• Nenhum resultado encontrado

2. Estudo histórico-teológico

2.4 Beleza, vida e morte

A narrativa usa o adjetivo

tp;y>

para designar o aspecto belo, esta atenção à beleza não é uma novidade, também os filhos dos deuses escolhem as suas mulheres, ou seja, as filhas dos homens, segundo a sua beleza (cf. Gn 6,2). O narrador antigo não omite o fato de a beleza feminina fazer parte da história de decisões humanas desviadas (cf. Gn 6,1-4) até o ponto de tornar-se um perigo para a vida (cf. Gn 12,11-13), e até mesmo ser falaz (cf. Pr 11,22)126.

123 Cf. SEFER BERISHIT2. O livro do Gênese, 2008, p. 125. 124 Cf. CHALIER, Catherine. Le matriarche, 2002, p. 27-33.

125 RASHI comenta este versículo dizendo que segundo a agadá, até o presente momento, Abrão não havia fixado o

olhar em Sarai, por causa da castidade que reinava entre ambos, mas teve que fixá-la em função dos acontecimentos que se narram. Outra explicação é que habitualmente os esforços de uma viagem deixam as pessoas feias, mas para Sarai foi diferente sua beleza foi conservada. Outra explicação é que chegou a hora de preocupar-se com a beleza de Sarai, que sempre foi bela, mas agora estariam entrando num país onde as pessoas são feias e não estão habituados a ver uma mulher bonita. Cf. EL PENTATEUCO. El Pentateuco: Com el comentário de Rabí Sholomo Yitzjaki (RASHI). 2. ed. Buenos Aires: Editorial Yehuda, 1976, p. 50. Tais comentários se fazem compreender devido ao que o Egito representa para o povo da Aliança. Esse é lugar de escravidão e sofrimento, portanto é difícil contemplar ou vivenciar a beleza deste lugar. A verdadeira beleza vem da terra prometida e dos portadores da aliança.

A beleza tornou-se motivo de tensão contínua. Logo após o chamado divino a promessa parece ameaçada. Abrão e Sarai se vêem forçados a emigrar por causa da fome que pesava sobre a terra. Agora uma nova ameaça, a beleza da matriarca. Nestes versículos a tensão gira em torno ao „ver‟ dessa beleza (cf. vv. 11f, 12b, 14d)127. Embora o problema não é

o fato de somente vê-la como mulher bela, e sim de vê-la como esposa dele (cf. v. 12c-12e). O temor de Abrão pode fundamentar-se na possibilidade de que quando um soberano se interessa por uma mulher casada, este pode encontrar estratégias para matar o marido a fim de possuir a mulher (cf. 2Sam 11,15-17). Este mesmo fato, todavia, não é único, mas se repete três vezes no Gênesis, ou seja, em Gn 20,2; 26,7 e 12,13128.

12,13 20,2 26,7

Dize, pois, minha irmã tu, para que se faça o bem para mim por causa de ti, e viverá minha alma por causa de ti.

Abraão disse a sua mulher Sara: “é minha irmã” e Abimelec, rei de Gerara, mandou buscar Sara.

Os homens do lugar interrogaram-no sobre sua mulher e ele respondeu: “é

minha irmã”.

T.a'_

ytixoåa] an"ß-yrIm.ai

%rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l.

`%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w>

~h'²r"b.a; rm,aYOõw:

ATßv.ai hr"îf'-la,

awhi_ ytixoåa]

rr"êG> %l,m,ä ‘%l,m,’ybia]

xl;ªv.YIw:

`hr"(f'-ta, xQ:ßYIw:

‘~AqM'h; yveÛn>a; Wlúa]v.YIw:)

rm,aYOàw: ATêv.ail.

awhi_ ytixoåa]

Cada narrativa tem suas particularidades, por isso a atenção aqui é somente no que diz respeito ao fato de os patriarcas usarem a mesma estratégia em situações semelhantes e basicamente pelo memo motivo, ou seja, o temor da morte.

Abrão desempenha de certo modo o papel de profeta. Usando os verbos no futuro profetiza sob a provável ação dos egípcios e busca precaver-se de proteção. O patriarca vê a própria vida ameaçada de todos os lados. A mesma situação se repete em Gn 20,11. Abrão é imigrante em Gerara e prevendo a sua morte procura conservar a sua vida expondo sua

127 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 70; VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 204. 128 Para os textos citados usei a tradução da Bíblia de Jerusalém na versão em português de 1981.

esposa, mesmo assim é de Deus que sai a afirmação „ele é um profeta‟ Gn 20,7. A palavra profeta indica a idéia de porta-voz nomeado por Deus.

A morte os rodeia. Se permanecer na terra pode morrer de fome e se emigra corre o risco de morrer nas mãos do Faraó. Ele teme „matarão a mim‟ (cf. v. 12d). Seu temor faz pensar na ordem do Faraó às parteiras, quando os hebreus estavam no Egito: “se for menino, matai-o. Se for menina, deixai-a viver” (Ex 1,16;22). Abrão se preocupa com a própria vida, mas coloca em risco a vida de Sarai129. Em „exílio‟, sob o jugo de potências „estrangeiras‟ a vida do profeta é ameaçada, não só a sua vida é ameaçada, mas também a aliança, o futuro da geração e de todo o povo130.

Abrão e Sarai podem ser prefigurações da história do povo da aliança. História que começa com um casal, depois uma família, um clã, uma nação. Não é difícil acreditar na possibilidade de o povo reler a sua própria vida à luz da fé a partir da experiência do patriarca e da matriarca. Igualmente hoje também povo em mobilidade pode ter Abrão e Sarai como prefiguração de suas próprias experiências, que na busca por sobrevivência se vêem ameaçados pelas grandes potências. De fato os dados apontam aumento na migração feminina, e um fenômeno notável de exploração da mesma, através do tráfico e outras práticas de injustiça. A história se repete com as mais diversas personagens.

CONSIDERAÇÕES

Este segundo capítulo tem como título „Sarai mulher de bela aparência‟. Os versículos referentes a este capítulo são 12,11e-13d, estes foram estudados sob as duas perspectivas propostas, ou seja: estudo linguístico-literário e o estudo histórico-teológico.

129 CHOURAQUI, André. A Bíblia: no princípio (Gênesis). Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995, p. 135.

130 Cf. MÜLLER, H. P. aybin". In: GLAT. Vol. V di IX. ~ym-rvn. Brescia: Paideia, 2005, p. 518; CULVER, Robert

Quanto ao estudo linguístico-literário, o texto foi analisado em sua estrutura morfológica, sintática e léxica, chegando à tradução proposta. Ao longo deste estudo nota-se características particulares destes versículos, tais como a alteração do tempo verbal, discorrendo entre passado, presente e futuro, bem como, entre o modo ativo e imperativo.

Não só o tempo e o modo dos verbos são alternados, mas também as pessoas, a voz do patriarca perpassa entre a primeira pessoa do singular, segunda pessoa do singular feminina e terceira pessoa do plural masculino o que de certo modo revela a tensão contida na narrativa.

Com relação à análise estilística se evidencia a figura de linguagem chamada gradação ou catábasis, bem como o paralelismo chiasmo antitético, o que contribui para confirmar o que foi dito referente ao caráter conflituoso deste trecho da narrativa.

Tratando da análise narrativa os versículos estudados neste capítulo correspondem ao que a critica narrativa chama de complicação, de fato o patriarca e a matriarca vão tecendo e se envolvendo em uma série de conflitos que geram tensão e expectativas no leitor. Todas essas questões serviram para o passo sucessivo, ou seja, o estudo histórico-teológico.

No estudo histórico-teológico ao aprofundar sobre a identidade de Sarai, nota-se que ela é uma pessoa sem passado e com futuro ameaçado, até então sua identidade é ser mulher de Abrão, todavia não totalmente integrada, pois tal integração se dá quando a mulher tem um filho e Sarai é estéril, mas nada é impossível para Deus, Ele pode „fazer da estéril mãe feliz‟ (cf. Sl 113,9).

Neste texto é evidente a celebração da beleza da matriarca. Sua beleza não é descrita, mas sim exaltada, esta parece superar a das mulheres egípcias, despertando a atenção de Abrão, dos egípcios, dos oficiais do Faraó e do próprio Faraó, o qual a leva para seu harém. Todavia a beleza incorruptível e cobiçada de Sarai é também, em linguagem metafórica, expressão visível da eternidade da Aliança de Deus com Israel. Assim como a beleza de Sarai, também a Aliança tornou-se motivo de perseguição, dominação e morte para seus descendentes.

É interessante observar como o redator vai tecendo e interligando os fatos, primeiro Deus chama o casal, cujo futuro está comprometido devido à esterilidade da esposa, e a estes promete terra e descendência, mas o que encontram é fome na terra e perseguição por parte de seus hospedeiros, sendo assim parece improvável que a promessa divina tenha êxito. Como esta situação poderá ser revertida é o que será estudado no próximo capítulo.

CAPÍTULO III

INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI

O narrador desempenha um papel fascinante nas histórias bíblicas, pois ele sabe combinar onisciência e discrição. Seu saber estende-se desde os primórdios do mundo. Relatando precisamente nos termos e ordens do Criador, até os pensamentos e sentimentos ocultos das personagens, o que ele tanto pode resumir como expor das mais diversas formas. O narrador sabe de todos os detalhes e por isso é confiável, às vezes escolhe surpreender o leitor, mas não induz ao erro131.

Nesta perícope o trabalho do narrador é de recitar, ele não faz discursos e nem emite juízo sobre as personagens, parece garantir um saber abrangente compartilhado parcialmente com o leitor. Em seu modo de narrar demonstra um conhecimento integral e coerente, que é de Deus, expressando-se como um „delegado‟ divino confiável e anônimo. O leitor é convidado a continuar o caminho estudando progressivamente a perícope proposta.