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Livro-Os Jesuitas e a Traicao a Igreja Catolica-Malachi Martin

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Academic year: 2021

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Os Jesuítas

A companhia de Jesus e a Traição à Igreja

Católica

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Como os jesuítas de hoje estão usando o poder

espiritual conquistado através dos séculos para

tentar influir nos rumos da política internacional,

De aliados do Papa e seus intransigentes

de-fensores, os jesuítas passaram de algum tempo

para cá a ser os seus mais ativos opositores.

Malachi Martin, teólogo eminente e antigo

je-suíta, revela como os atuais dirigentes da

Com-panhia de Jesus a transformaram na maior

inimiga do capitalismo democrático do Mundo

Ocidental

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OS JESUÍTAS

Malachi Martin, destacado teólogo e especialista em Igreja Cató -lica, ex-jesuíta e professor do Pontifício Instituto Bíblico do Vaticano, ousou assestar um holofote nos véus dos segredos que encobrem as a tividades da mundialmente poderosa Igreja Católica Romana. Neste uni -verso em que a fé e o poder entram em choque, a Sociedade de Jesus tem sido, talvez, a mais lendária e fabulosa, a mais admirada e inju riada na prática de ambos. De seu início numa époc a revolucionária, e ao longo dos quatro séculos e meio de sua tumultuada existência, os jesuítas têm sido ao mesmo tempo um enigma e um modelo para o resto do mundo. Amigos e inimigos, católicos e não -católicos, todos têm ten-tado resolver o poder e o segredo desses homens, treinados e devota dos do ponto de vista religioso que também são gigantes em todas as atividades seculares da humanidade. Nas ciências e nas artes, nas le tras, na exploração e no ensino — para não falar na política mundial —, os jesuítas sempre visaram ao melhor. E foram.

No entanto, o aspecto mais desconcertante da Sociedade de Je sus, e o que mais enfurecia seus inimigos, era que, apesar de todo o poder, os jesuítas eram gigantes com uma finalidade: a defesa e a pro pagação da autoridade e do ensinamento papais. Fiéis a um ideal es piritual, e para “A Maior Glória de Deus”, eram os defensores por excelência dos interesses vitais da Igreja, a Força Especial do vigário terreno de Cristo. Não eram apenas “Homens do Papa”. Eram os Homens do Papa. Até agora.

Em Os Jesuítas, Malachi Martin torna pública, pela primeira vez, a pungente história dos bastidores de homens e seus motivos e dos meios por eles usados, por trás da camuflagem da grandeza jesuíta no pas sado, para construir a “nova” Sociedade de Jesus no âmbito mundial. O leitor conhecerá os líderes e os joguetes; o sangue e o pathos-, a política, as traições e as humilhações; as campanhas de vendas enlatadas que se estendem de Roma e de Washington para o mundo e que mas caram uma missão estranha e destruidora.

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MALACHI MARTIN

OS JESUÍTAS

Tradução de LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO SILVA

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T ít ul o orig i nal norte -a merica no

T HE JE SUI T S

Copyrig ht da ediçã o ori gi na l cm lí ng ua i ngles a © 1987 by M alac hi M artin C opyrig ht des ta trad uçã o - 1989 by Dis tri b ui d ora Recor d S. A.

T od os os direi t os res ervados i ncl u s ive o direit o de reprod uçã o t otal ou parcial s ob q ual q uer f or ma E s ta ediçã o é p ub licada me dia nte ac ord o c om o edi t or origi nal, Si m on

& Sc hus ter, New Y or k.

O contrat o celebr ad o c om o edi t or origi nal pr oí be a exp ortaçã o des t e livro para P ort ugal e outr os país es de lí ng ua por t ug ues a.

Direit os de p ub licaçã o e xcl us iv os em lí ng ua p ort ug ues a no B ras il ad q uiri d os pela DI ST RI B UI DORA RE CORD DE S E RVI ÇOS DE I MP RE NSA S. A. que s e res erva a

pr opried ade literári a des ta trad uç ão

I mpres s o no B ras il pel o S is tema C amer on da Div is ã o Gráf ica da DI S T RI B UI DORA RE CORD DE SE RVI ÇOS DE I M PRE NSA S. A. Rua Arge nti na 171 — 20921 Ri o de

Ja neir o, RJ — T el. : 580 -3668

P E DI DOS P E L O RE EM B OL SO P OST AL Cai xa P os t al 23. 052 — Ri o de Ja neiro, RJ — 20922

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SUMÁRIO

A Guerra 9 1ª Parte: A ACUSAÇÃO 1. Objeções Papais 35 2. O Campo de Provas 45

3. Papa Branco, Papa Negro 69

4. A Humilhação Papal 93

5. Desobediência Sumária 107

2ª Parte: A SOCIEDADE DE JESUS

6. Iñigo de Loyola 129 7. O Modelo Inaciano 153 8. A Companhia de Inácio 169 9. O Caráter da Sociedade 181 10. O Superior Máximo 203 11. Furacões na Cidade 221 3ª Parte: OS LIBERTADORES 12. A Doutrina Cativante 235 13. George Tyrrell, S.J. 247

14. Pierre Teilhard de Chardin, S.J. 259

15. A Teologia da Libertação 275

16. O Segundo Concílio Vaticano 289

4ª Parte: O CAVALO DE TRÓIA

17. O Segundo Basco 303

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19. Novos Fios Contínuos 339

20. A Procura do Carisma Primitivo 355

21. O Novo Tecido 385

22. Imagem Pública 409

A Ânsia para Construir o Mundo do Homem 425

Notas 453

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xiste um estado de guerra entre o papado e a Ordem Religiosa dos Jesuítas — a Sociedade de Jesus, para dar à Ordem seu nome oficial. Essa guerra assinala a mais mortífera alteração a acontecer nas fileiras do clero romano nos últimos mil anos. E, como to dos os acontecimentos importantes na Igreja Católica Romana, envolve os interesses, as vidas e os destinos de milhões de homens e mulheres comuns.

Como acontece com tantas guerras de nossa época, os jesuí tas não

declararam a deles contra o papado. Na verdade, embora as primeiras

escaramuças às claras começassem na década de 1960, levou tempo para que os efeitos da guerra — até mesmo efeitos muito profundos — se tornassem amplamente visíveis. Como os líder es da guerra eram os Superiores da Ordem, foi uma questão simples colocar homens com a mesma identidade de pensamento encarregados dos órgãos de poder, autoridade e comunicações por toda a organização. Feito isso, a imensa maioria dos jesuítas pouco tinha a dizer nas decisões extraordinárias que se seguiram.

Com o tempo, houve manifestações em voz grave e avisos sobre o que estava acontecendo. “Está havendo um golpe de estado”, escreveu um jesuíta, ao olhar estupefato para “a facilidade com que está sendo conseguida a dissolução da ordem estabelecida [na Sociedade de Jesus]”.

Àquela altura, entretanto, já se estava no início dos anos 70, a guer ra já vinha sendo feita há quase uma década, e alarmas como aquele de pouco adiantavam. De fato, dada a estrita ob ediência dos jesuítas — um elemento lendário e de eficiência comprovada ao longo dos anos, da anti ga estrutura, que os novos líderes ainda achavam útil quando tratavam com os dissidentes de suas políticas estranhas —, os subalternos da Or dem não tinham outra alternativa senão acompanhar as mudanças que, nas palavras de outro jesuíta, “arrancaram a Sociedade de Jesus de sob os nossos pés e [a] transformaram numa entidade monstruosa sob o dis farce de bons objetivos”.

Ainda assim, pode alguém pensar em perg untar, suponhamos que haja um problema entre o papado romano e os jesuítas; qual a gravidade que isso pode ter? Chame de guerra, se quiser. Mas, francamente, será que não se trata de apenas outra disputa na Igreja Católica Romana? Num mundo que se vê balançando à perpétua beira da aniquilação, e no qual metade da população morre de fome enquanto a maioria da outra metade está presa à lama por um tipo de injustiça ou outro, que importância pode ter uma desinteressante discussão teológica? Mais ou menos tão i mportante, talvez, quanto saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete!

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mesmo de desavença teológica entre o papado e os jesuítas que envolva apenas doutos, clérigos e fiéis. Como o papado e os jesuítas sabem, os efeitos de suas políticas vão muito além dos limites da Igreja Católica Ro mana; além até mesmo dos quase um bilhão de homens e mulheres cató licos no mundo inteiro. Quase tudo o que acontece nessa guerra tem relaç ão direta e imediata com as grandes dissensões que castigam todas as nações e povos do mundo. Está no exato centro da rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética, por exemplo. Relaciona-se, neste exato momento, ao destino — de miséria ou de felicidade — de 350 milhões de pessoas na América Latina. Afeta o código de moral pública e o consen so nacional do povo norte-americano, ambos em profunda mudança; a iminente preponderância, nos assuntos humanos, da República Popular da China; a frágil persi stência de uma Europa Ocidental livre; a segurança de Israel; a ainda tosca promessa de uma África negra viável, que está no nascedouro. Todas essas coisas, por separadas e desconexas que possam parecer, estão não apenas interligadas umas às outras, mas estão e serão profundamente influenciadas pelas ondas e pelo resultado da coli são global entre o papado e a Sociedade de Jesus.

Todas as guerras se relacionam ao poder. Na guerra entre o papado e a Sociedade, o poder flui ao longo das linhas de duas quest ões fundamentais e concretas. A primeira é a autoridade: quem está no comando da Igreja Católica Romana no mundo inteiro? Quem estabelece a lei quan to a em que os católicos romanos devem acreditar e que tipo de princí pios morais devem eles praticar?

A segunda questão é o propósito: qual é o propósito da Igreja Cató lica Romana neste mundo?

Para o papado, as respostas a ambas as questões são claras e bem conhecidas. A autoridade para ordenar e ensinar desce, pela sua estrutu ra hierárquica, do papa aos bi spos, aos padres e aos leigos. E o único propósito da Igreja neste mundo é fazer com que todo indivíduo tenha os meios de alcançar a vida eterna de Deus depois da morte. Trata -se de um propósito exclusivamente espiritual.

Para muitos jesuítas, em contrapar tida, a autoridade centralizada da Igreja, a estrutura de comando por meio da qual é exercida e sua finali dade são, todas, inaceitáveis hoje em dia. As tradicionais prerrogativas deste papa, João Paulo II, ou de qualquer papa, são censuráveis.

No lugar de uma Igreja hierárquica, eles visam a uma Igreja com posta de comunidades pequenas e autônomas — “o povo de Deus”, como são conhecidas em conjunto, ou “a Igreja do povo” — todas associadas livremente apenas pela fé, mas de forma nenhuma por uma auto ridade central e centralizadora como o papado alega ser.

No lugar do propósito espiritual da Igreja tradicional, a Sociedade de Jesus colocou a luta, no presente, pela libertação de uma classe de ho mens e mulheres da nossa sociedade de hoje: os milhões de vít imas da injustiça social, econômica e política.

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delicada para os jesuítas. A nova missão da Sociedade — porque não é nada menos do que isso — coloca-os subitamente numa aliança real e, em ce rtos casos, de bom grado com os marxistas em sua luta de classes. O objeti vo de ambos é criar um sistema sócio-político que afete as economias das nações por uma completa redistribuição dos recursos e bens da terra; e, no processo, alterar os sistemas de governo atuais em voga entre as nações.

Para a Sociedade, porém, não interessa vir a público e dizer tudo isso como sendo política da entidade. Seria perder a guerra antes mesmo que as tropas estivessem todas dispostas em formação de combate. Para cobrir a mesma realidade, a expressão corrente entre os jesuítas e outros dentro da Igreja que simpatizem com essa nova missão é uma frase ar rancada de seu contexto original num documento divulgado em 1968 por uma Conferência de Bispos Católicos realizada em Medellín, Colômbia: “exercer uma opção preferencial pelos pobres e oprimidos”.

Nada do que foi dito significa que a Sociedade de Jesus se tornou, em qualquer momento, marxista. Não. Apesar disso, a cruel realidade é que muitos jesuítas desejam ver uma alteraç ão radical no capitalismo democráti co do Ocidente, em favor de um socialismo que parece inevitavelmente sur gir cheirando a comunismo totalitário. E a verdade é que não faltam jesuí tas influentes que se manifestem regularmente em favor da nova cruzada.

Um breve retrato de três jesuítas — um cientista sócio-político, um dedicado guerrilheiro e um tremendo teólogo -professor — irá fazer um rápido esboço do amplo e geral arco do empenho do jesuíta moderno em vencer essa guerra.

O primeiro, Arthur F. McGovern, S.J., é um destacado e convicto apologista do novo anticapitalismo jesuítico. Em 1980, ele publicou um livro sobre a matéria — Marxism: An American Christian Perspective — e em muitas ocasiões tem exposto com franqueza o que pensa. Em essên cia, McGovern diz que o marxismo foi e é uma crítica social, pura e sim ples. Marx queria, apenas, que pensássemos mais claramente nos meios de produção, em como as pessoas produzem; e nos meios de distribui ção, nas pessoas que possuem e controlam os meios de produção. Em tudo isso, o marxismo não pode ser riscado por ser “não verdadeiro”. Foram Engels e Lenin que acrescentaram os desagradáveis ingredientes de “materialismo científico” e ateísmo. Basta ler os trabalhos não publicados do jovem Marx para que se fique con hecendo o “seu lado mais humanista”.

Em consequência, conclui McGovern, temos que isolar a crítica social de Marx, que é “verdadeira”, daqueles elementos estranhos. Podemos acei tar o conceito de Marx de uma luta de classes, porque existe uma luta de classes. Isso quer dizer, mesmo, revolução, mas “revolução não significa nitidamente violência (...) significa que temos que ter um novo tipo de so ciedade, por certo não o capitalismo democrático tal como o conhecemos”.

McGovern vê em Jesus, tal como retratado no Evangelho Segundo São Lucas, um modelo de revolução. O Evangelho de São Lucas é um “evan gelho social”, diz ele, citando Jesus em apoio de sua causa: “Vim para pre gar a boa-nova aos pobres, libertar os oprimidos, redimir os cativos.”

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“Vejam”, acrescenta McGovern, “quantas vezes Jesus fala na pobreza; se identifica com os pobres; critica aqueles que lançam ônus sobre os pobres.” Está claro, portanto, que Jesus reconhecia a “luta de clas ses” e endossava a “revolução”.

Consciente ou inconscientemente, como a maioria dos jesuítas mo dernos e muitos ativistas católicos, McGovern pôs de lado, efetivamente, mil e quatrocentos anos de uma rica interpretação católica, autenticamente cristã, da Bíblia. Ele reinterpretou o Evangelho e a missão salvífica do Filh o de Deus num sentido econômico, num sentido de preocupação com as coisas terrenas, num sentido não-sobrenatural, num sentido não-católico. Todo o resto vem em seguida.

Como o “novo tipo de sociedade” não pode ser “o capitalismo de mocrático tal como o con hecemos”, os Estados Unidos, como líder e mais bem -sucedido expoente do capitalismo democrático, vêm para o centro do palco. De fato, logo nos primórdios da guerra, na década de 1960, quando os jesuítas dos Estados Unidos adotaram um “projeto jesuítico de liderança nacional”, o plano deles era explícito quanto à intenção de alterar a estrutura fundamental da América de uma democracia capitalista: “Nós, os jesuítas, temos que reconhecer que participamos de muitas estruturas pecaminosas da sociedade americana. Por isso, corremos o risco do pecado, a menos que trabalhemos para mudar isso.”

Como uma andorinha, só, não faz verão, um só McGovern — ou mesmo um só “projeto jesuítico de liderança nacional” — não faz uma guerra. Tirando-se a política declarada no projeto, em todos os sentidos práticos a Sociedade de Jesus se dedica como um todo a essa luta de clas ses. A sua mensagem chega, hoje, de mil fontes diferentes entre clérigos e teólogos que vivem nos países de capitalismo democrático. Ela é vene rada numa teologia totalmente nova — a Teologia da Libertação — cujo manual foi escrito por um jesuíta peruano, padre Gustavo Gutierrez, e cujo quadro de honra inclui um número notável de destacados jesuítas latino -americanos como Jon Sobrino, Juan Luis Segundo e Fernando Cardenal. Não se trata de nomes bem conhecidos ouvidos nos noticiosos de todas as noites nos EUA. Mas são homens de significativa influência in ternacional para as Américas e para a Europa.

Embora o movimento tenha sido global desde o começo, foi acim a de tudo na América Latina que a estranha aliança entre jesuítas e marxis tas tomou o seu primeiro impulso prático. Foi lá que essa nova missão jesuítica, envolvendo, como envolve, nada menos do que a transforma ção da face sócio-política do Ocidente, enr edou vidas de maneira muito mais profunda do que McGovern e teóricos como ele previam. Rapida mente, dezenas e dezenas de jesuítas começaram a trabalhar, com a pai xão e o zelo que sempre lhes foram característicos, pelo sucesso dos sandino -comunistas na Nicarágua; e quando os sandinistas tomaram o poder, aqueles mesmos jesuítas assumiram cargos cruciais no governo cen tral e atraíram outros para participarem em vários níveis regionais. Enquanto isso, em outros países centro -americanos os jesuítas não apenas

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participavam no treinamento de quadros marxistas em guerrilhas, mas alguns se tornaram também guerrilheiros. Inspirados pelo idealismo que viam na Teologia da Libertação, e encorajados pela independência ine rente à nova ideia da Igreja como um grupo d e comunidades autônomas, os jesuítas achavam que tudo era permitido — e mesmo estimulado — desde que promovesse o conceito da nova “Igreja do povo”.

Aqueles homens eram o sonho e o ideal dos verdadeiros teólogos da li -bertação. Pois eles eram os combatente s, os quadros que levaram a Teologia da Libertação de teoria para o que chamavam de práxis — a implementação da revolução popular pela libertação econômica e política. Daquela práxis, insistiam os teólogos da libertação, “lá de baixo, entre o povo”, viria toda a verdadeira teologia, para substituir a velha teologia que certa vez fora imposta autocraticamente “de cima” pela hierarquia da Igreja Romana.

O segundo nome naquele arco dos novos esforços jesuíticos é James Francis Carney, S.J., homem que foi o mod elo da práxis — talvez o mais completo, embora não o mais famoso ou influente de todos os modernos teólogos jesuítas da Libertação.

Carney nasceu e foi criado em Chicago. Fez o aprendizado para je suíta na província de Chicago; ao terminar seu aprendizado, apresentou-se como voluntário para trabalhar na América Central e foi enviado para lá em 1961. Ficou tão impressionado pela sua temporada centro -americana, que se tornou cidadão hondurenho. Ao longo dos anos, Carney sorvia a Teologia da Libertação como se se tratasse de vinho raro. Tornou-se conhecido como defensor dos pobres e crítico severo, incansável e impiedo so dos governos e dos exércitos estabelecidos, em especial em Honduras. Seu nome e suas atividades eram publicamente associados aos guerrilhei ros baseados na selva. Mesmo quando foi fixado um preço por sua cabeça pelas autoridades militares hondurenhas, não houve providência alguma dos superiores jesuítas no sentido de impedir as associações de Carney às guerrilhas. Na verdade, Carney era apenas um dos vários jesuítas em Hon duras, Nicarágua, Guatemala e Costa Rica que estavam todos seguindo o mesmo caminho com as bênçãos de seus superiores locais e romanos.

Contente, sentado numa champa em ruínas, de chão batido, na cidade nicaraguense de Limay, onde fora buscar refúgio da guerra de guer rilhas em Honduras, o padre jesuíta de 47 anos acabou de escrever sua autobiografia à luz de vela. Era o dia 6 de março de 1971. Àquela época, Carney já tinha atrás de si dez anos de dificuldades e trabalho na A mérica Central, e cerca de doze anos ainda para viver. O “padre Lupe”, como o chamavam os nativos com carinho (o nome era a forma abreviada de Guadalupe), Contou ao mundo que havia extraído os três esteios ou verdades básicas da Teologia da Libertação do s trabalhos de seu colega jesuíta Juan Luis Segundo. As obras são áridas e deploráveis.

Grace and the Human Condition, de Segundo, mostrou a Carney que “tudo,

neste mundo, é sobrenatural”. The Sacraments Today, de Segundo, revelou ao padre Lupe que “a humanidade está desenvolvendo uma ideia mais correta de Deus”. E Evolution and Guilt, de Segundo, ensinou

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a ele que “a dialética revolucionária tem que vencer o pecado do con -servadorismo da Igreja”.

Com o mais triste dos amores, Lupe já havia escrito para sua família nos Estados Unidos, para dizer -lhe o que iria fazer. A carta é reproduzi da em sua autobiografia. Ele tinha que compartilhar da revolução com seus adorados

campesinos hondurenhos porque, escreveu ele, “não su porto viver com vocês

segundo a sua maneira de viver”. O capitalismo, disse ele, em cujos pecados estavam imersos todos os americanos, era um mal tão abominável quanto se achava que era o comunismo. Só a revolu ção armada poderia erradicar “o capitalismo e o imperialismo suprana cional da América Central. (...) Ser cristão é ser revolucionário”.

“Nós, os cristãos-marxistas, teremos que lutar lado a lado, na América Central, com os marxistas que não acreditam em Deus, a fim de formarmos uma nova sociedade socialista (...) um modelo centro -americano puro.”

Embriagado pelo idealismo carregado de ignorância dos teólogos da libertação, esse jesuíta passou a acreditar que “um marxista não é dog mático, mas dialético. Um cristão não condena ninguém do ponto de vis ta dogmático, mas respeita as crenças dos outros. Um cristão anticomu nista dogmático não é um cristão verdadeiro, e um marxista anticristão dogmático não é um marxista de verdade”.

Tendo investido a dura realidade do marxismo, tal como tem sido historicamente conhecida, com uma magia visio nária sem nenhuma realidade tridimensional, Carney esboçou, para a família, o seu “modelo centro -americano puro”.

“Nem comunista nem capitalista (...).” O novo socialismo será “uma fraternidade de toda a humanidade (...) e igualmente uma sociedade sem classes (...)”. Teologicamente falando, “o universo do homem está em evolução dialética em direção ao Reino de Deus (...)”.

Muito embora todos “respeitem a crença dos outros”, Carney con seguiu ser muito mais honesto do que McGovern ao reconhecer que “(...) d ialético significa conflitante, avançando por uma série de lutas entre pes soas de ideologias contraditórias (...)”. Na verdade, Carney ficara con vencido de que o propósito real da dialética da luta era vencer “o pecado” do conservadorismo que é o pecado peculiar da Igreja Católica Romana. O plano de Deus para a evolução do mundo e da sociedade humana iria desdobrar -se em conflito e na revolução armada. A transformação assim provocada seria completa; seria, ao mesmo tempo, uma mudança “cultural-espiritual”, e uma “mudança econômica, social e política”.

Carney terminava sua autobiografia com um apelo a todos os cristãos: “(...) livrem-se de quaisquer preconceitos injustos e não-cristãos que tiverem contra a revolução armada, o socialismo, o marxismo e o comu nismo. (...) Não existe uma terceira opção entre ser cristão e ser revolucionário (...).”

Isso foi o apelo máximo em favor da práxis.

Mais tarde, naquela primavera de 1971, com a concordância de seus superiores, Carney atravessou ilegalmente a fronteira, t ornando a entrar em Honduras para partilhar da vida de ataques e retiradas rápidas de um

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comando guerrilheiro. Foi o início de doze anos de práxis a mão armada pelo “conflito dialético” que ele tinha em alta estima como sendo a cha ve para o futuro do catolicismo.

De comum acordo com seu superior provincial, padre Jerez, que àque la altura sofria certa pressão de Roma e do Vaticano, o padre Carney aca bou se desligando dos jesuítas. O entendimento que tinha com Jerez e seus superiores era de que poderia tornar a entrar para a Sociedade tão logo a luta terminasse. A Sociedade, no final das contas, era apenas con veniência. Num mundo em que tudo já era sobrenatural, como o padre Lupe escreveu dizendo ser essa a verdade para ele, não havia lugar para regras rí gidas; não havia lugar para uma Igreja Romana infalivelmente autoritária. Não havia necessidade de qualquer Igreja santificar coisa alguma, porque tudo era sobrenatural e, portanto, já era santo. A Igreja era apenas uma parte outra da humanidade, ao nível da humanidade em relação a Deus, aprendendo à medida que a humanidade aprende, deslocando-se com a humanidade em direção a uma utopia na Terra.

“Fico desgostoso”, escreveu Carney, “mas quero ser honesto e não prejudicar os jesuítas ao me unir às guerrilh as como um desobediente fugitivo da Sociedade, obrigando-os a me expulsarem.” Como demonstra ram outros que

vieram depois dele, Carney não precisava ter -se preocupado com

desobediência ou expulsão. Ainda assim, se o padre Lupe não pre servara os rudimentos de sua fé católica romana, pelo menos preservara a sua sinceridade e sua capacidade de fazer uma escolha bem definida.

Em setembro de 1983, a unidade de assalto de Carney, com noventa homens, foi aniquilada numa batalha com tropas hondurenhas de seu ve lho inimigo, o general Gustavo Alvarez Martinez, que tantas vezes fora por ele denunciado em público. Uns poucos de seus homens que sobrevi veram foram capturados e atirados numa cova retangular na selva, atrás do acampamento militar hondurenho de Nueva Palestina. Será que Car ney era um daqueles homens? Ninguém conseguiu descobrir. Será que ele morreu? É muito provável. De esgotamento? Pelo menos de esgotamen to. Terá sido interrogado? É provável. Torturado? É provável. Será que foi deixado para morrer de inanição? Provavelmente. Será que ainda es tá vivo e ainda é prisioneiro na selva? Não parece possível; mas jamais se revelou uma notícia precisa.

Este é o tipo de guerra que existe. Não se trata, nem de longe, de saber quantos anjos podem dançar na cabeça d e um alfinete. É uma guerra na qual sangue é derramado com regularidade e em grandes quantidades. Sacerdotes como Carney não constituem raras exceções. É claro que nem todos escrevem testamentos de sua conversão para a violência revolucio nária, a fim de que o mundo os leia; e nem todos chegam ao ponto de viverem a vida de membros de unidades de assalto. Mas nos muitos e va riados papéis que eles representam na arena puramente política do mun do, homens como o padre Carney, S.J., cada um deles, são essenciais para o sucesso dos jesuítas em sua luta contra o papado.

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bipolar gira inexoravelmente em torno do marxismo -leninismo soviético e do capitalismo ao estilo ocidental. A única disputa que pa rece ter impor tância para a Sociedade de Jesus neste último quarto do século XX é aquela entre essas duas esferas de influência. E o fato é que, embora a Sociedade em si não seja oficialmente marxista, os jesuítas que se diziam ou se di zem marxistas — porque o padre Lupe não estava sozinho nem mesmo nisso — não são, por esse motivo, expulsos da Sociedade ou censurados ou silenciados. Ao contrário, fazem-se os maiores esforços no sentido de protegê -los de ataques. Isso se tornou tão espalhafatoso que, não faz muito tempo, quando o papa João Paulo II conheceu um jesuíta indiano que, como verificou, não era marxista, exclamou, surpreso: “Com que então nem todos vocês são marxistas!”

A guerra entre o papado e os jesuítas parece, então, ser de natureza política. E, num sentido, é. Mas presumir, como fazem muitos jesuítas da nova missão, que a sua guerra contra o papado começa e termina com a luta marxista-capitalista pelo poder, pela autoridade e pelo domínio do mundo, seria confundir os sintomas de apodreciment o da Sociedade com a condição mais básica que permite que esses sintomas progridam e se multipliquem. Porque embora a guerra que eles se decidiram a fazer te nha lugar no plano da geopolítica, é também, e mais fundamentalmente, uma guerra por causa da questão da existência mesma do Espírito como a dimensão básica do mundo dos homens e das mulheres. É sobre o so brenatural como o elemento que torna cada um de nós humano e define nossa existência e nosso mundo.

A esse nível, os novos conceitos jesuíticos rela tivos à autoridade na Igreja e ao propósito da Igreja no mundo representam uma reviravolta da mais profunda natureza. Para a Sociedade de Jesus, a autoridade má xima para crença e moralidade já não está na Igreja Católica Romana, com o seu papado e sua hierarquia de âmbito mundial, mas no “povo de Deus”. Os resultados dessa substituição são que, até esta data, não há dogma importante ou lei moral capital do catolicismo romano que não tenha sido contestada e negada por jesuítas, a começar com jesuítas das ma is altas posições hierárquicas e das mais elevadas reputações.

Eles têm sido imitados e têm recebido a adesão de uma infinidade de grupos, tanto católicos como não-católicos, com as mais diversas razões pa ra defenderem essa nova igreja, o “povo de Deus”, como superior à Igreja hierárquica Católica Romana. Mas foram eles, os jesuítas, que abriram o caminho e que deram os maiores e mais consistentes exemplos nessa nova atitude em relação ao pontífice romano e aos dogmas definidos de Roma.

O teólogo-professor dessa guerra — e o terceiro nome naquele arco do novo empenho jesuítico — é o homem aceito e celebrado como o maior teólogo jesuíta dos últimos cem anos, Karl Rahner, S. J. Rahner viveu to da uma vida de esforços — cautelosamente, a princípio, mas com uma estridência cada vez maior à medida que o tempo passava — no sentido de alterar a crença católica. Embora não trabalhasse em campos isola dos, sua estatura, sua ousadia que não ligava para as consequências, e

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seu sucesso o destacam como o líder no que po de ser perfeitamente des crito como o esquadrão de combate de teólogos católicos que, a partir de 1965, laceraram e cortaram em pedaços não apenas os flancos, mas a própria substância do catolicismo.

Rahner era tão diferente de seu colega jesuíta James Car ney quanto é o frio do calor. O contraste entre os dois homens é a melhor ilustração do velho ditado que diz que uma ideia pode provocar um inferno de cha mas no coração de certos homens, mas explode no cérebro de outros. En quanto Carney era um fazedor impulsivo e apaixonado, Rahner era o intelectual meditativo, pensativo, impassível. Enquanto Carney podia es crever ilógica mas emocionalmente para justificar suas ações aos olhos da família, e depois contar apenas com o amor da família para aceitá -lo como era, Rahner escrevia, proferia conferências e conversava com lógi ca sutil e mente desprovida de paixão para desengatar os dogmas de fé mais caros que se achavam na mente de seus leitores e ouvintes.

Carney ficava zangado com a injustiça, revoltava -se contra a opressão, clamava dolorosamente contra a miséria humana. Sua munição e suas ar mas não eram apenas balas e canhões, mas a sua profunda compaixão, sua fúria contra a injustiça e sua recusa congênita em fazer a mínima concessão. Era o seu coração, numa agonia avassaladora, que guiava o seu julgamento.

Rahner, em contrapartida, apontava a artilharia pesada de sua lógica e de sua imensa reputação como teólogo para a sacrossanta autoridade dos papas. Escolheu como alvo as imemoriais fórmulas de fé. Tinha à s ua disposição outras armas com que Carney não contava: a mais arguta das men tes, um conhecimento realmente enciclopédico, um humor sempre pronto e azedo, e uma indômita arrogância de intelecto. “Não vou tolerar a in justiça”, era o grito de Carney. “Não serei um servo”, era o de Rahner.

Num momento crítico e doloroso na moderna história do papado, Rahner se recusou categoricamente a defender o ensinamento católico so bre o controle da natalidade ou o pontífice que pediu aos jesuítas, como “homens do papa” , que o ajudassem em seu desespero. O mesmo acon teceu com virtualmente todos os outros dogmas e regras da Igreja Católi ca que Rahner havia jurado defender. No entanto, sua voz parecia tão autêntica, que ele era considerado por muitos como tendo maior aut oridade do que três papas sucessivos, quando chegava o momento de interpretar o ensinamento moral da Igre ja Católica. O próprio Rahner se esforçou muito para representar esse papel de profeta moderno. Enquanto viajava pela Europa e pelas Améri cas vestindo seus corretos ternos de passeio, era incansável na sua crítica mordaz e sarcástica ao papado e à autoridade romana.

Em Unity of the Churches: An Actual Possibility, o último livro que escreveu antes de morrer em 1984, Rahner fez a mais notável e patente apresentação da recém-aceita atitude jesuítica sobre o papado e os dogmas de finidos de sua Igreja. Trabalhando com um colega jesuíta e co -autor, Heinrich Fries, e com o

imprimatur de seus superiores jesuítas, Rahner apre sentou uma proposta radical

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unidade cristã, disse ele, era necessário parar com toda a insistência na in -falibilidade papal como dogma, e também acabar com a insistência em to das as outras doutrinas sobre o pontífice romano e o catolicismo rom ano que tinham sido definidas e propostas por papas desde o século IV.

Com efeito, Rahner estava propondo que a Igreja Católica pegasse oficialmente todo o corpo de leis relativas à fé e aos costumes, tal como desenvolvido e ensinado pela sua Igreja durant e dezesseis séculos, e o des -vinculasse da vida diária. Casamento, homossexualidade, ética comercial, liberdade humana, piedade, todas as esferas da existência humana, tudo teria que ficar à deriva ao sabor das marés da redefinição, que estavam sempre mudando. Mas os dogmas da Igreja seriam as principais baixas. Porque aquilo que a Igreja definiu como básico e obrigatório para a crença católica iria, no plano de Rahner, tornar -se opcional. A integridade da pessoa de Cristo; o significado e o valor dos Sete Sacramentos; a existência do Céu e do Inferno; o caráter divino da autoridade dos bispos; a ver dade da Bíblia; a primazia e a infalibilidade do papa; o caráter de clero; a Imaculada Conceição e a Assunção de Maria, mãe de Cristo — tudo ficaria à ecumênic a disposição de quem quisesse.

Acima de tudo isso, entretanto, ficavam os principais alvos de Rah ner, os bloqueios que ficavam no caminho de tudo o mais: a autoridade papal que ele queria ver desmantelada e a Igreja Católica Romana hierár quica que ele queria ver reduzida a mais uma expressão idiossincrática da mensagem de Cristo. Em outras palavras, a autoridade prática e o pro pósito espiritual da Igreja — sempre as verdadeiras questões na guerra entre papado e jesuítas — seriam rejeitados e substituídos pela autoridade e pela missão materialista que estivesse em voga.

A nível meramente pessoal, é razoável que se tenha que presumir a falta total de fé católica em Rahner. Mas o que está em jogo é menos a condição da alma de Rahner do que a influência prát ica que ele e mui tos outros teólogos, que tenham as mesmas ideias, exercem sobre a vida tal como é vivida em nosso mundo.

Dizer que Rahner — e Fries como co-autor secundário — estava apenas exprimindo o sentimento antipapal que era muito corrente entre o s teólogos católicos em 1984 não é contar a metade da ruína causada por ele. Rahner, ocupado em ensinar teologia numa prestigiosa universidade jesuítica durante a maior parte de sua vida, tornou -se ao longo dos anos uma imagem de sabedoria teológica e bom julgamento para literalmente milhares de pessoas que, por sua vez, agora são sacerdotes, professores e escritores com comando, influência e renome próprios.

É de se admitir que esse trabalho pareça, a muitos, ter lugar em tor res de marfim. Mas homens como Karl Rahner ajudaram poderosamente a moldar o pensamento e os costumes de padres e bispos que estão, ago ra, envolvidos em cada nível de questões mundanas em todas as partes do globo. E uma vez convencidos, mesmo num plano puramente pessoal, de que os Rah ners da Igreja têm razão e que o papado está errado, não há chance alguma de que o conflito possa permanecer teórico. Em vez

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disso, ele atinge as mais profundas áreas de pensamento, crença e senti mentos de milhões que são arrastados pelo coração — e pela influência direta ou indireta de teólogos como Rahner — para um mundo no qual a natureza, o significado e a mais básica finalidade de suas vidas como cristãos são redefinidos num cenário puramente racional e materialista.

Sem um gigante como Karl Rahner, é de se duvidar que a Teologia da Libertação fosse conseguir muito mais do que rachar, oscilar e despencar; ou que um Francis Carney fosse ser tão pouco severo ao criticar os traba lhos escritos por Juan Luis Segundo. Apesar de tudo, deve -se dizer que Rahner não foi um inventor; tampouco o foram os homens de sua geração que foram a sua ferrotipia. Não foi Rahner quem iniciou a enorme reviravolta teológica na Sociedade de Jesus ou na Igreja Romana. Sua importância não foi como inovador, mas como fiel e efic iente evangelista em favor de uma influência perniciosa e destrutiva que já vinha se espalhando sorrateiramente dentro da Sociedade de Jesus há décadas antes de ele surgir em cena. Quer proferindo conferências na Europa, quer se transportando para as Améri cas, envolto no prestígio que adquirira, incontestável em sua autoridade, apresentando sempre o rosto não-atrativo do materialista, rápido em qual quer luta interna, e sem se curvar para ninguém, Rahner foi o ponta -de-lança adequado para o autocanibalismo católico. Ele ensinou a várias ge rações a consumir sua fé com lógica, ceticismo e desobediência.

Sua dedicação ao ponto de vista antipapal e anticatólico era tão sin cera, que ele se tornou a sua encarnação, como se poderia dizer. E, no entanto, foi tão eficiente na manutenção de sua estatura teológica dentro da Sociedade de Jesus, que deu àquele ponto de vista uma nova respeita bilidade, tanto dentro como fora da Sociedade e da Igreja. Nenhum su perior jesuíta, no seu país natal ou em Roma, jamais o conteve. Tendo sido a prova em carne e osso da estranha corrupção que se instalara na Sociedade, Rahner morreu como havia vivido, numa aura de honra entre seus companheiros e superiores.

Apesar de todas as suas diferenças, os três homens aqui esboçados — o cientista sócio-político, o guerrilheiro dedicado e o teólogo -professor — exemplificam, inclusive, a aberração da Sociedade.

É claro que, a esta altura, a Sociedade de Jesus não está sozinha na luta contra o papado. Ela tem sido imitada e tem recebido a adesão de muitos grupos — católicos e não-católicos, religiosos e seculares — cada qual com suas próprias razões para defender a ideia de que uma nova igre ja, o “povo de Deus”, substituiu a antiga e hierárquica Igreja Católica Romana. Mas foram os jesuítas que abriram aquele caminho; foram eles que estabeleceram os maiores e mais consistentes exemplos dessa nova ati tude em relação ao pontífice romano e aos dogmas definidos de Roma; e são eles que continuam a trabalhar nos pontos mais longínquos daquilo que só se p ode chamar de política divina.

E foi assim que o atual geral da Sociedade de Jesus, Piet -Hans Kol-venbach, pôde enfrentar os jesuítas que o elegeram chefe da Ordem em 1983 — o ano em que James Francis Carney foi engolido numa batalha

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na selva; o ano antes daquele em que Karl Rahner voltou a Deus — e prometer, com uma confiança solene, que, entre outras coisas, sua tarefa seria assegurar a procura da justiça, escolhida pelos jesuítas, e não ser perturbado “pelos gemidos de reclamação de papas”.

Quando se fala que a Sociedade de Jesus está, hoje, em guerra com o pa pado, e mesmo antes de se perceber que estranha e confrangedora revira volta isso representa para um corpo de homens cujo principal motivo de fama foram suas realizações e sua reputação como “homens do papa”, não se deve pensar que essa Ordem Religiosa dos Jesuítas seja apenas mais uma organização humana. São muitas as organizações desse tipo que têm sua fase áurea e depois decaem, ossificam-se e acabam por desaparecer.

A Sociedade de Jesus foi cria da em 1540 por um obscuro basco cha mado Iñigo de Loyola, mais conhecido como Inácio de Loyola. Não se pode colocar os jesuítas de Iñigo no mesmo nível de qualquer outra orga nização, pelo simples motivo de que nenhuma organização que conheça mos pode rivalizar, até o momento, com os jesuítas no que se refere aos inestimáveis serviços que prestaram à família humana — muito acima do que fizeram, em nome do papado e da Igreja Católica Romana do papado.

Iñigo foi um gênio raro. Se Leonardo Da Vinci, contemporâ neo de Iñigo, tivesse projetado uma máquina, chegando até os detalhes das por cas e parafusos, que suportasse todos os testes do tempo e das circuns tâncias que se alteraram ao longo de um período de 425 anos — e se só a destruição de seu projeto inicial provocasse o colapso da máquina — não seria maravilha maior do que a Sociedade que Iñigo projetou. Por que, tal como ele a construiu — o molde de seu jesuitismo, sua estrutura funcional, sua devoção ao papado, seu caráter e seus objetivos — a Sociedade resistiu a todos os testes de tempo e circunstâncias, exceto um: a perversão da regra, do papel e do espírito que ele lhe deu. Fora isso, sua mui extraordinária durabilidade está comprovada.

Nem mesmo Iñigo poderia ter previsto o quase -milagre da organização de sua Sociedade, seu sucesso meteórico e brilhante, e sua influência universal sobre o mundo do homem, quando a fundou. Nos 425 anos que se seguiram, as dezenas de milhares de pessoas que entraram para a Com panhia de Iñigo estabeleceram um recorde que, em sua categoria, não foi igualado na história passada ou presente — um recorde tanto de serviços à Igreja Católica quanto à sociedade humana como um todo.

Olhando para trás, um fanático do século XX que parecia um gênio, Lenin, mal orientado mas com admir ação, afirmou, no fim da vida, que se tivesse contado com doze homens iguais a um daqueles jesuítas pionei ros, o seu comunismo teria arrebatado o mundo.

Embora poucos em número, os princípios básicos que Iñigo estabe lecera para a sua Companhia eram catal isadores poderosos. Logo que seus homens utilizaram suas energias dentro de sua organização no trabalho de âmbito mundial da Igreja Romana, provocaram um fenômeno sem igual de história humana. “Nunca”, escreveu Novalis, o teórico alemão do sé culo

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XVIII, “nunca antes na história do mundo surgiu uma Sociedade igual a essa. O próprio velho Senado Romano não fez planos de domínio mundial com maior certeza de sucesso. Nunca a execução de uma ideia maior foi examinada com maior compreensão. Para todo o sempre, essa Sociedade será um exemplo para toda sociedade que sentir um desejo orgânico de extensão infinita e duração eterna (...).”

“Quanto mais universal o seu trabalho”, dissera Iñigo, “mais divi no ele se torna.” Trinta anos depois que ele fundara a Ordem, s eus jesuítas estavam trabalhando em todos os continentes e em praticamente todas as formas de apostolado e campo educacional. Num prazo de cem anos, os jesuítas eram uma força que se tinha que enfrentar em praticamente todas as fases da vida ao longo da qual os homens procuram, e às vezes conseguem, poder e glória.

Não havia continente que os jesuítas não alcançassem; nenhuma lín gua conhecida que não falassem e estudassem ou, em dezenas e dezenas de casos, desenvolvessem; nenhuma cultura em que não penetr assem; nenhum ramo de conhecimento e ciência que não explorassem; nenhum tra balho em humanismo, nas artes, na educação popular, que eles não realizassem e fizessem melhor do que qualquer outra pessoa; nenhuma forma de violência que não tivessem sofrido — os jesuítas foram enfor cados, arrastados e esquartejados em Londres; estripados na Etiópia; co midos vivos por índios iroqueses no Canadá; envenenados na Alemanha; esfolados até a morte no Oriente Médio; crucificados na Tailândia; mor tos de fome na América do Sul; decapitados no Japão; afogados em Madagascar; bestializados na União Soviética. Naqueles primeiros quatrocentos anos, eles deram à Igreja 38 santos canonizados, 134 homens santos já declarados “Benditos” pela Igreja Romana, 36 já decla rados “Veneráveis” e 115 considerados como tendo sido “Servos de Deus”.1

Desses, 243 foram mártires; isto é, foram mortos por causa de suas crenças.

Viveram entre mandarins chineses, índios norte -americanos, as brilhantes cortes reais da Europa, brâmanes hindus da Índia, as escolas de “cerca viva” da Irlanda penal, navios escravos dos otomanos, imames e ulemás do Islã, o decoro e o saber dos lentes graduados de Oxford, as multiformes sociedades primitivas da África subsaariana, e se adaptaram.

E, no longo catálogo de insultos e calúnias que os homens criaram a fim de injuriar seus inimigos, não havia termo suficientemente forte para se aplicar aos jesuítas, devido àquela terrível fixação que eles tinham, desde os seus primórdios, por outro dos princípios de Iñigo: serem “homens do papa”; os homens do papa. Iñigo de Loyola, escreveu Thomas Carlyle, foi “a fonte de veneno da qual nasciam todos os rios de amargura que inundavam o mundo agora”.

Insultos como esse têm sido cultuados nas próprias línguas dos ho mens. O

Webster’s Third New International Dictionary, depois de ter dado o significado

básico de jesuíta como membro da Ordem, fornece os significados negativos: “pessoa dada à intriga e a subterfúgios; pessoa

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ladina”; termos que são ampliados pelo dicionário de Dornseif para “de duas caras, falso, insidioso, dissimulador, pérfido (...) insincero, ignó bil, desonesto, mentiroso”. Um provérbio francês diz que “sempre que dois jesuítas se juntam, o Diabo completa o trio”. Um provérbio espanhol alertava as pessoas, d izendo “não confie sua mulher a um monge ou seu dinheiro a um jesuíta”.

Os eternos inimigos do papado nunca poderiam perdoar Iñigo e seus jesuítas enquanto estivessem em missão do papa, cumprindo o sagrado voto de obediência, ainda que sujeitos à desonra e à morte. Estava tudo de acor do com o desejo expresso de Iñigo. “Esperemos”, escreveu ele certa vez, “que a Ordem nunca possa ficar muito tempo sem sofrer a hostilidade do mundo!’

Na verdade, seu desejo foi realizado, pois os seus jesuítas eram realmente homens do papa. Seus primeiros alvos principais: as novas igrejas protestantes que pululavam pela Europa. Justamente a questão vital que estava em jogo entre a Igreja Católica e os líderes da revolta protestante

— Lutero, Calvino e Henrique VIII da Inglaterr a — era a autoridade do pontífice romano e a primazia de sua Igreja Católica Romana.

Os jesuítas levaram a batalha aos próprios territórios daqueles ini migos papais. Faziam debates públicos com reis, debatiam em universidades protestantes, pregavam em enc ruzilhadas e em mercados. Dirigiam-se a conselhos municipais e instruíam os concílios da Igreja. Infiltravam -se em territórios hostis, disfarçados, e se deslocavam às escondidas. Estavam em toda

parte, cumulando seus contemporâneos de brilhantis mo, sagacidade,

severidade, erudição, devoção. Seu tema constante: “O bispo de Roma é o sucessor de Pedro o Apóstolo, sobre o qual Cristo fundou sua Igreja (...). Essa Igreja é uma hierarquia de bispos em comu nhão com aquele bispo em Roma. (...) Qualquer outra instituição eclesiástica é uma rematada heresia, filha de Satã (...).”

Em outras palavras, todo mundo sabia da existência dos jesuítas; e todo mundo sabia que os jesuítas eram os defensores sinceros daquela autoridade e primazia.

Embora a violenta investida dos jesuítas contra os inimigos de Roma fosse vigorosa, a penetrante influência deles sobre o próprio catolicismo romano nunca foi igualada. Eles detiveram o monopólio da educação da Europa durante mais de duzentos anos, e entre seus alunos pelo mundo in teiro se encontrava gente famosa e gente abominável — incluindo Voltaire, Luis Bunuel, Fidel Castro e Alfred Hitchcock. Sozinhos, literalmente remodelaram o ensino da teologia e da filosofia católica romana, de modo a torná -lo outra vez claro e acessível, mesmo para a nova mentalidade da era turbulenta que despontava. Proporcionavam novos meios para a prá tica da devoção popular. Promoveram o estudo do asceticismo, do misti cismo e da missiologia. Proporcionaram modelos novos para o treinamento de sacerdotes em seminários. Geraram, pelo exemplo e pela inspiração de seu Preceito Religioso, toda uma nova família de ordens religiosas. Foram o primeiro corpo de católicos eruditos que se tornou preeminente em ciên cias seculares — matemática, física, astronomia, ar queologia, linguística,

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biologia, química, zoologia, paleografia, etnografia, genética. A lista de

invenções e descobertas científicas realizadas por jesuítas enchera númer os intermináveis de volumes nos mais diversos campos — engenharia mecânica, energia hidráulica, aviação, oceanografia, hipnose, cristais, linguística comparativa, teoria atômica, medicina de doenças internas, manc has solares, aparelhos de surdez, alfabetos para os surdos e mudos, car tografia. A lista da qual são extraídos esses exemplos aleatórios entorpece a mente, devido à sua variedade que abrange todos os setores. Os manuais, livros de texto, tratados e estudos dos jesuítas eram aceitos em caráter ofi cial e conclusivo em todos os ramos do saber católico e secular.

Eles eram gigantes, mas com um propósito: a defesa e a propagação da autoridade papal e do ensinamento papal.

Tampouco suas extraordinárias energias e talentos se limitavam à ciên cia. Fizeram como se fossem seus, também, todos os setores da arte. Em 1773, contavam com 350 teatros na Europa, e as atividades teatrais dos jesuítas lançaram as fundações para o balé moderno. Fundaram o pri meiro teatro no continente norte-americano — precisamente em Quebec em 1640. Ensinaram a França a fazer porcelana. Levaram para a Eu ropa os primeiros conhecimentos que os homens ocidentais tiveram da cultura indiana e chinesa. Traduziram os vedas do sânscrito. Até mesmo as chinoiseries do período rococó tiveram como base publicações dos jesuítas em chinês. O guarda -chuva, a baunilha, o ruibarbo, a camélia e o quinino foram inovações jesuíticas na Europa.

As façanhas dos jesuítas como exploradores do Extremo Oriente ultrapassavam qualquer coisa jamais sonhada por seus contemporâneos, e constituem uma narrativa épica que tem o sabor de quase má gica. Os nomes de jesuítas estarão ligados para sempre a lugares que, para a maioria de nós, são motivos de fantasia — Kambaluc, Catai, Sarkand, Shrinagar, Tcho Lagram, Tcho Mapang, Manasarovar, Tashi -Ihumpo, Koko Nor, e o nome comprido e saltitante, Chomolongmo (que nós conhece mos como monte Everest).

Menos de cem anos depois da fundação da Sociedade, os jesuítas se tornaram os primeiros europeus a penetrarem no Tibet e depois seguirem dali para a China. O padre jesuíta Matteo Ricci foi a primeira pessoa a provar que a Catai de Marco Polo era idêntica à China, e não um país diferen te. Em 1626, o padre Antonio Andrade e o irmão Manuel Marquis abriram a primeira igreja católica no Tibet, às margens do rio Sutlej, no reino de Guge, em Tsaparang. O irmão Benito de Goes está sepultado na extremi dade noroeste da Grande Muralha da China. O túmulo do irmão Manuel Marquis fica no cume da cordilheira Zaskar, que dá vista para o passo Ma na, na região ocidental do Tibet, onde o bom irmão morreu em 1647 de pois de longo período de prisão no posto da fronteira.

Outros jesuítas — austríacos e belgas — foram os primeiros euro peus a atingirem Lhasa a 8 de outubro de 1661, e viram a construção do Palácio Potala para o Dalai Lama Chenresik. O padre Grueber, um aus tríaco, foi o primeiro a determinar a posição de Lhassa com exatidão,

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a 29 graus, 6 minutos de latitude norte. Ele e seus companheiros foram sucedidos por uma linha de destacados tibetólogos jesuítas que produzi ram dicionários, estudos de língua, mapas, estudo s geológicos e tratados teológicos. Seus túmulos, como os de Benito de Goes e Manuel Marquis, pontilham uma área que era tão remota e amedrontadora para seus con temporâneos quanto o outro lado da lua ainda continua sendo para nós.

Esses homens e seus pares religiosos noutra parte qualquer não eram apenas “os solitários e bravos” celebrados num drama teatral da década de 1940. Em sua mente, não faziam confusão entre as dimensões da Po breza Religiosa e a pobreza econômica, como aconteceu com tantos je suítas nas últimas décadas deste século. Não visavam a um objetivo nebuloso, materialista, como a “libertação integral do indivíduo huma no”. Eram gigantes que, proporcionalmente falando, rivalizaram as fa çanhas posteriores de Scott e Perry nos pólos, Hilary n o monte Everest, e os primeiros astronautas no espaço e na lua. Mas, mais do que isso, eram missionários jesuítas obedientes à voz do pontífice romano, viven do, trabalhando e morrendo fiéis a ele, porque ele representava o apóstolo Pedro, que representava o Cristo que eles acreditava m ser o Salvador.

No auge de seus esforços, duzentos anos depois de sua fundação, os jesuítas exerciam um controle formativo e decisivo na educação e na ciência de praticamente todos os países da Europa e da América Latina. Ti nham um papel a representar em todas as alianças políticas da Europa — um cargo influente junto a todos os governos, uma função de assessoria jun to a todo grande homem e a toda mulher poderosa. Um jesuíta foi o pri meiro ocidental a frequentar a corte do grão-mogol. Outro foi o primeiro a ser declarado mandarim oficial no palácio do imperador em Beijing. Oliver Cromwell, Filipe II da Espanha, Luís XIV da França, Catarina a Grande, o cardeal Richelieu, a rainha Cristina da Suécia, Mary, a rai nha dos escoceses, Napoleão, Washington, Garibaldi, Mussolini, Chiang Kai -shek — a lista dos grandes vultos da história frequentados pelos je suítas se estende por várias páginas. Eles minutavam tratados, negocia vam pactos de paz, serviam de mediadores entre exércitos em guerra, arranjavam casamentos reais, faziam arriscadas missões de resgate, vi viam onde não eram bem-vindos, como agentes secretos da Santa Sé. Passavam-se por criadores de porcos na Irlanda, bazaaris na Pérsia, homens de negócios na Prússia, marinheir os mercantes na Indonésia, pedintes em Calcutá, swamis em Bombaim. Não havia coisa alguma, em parte alguma, que eles não realizassem, como diziam, “para a maior gló ria de Deus”, em obediência ao papa romano. Estavam em todo país eu ropeu, africano, asiático e americano onde fosse possível o mais leve desabrochar do catolicismo. Toda a influência deles era exercida visando ao atendimento da vontade papal. Ser jesuíta era ser um papista no senti do exato desse termo que já foi pejorativo.

O poder de âmbito mundial dos jesuítas se tornou tão grande, que as pessoas comuns de Roma inventaram um novo título para padre jesuí ta geral. Elas o chamavam de “O papa negro”, comparando seu poder

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o sua influência globais com os do próprio papa; e fazendo entre os dois uma distinção apenas com base na batina toda branca do pontífice e a batina simples e preta do sacerdote comum, que os sucessores de Iñigo usavam imitando seu exemplo. O apelido popular era um exagero, é cla ro. Mas os romanos estavam suficientemente perto do centro das coisas para saberem quem exercia uma impressionante parte do verdadeiro po der que residia na colina Vaticano.

Como Iñigo havia pretendido, aquele poder do “papa negro” e sua Companhia estava atrelado à vontade papal, mesmo que isso represen tasse a morte da própria Ordem. Em 1773, quando o papa Clemente XIV decidiu — certo ou errado — que deveria ser feita uma rígida opção entre a extinção do papado e a morte da Ordem dos Jesuítas, ele, e somente ele, agindo segundo decisão pessoal sua, aboliu a Sociedade de Jesus. Por um documento publicado oficialmente, destituiu os 23.000 jesuítas ao mes mo tempo, e colocou o padre-geral e seus assessores em calabouços pa pais, mesmo enquanto impunha o exílio e a morte lenta a milhares de jesuítas que se v iram sem ajuda ou apoio em partes perigosas do mundo.

O papa Clemente não explicou sua decisão aos jesuítas ou a qual quer outra pessoa. “As razões [para essa decisão] nós mantemos tranca das em Nosso Coração”, escreveu ele. Apesar de tudo, os jesuítas obedeceram, colaborando obedientes com a morte de sua Ordem.

Quarenta e um anos depois, em 1814, o papa Pio VII decidiu que o papado precisava da Companhia, e com isso a ressuscitou. Os jesuítas, revivificados, saíram em campo novamente, com renovado zelo pe la vontade do papa, e usaram de enorme dedicação de homens e trabalho para garantir que o Concílio Vaticano I, em 1860, decretasse que a autoridade infalível do papa era um artigo de fé e um dogma revelado de forma divina.

O esforço foi tão incisivo e sur tiu tanto sucesso, e tão odioso para tantos, que angariou para os jesuítas pós -supressão um novo epíteto: eles eram os “ultramontanos” — pessoas que apoiavam aquele abominável bispo que vivia “para lá das montanhas” (os Alpes), em Roma. O desprezo contido nesse nome injurioso é um claro indício daquilo que os jesuítas defendiam com o mesmo vigor de sempre: a antiga crença católica romana de que, por decreto divino, o homem que levava em si mesmo toda a autoridade de Cris to na Igreja deveria ser identificado por um elo físico com um ponto geo gráfico sobre a face desta Terra: a cidade de Roma. Esse homem seria, sempre, o bispo legal de Roma. E vigário pessoal de Cristo.

Os novos inimigos daquela crença moravam, em sua maior parte, na França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Suíça e Inglaterra. Eram bispos, sacerdotes, teólogos e filósofos. Falando do seu lado dos Alpes, eles se chamavam de “cismontanos” (pessoas “do lado de cá das montanhas”, o lado norte), e se opunham à autoridade e à primazia do bispo romano.

O fato de o catolicismo romano concentrado no papa romano ter florescido e se mantido na Europa ocidental até o último quarto do sécu lo

XX deveu-se, principalmente, àqueles “homens do papa” — ao seu zelo, à sua devoção àquela missão papal, à sua cultura, e à evolução que

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eles instigavam na mente católica romana. Porque em qualquer área em que tocavam, os jesuítas introduziam uma nota de razão, um discurso racional, e eles o fermentavam com uma fé brilhante e vigorosa.

Em poucas palavras, eles tomaram de assalto a mentalidade dos cató licos no século XVI. Essa mentalidade tinha todas as suas amarras numa esfera pré -científica, pré-naturalista. No espaço de quatrocentos anos, com o seu próprio sepultamento no meio, os jesuítas mudaram aquilo tudo. P elos seus métodos educacionais, por suas pesquisas e sua intrepidez intelec tual, eles possibilitaram aos católicos romanos a manutenção de sua posição, como homens e mulheres crentes e fiéis, no oceano de novas ideias e nova tecnologia que começou na déc ada de 1770 e nunca mais parou.

Periodicamente, na sua existência de mais de quatrocentos anos, os jesuítas foram expulsos e banidos de vários países — França, Alemanha, Áustria, Inglaterra, Bélgica, México, Suécia e Suíça. O termo “jesuíta” se tornara tão conhecido como sinônimo de autoridade papal, que a ex pulsão deles era sempre um sinal claro de que o governo daquele país es tava determinado a eliminar a autoridade e jurisdição do papa romano. E quando a força bruta era usada contra eles, passavam para a clandestinidade ou faziam as malas e partiam, para esperar o dia em que pudes sem voltar. Sempre voltavam. Mesmo quando a situação não chegava a caso de expulsão, ninguém tinha qualquer ilusão sobre o que eles repre sentavam — o papado — e muitas vezes a função dos jesuítas em nome do papado era desvirtuada por seus inimigos. Na América de início do século XIX, a oposição e o ódio protestantes aos jesuítas era expresso com vigor: “Eles [os jesuítas] vão fazer com que Roma governe a União.”

Aquela identificação com o papado e aquela dedicação a ele tinham sido a vontade e a intenção de Inácio, seu fundador; e fora a condição sob a qual o papado consentira em criar a Sociedade de Jesus. Na vida e na mor te, os jesuítas escreveram realmente a história como “homens do papa”

— fosse o padre jesuíta Peter Claver consumindo sua existência entre es cravos sul-americanos; ou o padre Matteo Ricci tornando -se um autêntico mandarim na corte imperial de Beijing; ou o padre Peter Canisius, o Mar telo dos Hereges, recuperando províncias e cidades inteiras do protestan tismo com suas incansáveis e incessantes viagens, pregações e obras escritas; ou o padre Walter Ciszek definhando no gulag soviético por dezessete anos; ou o padre Jacquineau servindo de mediador ente japones es e chineses que guerreavam por causa de Hong Kong; ou o padre Augustin Bea, viajando clandestinamente pelos quatro pontos cardeais da União Soviética na época de Stalin, para obter um retrato fiel das condições para a Santa Sé; ou o padre Tacchi Venturi levando de um lado para outro as negociações entre o ditador Benito Mussolini e o papa Pio XII.

Não importa quem fossem ou onde estivessem, ou o que fizessem, inerente na mente de cada jesuíta estava aquele santa estrutura da Igreja de Cristo, ancorada por Jesus ao seu vigário pessoal, o papa, e mantida unida pela hierarquia de bispos e sacerdotes, pessoas religiosas e leigas em união com aquele vigário pessoal de Cristo. E não importa o ano ou

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o século em que trabalhasse, cada jesuíta sabia que a Igreja C atólica a que ele jurara servir sob as ordens do papa era a mesma Igreja que havia existido no século VI sob Gregório o Grande, no século XI sob Inocêncio IX e em 1540 sob Paulo III.

De lato, o que mantinha a vontade deles com relação ao seu traba lho por grandes distâncias de espaço e tempo era a lendária obediência jesuítica, consagrada pelo seu voto especial: o de que todo e qualquer trabalho que realizassem seria sob a obediência papal.

Para os inimigos dos jesuítas, enquanto isso, eram precisamente o s erviço e a obediência ao papado que constituíam a abominação jesuíti ca. Seus críticos nunca cessaram de acusar os jesuítas de terem distorcido a filosofia humanista. Mas o escritor francês F. R. de Chateaubriand, que não era nada amigo da Sociedade, foi muito preciso em seu julgamento quando disse que “o leve dano que a filosofia pensa lhe ter sido causado pelos jesuítas” não vale a pena ser lembrado, tendo em vista “os incomensuráveis serviços que os jesuítas têm prestado à sociedade humana”.

A mentalidade e a perspectiva criadas pelos jesuítas atingiram seu ponto máximo de desenvolvimento na primeira metade do século XX. Co mo resultado de seus esforços, houve uma pseudo -renascença do catolicismo social e cultural, permitindo que os católicos fossem cien tistas, tecnólogos, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, líderes, artistas, eruditos, saindo -se bem mesmo nos campos mais novos do conhecimento e, no entanto, conciliando tudo com a sua crença firme como um roche do. O testemunho de tudo isso se encontra em muitas coisas — na poesia e na literatura de um G. K. Chesterton e um Paul Claudel; na sociologia militante de católicos franceses, alemães, belgas e italianos entre as duas guerras mundiais; na florescente missiologia que transformou os campos missionários da Ásia e da África; na temível escola de apologética na Eu ropa e nos Estados Unidos; na padronização das devoções populares e dos regulamentos eclesiásticos; no vibrante catolicismo dos Estados Uni dos; e quando nada, no relutante mas finalmente admitido respeito, por parte tanto de católicos como de não -católicos, que ficou evidente com relação ao catolicismo no mundo na década de 1950.

Durante a época de seu maior florescimento, na primeira metade do século XX, o número de jesuítas atingiu o seu apogeu — cerca de 36.038 — dos quais pelo menos a quinta parte era de missionários. A influência jesuítica sobre a política papal nunca foi maior, nem antes nem depois; e o prestígio dos jesuítas entre os católicos e os não -católicos nunca foi mais elevado.

No entanto, já um pouco de podridão interna estava corroendo tan to os jesuítas como o corpo eclesiástico católico. Um câncer oculto, inse rido décadas antes naqueles corpos, ficara neutro, mas não benigno.

Sintomas ocasionais traíam a sua presença — às vezes, revoltas de jesuítas em caráter individual; de vez em quando, abusos flagrantes na liturgia por parte de grupos individuais; raramente, mas com regularida de, a confusão entre atividade espiritual e vantagem política. Mas nada

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