• Nenhum resultado encontrado

1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b

2.3 Salvo pelos méritos de Sarai

Segundo Elena Bartolini213, a tradição rabínica fixou no Talmud214 a convenção de que o povo de Israel „foi liberado do Egito por mérito das mulheres‟. Esta afirmação enfatiza que a beleza feminina não se limita somente ao aspecto físico, mas é considerada de acordo com o papel insubstituível da mulher no contexto da reciprocidade conjugal. Por outro lado é significativo o fato de que também a Torá seja personificada com „mulher, filha, esposa‟ 215.

No texto em questão o leitor se depara com uma situação não estranha ao que afirma a tradição. Sarai foi motivo de libertação para Abrão tanto no aspecto material quanto à manutenção e fidelidade à aliança. A narrativa deixa claro que foi por causa dela que o Senhor interveio para libertar Abrão e tudo o que possuíam.

A narrativa diz no v. 16a “

Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W

”: “e para Abrão foi feito o bem por causa dela”. O Faraó beneficiou Abrão por causa de Sarai dando-lhe animais miúdos, bois, asnos, servos e servas, éguas e camelos (cf. Gn 12,16). Neste contexto a riqueza não se media em dinheiro, terra cultivada ou propriedades imobiliárias, mas em animais (cf. Gn 12,16; 26,14; 30,43). Quando os animais e rebanhos estão em perigo, são ameaçadas a existência e a vida de toda a família, por isso, o Faraó tenta vincular os hebreus segurando os seus animais (cf. Ex 10,24), enquanto Moisés pede a libertação completa (cf. Ex 12,32).

213 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. Il ruolo della donna nell´ebraismo, 2006, p. 23.

214 O Talmud compreende as discussões rabínicas a partir da mishná, ou seja, Torá oral codificada. O Talmud foi

fixado por escrito entre o V e VI século da era presente e se encontra em duas versões: palestino e babilônico.

Na lista de presentes que Abrão recebeu do Faraó está o rebanho de gado miúdo (

!acoo

)216, ou seja, cabras e ovelhas, animais importantes na economia de Israel ao longo da história, especialmente durante o período patriarcal (cf. Gn 46,32). Davam leite (cf. Dt 32,14), carne e lã, da qual se teciam panos. Seu couro era utilizado para fazer coberta e tendas (cf. Ex 26,14). A riqueza de uma pessoa era medida pelo tamanho de seu rebanho (cf. 1Sm 25,2).

Entre os presentes está o gado,

‘rq'b'

217. Para os hebreus, o gado era uma riqueza de valor elevado (cf. Ex 21,37). Esse animal era utilizado nos trabalhos agrícolas, na produção de carne e leite, bem como para concluir um pacto ou contrato (cf. Gn 21,27-31) e presentear alguém (cf. Gn 21,27). Abrão, num gesto de generosidade, honrou a presença dos três hóspedes de passagem, presenteando-lhes cm um banquete do qual o vitelo fez parte (cf. Gn 18,7).

Outro presente elencado é o

~yrIêmox

;, asno218, animal tradicional da caravana do semita seminômade, atestado desde os patriarcas (cf. Gn 12,16; 22,3.5), diferente do camelo característico dos beduínos. O asno serve aos israelitas como animal de carga (cf. Gn 42,26; 44,13; 45,23), de trabalho para o cultivo dos campos (cf. Dt 22,10) e meio de transporte. Ele está entre as criaturas relacionadas como impuras para alimentação (cf. Lv 11,1-8; Dt 14,3-8), todavia 2Rs 6,25 diz que a sua carne foi comida em época de fome desesperadora. Além do boi, também o asno é usado como paradigma para indicar o complexo dos animais domésticos objeto de inveja (cf. Ex 20,17).

Abrão ganha também escravos,

‘~ydIb'[]

219. Contar o escravo entre os presentes se deve ao fato dele não ser uma pessoa jurídica, mas uma parte da propriedade. Em Israel a

216 Cf. HARTLEY, John E.

!aco. In: DITAT, 1998, p. 1255-1256.

217 Cf. MARTENS, Allan A. rq'B'. In: DITAT, 1998, p. 208-209; BRECK, B. rq'B'. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-

hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 1495-1509.

218 Cf. LIVINGSTON, G. Hebert. ~yrIêmox]. In: DITAT, 1998, p. 489. SMITTEN, W. Th. ~yrIêmox]. In: GLAT. Vol. II

di IX. ~¾lwlg-#mh. Brescia: Paideia, 2002, p. 1908-1110.

219 Cf. KAISER, Walter C.

escravidão não era algo tão repulsivo, visto que a condição de escravo envolvia direitos e, frequentemente, cargos de confiança220.

Entre os presentes consta também servas,

txoêp'v.W

221. Essa era uma escrava que podia ser dada de presente a uma filha, quando ela se casasse (cf. Gn 29,24-29), para servir-lhe de dama de companhia. Observa-se que os hebreus não podiam adquirir outros hebreus como escravos, incluindo-se ai as servas hebréias (cf. Jr 34,9-11; 2Cr 28,10).

A fêmea do asno,

tnOàtoa]

222 é uma posse de valor (cf. Gn 12,16; 32,16; Jó 1,3; 42,12), as mesmas excedem os machos em número e em valor, por causa de seu leite e da procriação, além de serem melhores de montar.

Abrão recebe camelos,

~yLi(m;g>

223, todavia há divergências quanto ao camelo na época patriarcal, julga-se o dado como anacrônico, visto que o camelo passou a ser domesticado na Idade do ferro (1200 a.C), contudo este animal de carga é mencionado no AT, desde os relatos patriarcais até o período pós-exílico. Usados para locomoção (cf. Gn 24,61.63; 1Sm 30,17; Is 21,7) e transporte de cargas, também forneciam leite (cf. Gn 32,15.16).

As leis alimentares de Israel proibiam comer carne de camelo, visto que os camelos ruminam, mas não têm casco fendido (cf. Lv 11,4; Dt 14,7). Esse tinha um papel singular devido a sua capacidade de passar longos períodos sem água, sendo muito útil para o comércio de especiarias (cf. 2Cr 9,1) transporte de alimentos para lugares distantes, bem como para o transporte de produtos de Galaad para o Egito (Cf. Gn 37,25), de tributos (cf. 2Rs 8,9s; 1cr 12,41) e dádivas para o Senhor (cf. Is 60,6).

220 Um israelita não podia manter outro israelita indefinidamente como escravo e contra a vontade deste; o

período da escravidão estava limitado a seis anos (cf. Ex 21,2). Mesmo que o escravo seja descrito como propriedade do seu senhor (cf. Ex 21,20-21) essa não era uma atitude insensível. Sempre que revogasse o intento maldoso do senhor (cf. Ex 21,14) ou que o escravo morresse devido a maus tratos (cf. Ex 21,20), o senhor era passível de castigo. Se houvesse dúvidas quanto à motivação do senhor, um escravo que sofresse dano físico ganha pelo menos a sua liberdade (cf. Ex 21,26-27) e o senhor perdia o dinheiro que emprestara (cf. 21,21). Observa-se também a posição de destaque do servo em Gênesis 24,2ss e 41,12. O termo é usado como título messiânico e como título para Israel.

221 Cf. AUSTEL, Hermann J. hx'p.vi. In: DITAT, 1998, p. 1601. 222 Cf. HAMILTON, Victor P.

!Ata'. In: DITAT, 1998, p. 141-142.

223 Cf. LEWIS, Jack P.

As caravanas de camelos variavam em quantidade (cf. Gn 24,10). A riqueza de homens como Abrão (cf. Gn 12,16; 24,35), Jacó (cf. Gn 30,43) e Jó (cf. Jó 1,3; 42,12) era contada entre outros (juntamente com seus outros rebanhos) pelo número de camelos. Davi tinha uma pessoa especialmente encarregada de seus camelos (cf. 1Cr 27,30). As pragas do Egito atingiram tanto outros tipos de rebanhos, quanto os camelos (cf. Ex 9,3).

Com relação à atitude de Abrão, ao entregar Sarai, o texto não deixa claro qual o real motivo, embora haja diversas inferências. O estudo de Walter Vogels defendendo Sarai como vítima, parece apresentar Abrão como quem abusa da própria mulher em beneficio pessoal224:

O que Abrão esperara aconteceu: „Por causa dela, trataram bem Abrão‟, ou „de acordo com seu preço‟. Não só se abusa da mulher como ainda por cima o marido enriquece, como os cafetões se enriquecem à custa de suas mulheres. O Faraó dá a Abrão, como sinal de reconhecimento – ou como verdadeiro preço de venda -, „ovelhas e bois [...]‟ 225.

Por outro lado há quem apresente o patriarca como um manipulador da situação e enganando o Faraó e tirando proveito da situação:

[...] nos três contos da „esposa-irmã‟ em Gênesis (12,10-20; 20,1-18 e 26,1- 11) falam de um patriarca que vive temporariamente num país estrangeiro e finge que a esposa é sua irmã, enganando o rei estrangeiro, o que é mais importante, salvando o seu próprio pescoço. Por duas vezes o herói é Abrão e, na outra Isaac [...]226.

Viviano apresenta a situação como um possível artifício que o narrador usa para mostrar a superioridade e esperteza do patriarca: “[...] O narrador de Gn 12 não procura desculpar o comportamento de Abrão, antes parece divertir-se com a sua esperteza [...]”227.

Outros estudiosos apontam o medo como motivo da ação do patriarca:

224 Com as citações literais se pretende demonstrar o que de fato os comentadores têm falado e até mesmo as

palavras que usam para interpretarem o patriarca e sua ação.

225 VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.

226 GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30.

227 VIVIANO, Pauline A. Gênesis. In: BERGANT, Dianne, CSA - KARRIS, Robert J., OFM (orgs.).

[...] a mentira, a vileza e o engano figuram aí sem embaraço e, à primeira vista, os escritores bíblicos não ficam chocados. Abrão faz passar duas vezes sua mulher por sua irmã (Gn 12,10-20; 20,1-18) [...] esses patriarcas são mentirosos e não demonstram grande coragem porque expõem suas esposas aos ultrajes estrangeiros aproveitando-se da ocasião para enriquecer-se [...]228.

[...] é o medo do marido, que o faz pensar [...] na sobrevivência em vista de sua bela esposa. Como solução do problema ele escolhe negar o vínculo matrimonial, para tornar sua mulher livre para os homens estranhos. Essa tensão é solucionada pelo desfecho de que Sara passa de fato para uma nova relação matrimonial e os temores de Abrão são solucionados [...]229.

Interessante igualmente são as discussões rabínicas em torno deste argumento230. De acordo com Ramban231, Abrão cometeu um pecado deixando a terra de Canaã, a ele faltou confiança em Deus que poderia tê-lo salvo da fome. Rashi232 ao invés, esclarece que Deus consentiu a Abrão deixar a terra. Sua confiança em Deus não foi abalada, teria sido incorreto para ele permanecer em Canaã, esperando que Deus lhe providenciasse comida, pecado é o homem não atuar em prol da autopreservação. A defesa da vida não diminui a confiança em Deus uma vez que acredita que a sua salvação virá d´Ele. Deste modo Abrão agiu corretamente indo à busca de um „canal físico‟ pelo qual poderia obter comida e salvar a vida de sua família.

Comentários da tradição judaica ao livro do Gênesis233 afirmam que Abrão não colocou Sarai sob qualquer risco desnecessário, visto que ele conhecia os grandes méritos dela. Foi pelos méritos de Sarai que Abrão recebeu a benção Divina de riqueza, já que a pessoa adquire dinheiro pelo mérito de sua esposa. Abrão não pediu a Deus (para salvar Sarai)

228 SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento?, 2000, p. 26; Cf., SKA, Jean Louis. Introdução à leitura

do Pentateuco, 2003, p. 72-73.

229 ZENGER, Erich. Os livros da Torah/Pentateuco. In: ZENGER, Erich. BRAULIK, Georg (et al.). Introdução

ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 66.

230 Cf. SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis: com comentários de Rashi, Targum Onkelos, Haftorot e

comentários compilados de textos Rabínicos Clássicos e das obras do Rebe de Lubavitch. São Paulo: Maayanot, 2008, p. 75.

231 Rabi Moshe ben Nachman (1194-1270) conheciso por seu acrônimo Ramban (hebraico: ן"במר), nascido em

Gerna, norte da Espanha, foi um grande conhecedor da Torá, conhecido por sua autoridade em lei judaica.

232 Rabi Shlomo Yitzhaki (1040-1105) conhecido pelo acrônimo Rashi , foi um rabino da França, famoso como o

autor dos primeiros comentários compreensivos sobre o Talmud, Torá, e Tanach.

por seu próprio mérito, mas sim pelos méritos dela, Ele confiou no mérito dela para não ser ferido e para ela não ser tocada, por isso, ele não teve medo de dizer: ela é minha irmã.

Enfim Elena Lea Bartolini234 comenta que a beleza de Sarai, poderia ter sido motivo

de ambiguidade, mas se tornou, pela sua coragem, fonte de vida e salvação tanto para o seu esposo como para todos os que os sucederem. Deste modo é possível colher nas entrelinhas um papel ativo de Sarai, quem graças a qual Abrão continua a viver e a promessa se mantém, portanto ela corresponde ao tipo de mulher descrita em Pr 12,4, perfeita e virtuosa, coroa do marido. As bênçãos de Deus sobre Sarai confirmam a sua fidelidade à promessa, como „mulher justa‟, portanto, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as bênçãos divina se difundem na história.