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1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19

2.1 Estatuto da irmã-esposa

Com referência a este tema é possível partir do seguinte pressuposto, ou seja, a legislação sobre a irmã-esposa pode ter sido um preceito comum dentro do corpus legal no Antigo Oriente, como um particular na questão do casamento, sendo parte integrante de várias culturas. Com isso, pretende-se dizer que o conteúdo proposto para o estudo desta narrativa tem fundamento e precedentes na antiguidade, como por exemplo, nos registros encontrados em locais como Nuzi256 e outros sítios arqueológicos257.

Segundo Speiser258, o casamento na sociedade hurrita era mais forte e mais solene quando a mulher possuía, simultaneamente, o estatuto jurídico de irmã, independente dos laços de sangue. Deste modo, um homem às vezes se casava com uma jovem e a adotava como sua irmã, em fases distintas e independentes, registrando-as em documentos legais.

256 Esta corresponde a uma das mais interessantes coleções de registros escritos da antiga cidade hurrita de Nuzi,

localizada a leste do rio Tigre. Yorghan Tepe, nos anos de 1915-1931 encontrou cerca de 20.000 documentos de barro nos arquivos familiares de várias vilas da cidade. A data desses documentos é dada pelos escavadores como sendo do sec. XV a.C que pode ser três ou quatro séculos mais tardia do que a data tradicional do patriarca Abrão, como os costumes persistem, os tabletes oferecem informações sobre a estrutura legal e social nestas terras em séculos passados. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a arqueologia: quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Ed. Vida Cristã, 2004, p. 47.

257 Grupo de pessoas contemporâneas a Abrão. Eles começaram a entrar nas terras ao longo do Tigre cerca de

2000 a.C. Alguns tabletes de barro, desse período, introduzem um novo tipo de nome identificado como hurrianos, que durante os dois séculos seguintes se dispersaram pela Mesopotâmia e formaram a principal população em vários reinos importantes, como Mitani que ocupou a área entre o Tigre e o Eufrates cerca de 1500 a.C. Recentemente a cidade de Nuzi, a leste do Tigre, forneceu uma coleção de objetos de barro que permitiram o acesso a noção dos costumes dessas terras. Alguns desses costumes são semelhantes aos costumes patriarcais descritos em Gênesis. Sendo os hurrianos uma seção de uma sociedade complexa, não é inconcebível que ancestrais de Israel tivessem contato com os mesmos em algum lugar. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a arqueologia, 2004, p. 39.

A violação das disposições legais dos contratos de irmã-esposa era punida com mais severidade que as violações de contratos de casamento simplesmente. Speiser 259diz que esta prática foi, possivelmente, um reflexo do sistema fratriarcal, o qual dava ao irmão adotivo maior autoridade que ao marido. Pela mesma razão, a irmã adotiva desfrutava de proteção e status social proporcionalmente maior.

Caso o pai viesse a falecer, um irmão de sangue tinha automaticamente o mesmo tipo de autoridade paterna sobre suas irmãs. E quando um irmão, seja natural ou adotivo, dava a sua irmã em casamento, também neste caso, a lei considerava a mulher como irmã-esposa. Speiser260 faz uma observação dizendo que, embora a prática da adoção fosse comum entre os povos vizinhos, todavia há peculiaridades que são próprias das práticas hurritas.

O autor recorda ainda que a instituição do levirato não oferece paralelo, pois sua preocupação está voltada à manutenção da linha de um irmão falecido. Reitera o autor acrescentando que, certamente, não é possível dizer o que realmente aconteceu naquelas visitas ao Egito e Gerara (cf. Gn 12,10-13a; 20,1-18; 26,1-17), supondo que tenham acontecido, todavia uma suposição plausível é a de que Abrão e Isaac eram casados com mulheres que gozavam de um status privilegiado para os padrões da sociedade em que viviam.

O status de irmã-esposa era uma marca de posição social desejada, por isso, a tradição registrou três paralelos, ou seja, devido à sua importância e lugar de destaque para as matriarcas. Na mesma linha de Speiser comenta Chouraqui261:

[...] Sabe-se que um marido mesopotâmico – especialmente entre os hurritas de Nuzi – podia legalmente adotar sua esposa por irmã, mesmo que entre eles não houvesse qualquer laço de consangüinidade. Casamento e adoção fraternal eram dois atos jurídicos compatíveis [...] os laços assim criados eram mais fortes do que os laços do casamento, a esposa adotada por irmã possuía um estatuto legal preferencial, garantido por sanções mais severas no caso de alguma falta [...].

259 Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, p. 92-92. 260 Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, 92-93. 261 CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 137.

Ao afirmar que Sarai é sua meia irmã262 (cf. Gn 20,12), Abrão dá espaço para deduzir que possivelmente Sarai foi uma filha de Taré, seu pai, qualificando-se deste modo como meia irmã.

Mas o pensamento de Speiser não é único. Segundo P. Hamilton263, a interpretação de

Speiser deixa lacunas quanto ao seu modo de organizar e interpretar os textos de Nuzi, pois sobre os mesmos, não é possível afirmar que exista uma ordem cronológica de precedências, adoção seguida de matrimônio. Por outro lado não é correto afirmar que tais casamentos refletissem as características dos níveis mais altos da sociedade hurrita, pois, escravas libertas também eram adotadas como irmãs, e também não é certo que estas adoções tenham a finalidade de ser meio para um vínculo matrimonial.

Outros estudos264 aprofundam mais a questão da adoção, como um meio para manter os

bens e o patrimônio da família, ou garantir a posteridade da mesma e até mesmo dar segurança ou proteção para um membro desprovido. Justel diz que, provavelmente, a intenção dos atos de adoção com matrimônio era essencialmente para impedir a dispersão do patrimônio familiar. Em seu estudo ele apresenta diversos tipos de adoção, entre as quais um tipo denominado in

fratris loco. Nesta uma pessoa era adotada em qualidade de irmão, e afirma que este procedimento era conhecido no Antigo Oriente Próximo, especialmente em Nuzi. A pretensão desta prática podia ter sido a de estabelecer um vínculo familiar que implicasse proteção jurídica ou outros benefícios.

Segundo Tompson265, Nuzi não é a última instância para ditar, esclarecer ou fundamentar historicamente certos costumes presentes na vida dos patriarcas. Todavia, este oferece importante e indispensável contribuição para conhecer os costumes e o ambiente histórico cultural em que viveram e, certamente, foram influenciados os patriarcas.

262 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 40.

263 Cf. HAMILTON, Victor P. The book of Genesis: Chapters 1-17. Grand Rapds: Willian B.Eerdmans Pb. Co.,

1991, p. 381-382.

264 Cf. JUSTEL, J. Josué. Prácticas jurídicas y estrategias familiares en el norte de Siria durante el bronce final

(sec. XV-XII a. C). In: Gerión, (2009), vol. 27/1, p. 7-25; LION, Brigitte y MICHEL, Cécile. As mulheres em sua família: Mesopotâmia, 2º milênio a.C. In: Tempo (2005), vol. 10, p. 20.

Melhor reflexão [...] sobre o material de Nuzi levou os eruditos à conclusão de que ocorrem paralelos entre as narrativas patriarcais e os textos cuneiformes de várias partes do Oriente Próximo antigo em várias épocas, de modo que a peculiaridade da relação com Nuzi foi posta em dúvida. Esta última pesquisa tornou difícil usar esses paralelos de fontes não-bíblicas como um guia para datar, embora seu valor para ajudar a nossa compreensão da sociedade do Oriente Próximo antigo no segundo milênio a.C. é indubitável e, atualmente, a grande maioria dos paralelos sociais relevantes procede do segundo milênio a.C. Os costumes dos patriarcas se adaptavam muito bem à cultura mesopotâmica desse período. Podemos inferir que as tradições bíblicas em Gênesis 12-50, que tratam um profundo conhecimento do estilo de vida mesopotâmico, foram introduzidas pelos migrantes originais da Mesopotâmia [...]266.

Evidentemente, como foi dito, este estudo segue o método sincrônico e não tem a pretensão de discutir a historicidade ou não dos patriarcas, nem de discutir uma determinada cronologia dos eventos, todavia busca-se ir além do texto, através de seus paralelos históricos, a fim de evidenciar o colorido do Antigo Oriente, encontrado nas narrativas de forma a expressar o seu correlato com a cultura oriental antiga. Sabe-se que, uma abordagem particular não tem a pretensão de dar uma compreensão exaustiva e que a história de textos como este, representa o desafio de continuar a lê-los na busca de seu significado, o qual certamente não é dado, mas vai se desvelando à medida da compreensão alcançada.