. Todavia, percebe-se certo vínculo de complementaridade progressiva entre uma perspectiva e outra, pois uma lança luzes importantes para o desenvolvimento do tema sucessivo.

No que se refere ao estudo linguístico foi possível apropriar-se do vocabulário, estudar seu sentido, sua classificação morfológica e sintática a fim de chegar a uma tradução mais fiel ao texto. Observa-se que os verbos estão na forma qal, com exceção de um que se encontra no

hifil. Tem-se no v. 10 uma estrutura composta de duas orações coordenadas e duas orações

subordinadas. Já no v. 11 tem-se duas orações subordinadas, uma coordenada, e duas subordinadas. Portanto da construção é possível colher certa sincronia.

Com relação ao seu sentido e estrutura, estes serviram de base para o passo sequente, ou seja, a análise estilística, nesta percebe-se o modo como o texto foi construído e estruturado, pois há uma lógica interna bem elaborada. O leitor encontrou-se diante de uma construção estilística chamada paralelismo reto ABCD = D´C´B´A´. A moldura AB – B´A´ ofereceu informações sobre o sujeito e o complemento do quadro, C e C´ menciona a ação da personagem, Abrão, e D e D´ referem-se ao destino. Daqui brotaram então os subsídios significativos para o próximo passo.

O item seguinte trabalhou o texto abordando-o sob a perspectiva da analise narrativa. Essas poucas linhas correspondem à introdução, onde o narrador procurou situar o leitor no tempo e no espaço. A soma dos resultados desta primeira perspectiva ofereceu elementos para prosseguir o estudo no que se refere à sua perspectiva histórico-teológica.

No estudo histórico-teológico foram reunidas as indicações oferecidas pelo próprio texto para maior aprofundamento a fim de chegar o mais próximo de sua essência, ou seja, o seu sentido teológico. A fome, a migração, o Egito, e o ser estrangeiro, são elementos constituintes não só da experiência histórica, mas também da identidade e da fé dos descendentes de Abrão e Sarai. Deste modo o narrador cria todo um contexto, insere o leitor nele e o prepara para o capítulo sucessivo.

CAPÍTULO II

SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA

Numa narrativa o leitor pode identificar ao menos dois níveis de fala, o do narrador e o das personagens. Os discursos são as várias possibilidades que o narrador dispõe para registrar as falas das personagens. O discurso direto corresponde ao registro integral da fala de uma personagem indicando que a personagem fala diretamente, ou seja, sem a interferência do narrador, pois neste caso o narrador se limitará somente a introduzi-la.

Até o v. 11d, o leitor está no início da narrativa denominado exposição, introdução ou apresentação. Colhe-se os dados que o situam dentro do quadro em que se desenvolve a narrativa. O narrador é onisciente, quer dizer dispõe de conhecimentos e informações inacessíveis a uma pessoa comum, ele sabe o que pensa e diz Abrão, e informa a seu leitor sem procurar justificar-se ou justificar a personagem.

A esta altura, no v. 11e, o leitor notará uma mudança no discurso, ou seja, uma passagem da fala do narrador para a fala da personagem. Esta passagem é demarcada pelo

verbo

rm;a'

que aparece como um divisor de águas, introduzindo a fala da personagem Abrão. O discurso prossegue com a voz profética de Abrão preanunciando o que pode acontecer a ele e à sua esposa ao entrarem no Egito. Neste ponto a narrativa começa a desencadear uma série de conflitos. O leitor se prende mais atentamente ao texto participando dos temores que ameaçam a vida e o futuro do patriarca e de sua esposa.