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Ecrã duplo : a subjectividade espacial do espectador na imagem em movimento instalada

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

Ecrã Duplo. A Subjectividade Espacial do Espectador

na Imagem em Movimento Instalada

António Pedro Cabral dos Santos

Doutoramento em Teoria da Imagem

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

Ecrã Duplo. A Subjectividade Espacial do Espectador

na Imagem em Movimento Instalada

António Pedro Cabral dos Santos

Doutoramento em Teoria da Imagem

Tese orientada pela Professora Doutora Maria João Gamito

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Agradecimentos

A realização deste projecto só foi possível graças à colaboração dos meus amigos e familiares. Agradeço, em especial, à minha orientadora, Professora Doutora Maria João Gamito e, também, aos artistas Tiago Baptista e João Simões, ao Professor Doutor Mário Caeiro, da Universidade Nova de Lisboa, aos Professores Doutores Carlos Garcia e Olívia Robusto da Faculdade de Medicina de Lisboa, aos meus alunos e à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Línguas, Comunicação e Artes da Universidade do Algarve.

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Resumo

A presente investigação pretende abordar as questões relacionadas com a utilização da imagem em movimento, no âmbito específico das artes plásticas, com destaque para a vídeo-instalação. Procura-se circunscrever esses problemas num conceito mais abrangente – a imagem em movimento instalada –, tendo em consideração o facto de esta modalidade específica da imagem se ter expandido muito para além das práticas relacionadas com o âmbito estrito das artes plásticas ou do cinema. Tendências presentes na vídeo-instalação, tendo em conta dois factores: a sua relação com o mundo; a sua influência nas sucessivas gerações que a utilizaram.

Neste contexto, ao longo de todo o processo, surge a figura do espectador, cujo corpo é o epicentro e o detonador de uma subjectividade espacial, pois a vídeo-instalação é um dispositivo especial que trabalha o tempo, actuando como se fosse uma projecção na consciência do próprio espectador. Deste modo, imagem, corpo e espaço são a plataforma operacional que permite à emancipação da imagem em movimento instalada, nomeadamente da relação normalizada com o espectador – a mise-on-display, o ecrã duplo e o contexto multimédia são então os modos operatórios da imagem instalada.

Palavras-chave: imagem em movimento instalada; cinema; vídeo; vídeo-instalação; espectador.

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Abstract

This research is about the questions related to the utilization of moving image. Within the specific field of fine arts, it focuses the video installation. We pretend to circumscribe these subjects in a broader concept – the installed moving image – taking in account that this specific modality of image expanded itself beyond the practices related to the strict field of fine arts or cinema. Tendencies present in vídeo-installation, bearing in mind two factors: its relation with the world; its influence in the successive generations who have used it.

In this context, the spectator remains, throughout the whole process, his body being the epicentre as well as the detonator of a spatial subjectivity, because the video installation is a special device, working time, acting like a projection in the conscience of the viewer. Therefore, image, body and space are the operative platform that permits the emancipation of the moving image, namely from the normalized relation with the viewer – the mise-on-display, the double screen and the multimedia context are then the operative modes of the installed image.

Keywords: moving image installed; cinema; video; vídeo-installation; spectator.

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Índice

Introdução 1

Parte I – Imagem e Percepção

I.1 – A Imagem 16

I.1.1 – Ambiente Retiniano e Representação 21

I.1.2 – O “palco” retiniano em Fra Angélico 23

I.2 – A Imagem retiniana e os factores determinantes na sua formação 26

I.2.1 – Ambiente nocturno em Gary Hill 28

I.3 – Percepção da luz 30

I.3.1 – Os “discos coloridos” de Newton 32

I.3.2 – O movimento “perpétuo” da luz em Olafur Eliasson 35

I.4 – Percepção da cor 37

I.4.1– De Goethe a Chevreul, os contrastes simultâneos 39

I.4.2 – O efeito da cor nas “emoções” do Cinema 42

I.5 – Percepção do espaço 45

I.5.1– Reaçcões do corpo na percepção do movimento 46

I.5.2 – Contacto e passagem no trabalho de Jefrey Shaw e

Steve McQueen 48

Parte II – Do Visível ao Visual

II.1– A imagem visual e os filtros culturais 51

II.1.1 – A Perspectiva linear 53

II.1.2 – A Perspectiva como espelho 57

II.1.3 – O ecrã euclidiano: espaço fechado, espaço aberto 61

II.1.4 – A Perspectiva linear e a camera obscura 65

II.2 – Sob influência do enquadramento e do campo 68

II.2.1 – A dinâmica do fora-de-campo 72

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II.3 – A Imagem automática e a fotografia 80

II.3.1 – A procura de movimento, do Taumatrópio ao Caleidoscópio 84

II.3.2 – A Persistência da Visão, Joseph Plateau e

Ann Verónica Janssens 87

II.4 – Movimento e cinetismo 91

II.4.1 – Movimento suspenso, tempo dinâmico: Jeff Wall e

Cristopher Bucklow 97

Parte III – A Ideia de Cinema

III.1 – O primeiro impulso: Émille Reynaud e Eadweard Muybridge 101

III.1.1 – O Cinematógrafo 106

.

III.2 – Subitamente, o contexto futurista 110

III.2.1 – A Sinfonia Cromática de Bruno Corra 114

III.3 – Vertov, o homem-olho 117

III.3.1 – O operário, a máquina e o quotidiano 122

III.4 – Montagem como colagem em Eisenstein 127

III.4.1 – A Batalha no Gelo e a Música de Prokofiev 131

III.5 – O cinema sonoro, o menu sensorial 136

III.5.1– Imagem e som: a «mobilidade perceptiva» do cinema 138

III.5.2 – A música visual de Oskar Fishinger e René Schowb 142

III.6 – O cinema documental inglês: a realidade como espectáculo 149

III.6.1 – As leis da atracção: how to love Hitchcock 152

III.6.2 – Cinema e arte contemporânea 156

III.7 – Hibridez em Bill Seaman e Jesper Just 162

III.7.1 – Pasolini e Farocki 165

Parte IV – Da imagem em movimento à revolução vídeo

IV.1 – A Revolução magnética 169

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IV.2 – Fluxus: o mundo é uma imagem em movimento 177

IV.2.1 – Art is cheap, moving image is more free than cheap 183

IV.3 – “Sintomas” em Takahiko Iimura 186

IV.3.1 – A imagem diluída em Vostell e Paik 191

IV.3.2 – O diário filmado, Jonas Mekas e Jim McBride 196

IV.4 – A imagem “doméstica” 198

IV.4.1 – O Portapak e a imagem “pobre” 201

IV.4.2 – Mutações em Mathew Barney e Douglas Gordon 203

IV.5 – A arte anti-televisiva da primeira geração 207

IV.5.1 – O audiovisual no contexto do do it yourself 211

IV.5.2 – O circuito fechado e a imagem política do vídeo 213

Parte V- Do vídeo à la carte às vídeo-instalações

V.1 – Vídeo-instalação: corpo e palco 217

V.1.1 – O dispositivo (da mise-en-scène à mise-on-display) 223

V.2 – Wagner e a modernidade do espectador 230

V.2.1 – Ecrã duplo: o espectador observador 233

V.2.2 – O espectador observa-se a si próprio 236

V.3 – A natureza “háptica” do espaço da vídeo-instalação 239

V.3.1 – White Cube, Black Box: espaço claro, espaço escuro 242

V.4 – A vídeo-instalação e a performance 246

V.4.1– Mind/Body – o espectador perfomático 251

V.5 – Vocação narcisista, espelho e corpo 255

V.5.1 – Do narcisismo estático ao dinamismo de Bruce Nauman 258

V.6 – Novas narrativas: o quotidiano em Bill Viola 261

V.6.1 – Feedback 264

VI. – Conclusão 268

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Introdução

O título Ecrã Duplo. A Subjectividade Espacial do Espectador na Imagem em

Movimento Instalada, escolhido para a presente investigação, aponta para a pertença da

vídeo-instalação à diversidade que caracteriza o território plástico da actualidade, bem como para o papel da subjectividade espacial do espectador na sua activação.

1. Tema

Nos últimos 40 anos, o trabalho artístico realizado com recurso à imagem em movimento tornou-se uma prática comum no seio das artes plásticas. É inconcebível pensar a diversidade que caracteriza o panorama contemporâneo das artes plásticas, sem considerar a proliferação de propostas artísticas que cruzam este domínio, traduzindo-se num significativo conjunto de categorias e subcategorias a ele associadas. O tema da tese desenvolve-se, por isso, na procura de fundamentos que nos levam a equacionar não apenas a relação particular da vídeo-instalação com o contexto artístico em geral mas, sobretudo, o paradigma gerado em torno da chamada “Revolução Vídeo”, que parece assim esgotar-se num equívoco que tem atravessado a segunda metade do séc. XX: o de se pensar o vídeo como uma categoria artística autónoma, ao invés de considerar a sua pertinência enquanto parte integrante de um conceito mais abrangente que é o da imagem em movimento instalada. A investigação propõe uma abordagem que decorre de uma perspectiva muito concreta que tenta identificar e questionar o modo como foi construído, historicamente, o lugar que a imagem em movimento ocupa no contexto das artes plásticas. Ou seja, a formulação de uma hipótese que tenta identificar um modo de ver construído a partir da própria produção artística – e que é assim dirigido à compreensão do acontecimento plástico que se manifesta através da imagem em movimento instalada. Neste sentido, adoptamos duas orientações que decorrem da especificidade do nosso objecto de estudo. A primeira refere-se à importância fundamental que a imagem em movimento ocupa na definição do dispositivo da vídeo-instalação. Deste modo, a imagem em movimento, desde o seu aparecimento até ao contexto actual, constitui-se como o elemento-chave de parte significativa das pesquisas que se foram efectuando no interior do panorama artístico em geral, com particular incidência na sua relação com as artes plásticas. Não se pode, por isso, minorar o impacto que esta modalidade específica da imagem desempenha em todo o processo, nomeadamente a sua contribuição decisiva para

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a implementação de outras categorias artísticas, como é o caso particular do cinema, relacionando assim os media filme e vídeo, apesar das distinções que os caracterizam, e contribuindo, dessa forma, para um profícuo diálogo entre as artes plásticas e o cinema, que se tornou uma questão central para a presente investigação. Neste plano, a imagem em movimento é o denominador comum, capaz de exercer, no campo do cinema e das artes plásticas, um saudável confronto entre dois conceitos: a mise-en-scène, presente no cinema refere-se a tudo que aparece diante da câmara de filmar: composição, décors, personagens, etc.) cede agora lugar à mise-on-display das imagens em movimento instaladas, através do “desnudar” do aparato tecnológico, umas vezes incorporado e visível na própria construção das obras, outras vezes dissimulado. Neste caso, temos uma relação de grande proximidade entre as diversas práticas artísticas que se podem considerar próximas do domínio das artes plásticas, em particular da pintura, da escultura, da instalação ou da performance.

A segunda orientação da investigação desenvolve-se em torno de uma das questões mais difíceis de esclarecer, e que está na génese do aparecimento da vídeo-instalação: o espectador. Sem dúvida, a tentativa de identificação de um espectador capaz de se autonomizar face aos dispositivos de apresentação do cinema ou das artes plásticas, tendo como ponto de partida um modelo multi-sensorial, no qual a percepção deixa de privilegiar a visão para potenciar a diversidade sensorial do corpo. O espectador contemporâneo passa a ser entendido numa perspectiva activa, criativa e participativa e, por isso, muito identificado com o contexto artístico vigente. Assim, partindo deste pressuposto, a vídeo-instalação procura enfatizar a importância do corpo do espectador, transformando-o num interface privilegiado com a imagem em movimento instalada. Condição que é promovida por uma efectiva mobilidade entre o corpo do espectador e o tempo inscrito na imagem, permitindo ainda ensaiar a noção de “duplo ecrã”. A imagem em movimento instalada em conjunto com o corpo do espectador, constitui um sintoma da duplicidade que a passa a “habitar”.1 Ou a habitá-lo?

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A este respeito, Edmundo Cordeiro propõe uma relação íntima entre imagem em movimento e o dispositivo da Pintura (2004), uma relação protagonizada pelo corpo (espectador) que na proximidade da imagem em movimento cruza a experienciação do seu tempo com o tempo inscrito na própria imagem, da qual resulta uma intersecção entre o tempo do espectador e o tempo da imagem, associando à imagem a ideia de “duplo ecrã”: «E é assim que Agamben, por exemplo, pode falar na nossa relação à Pintura – depois do cinema – considerando as pinturas como “fotogramas carregados de movimento que provêm de um filme que nos falta”» (2004: 77). A imagem em movimento instalada é pois o resultado de uma duplicidade que “habita” a imagem, dependendo para isso de um corpo.

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2- Questão central

A questão que se pretende aferir não reside apenas no facto de tentarmos perceber a génese das imagens em movimento no âmbito das artes plásticas, ou mesmo no que diz respeito ao cruzamento da(s) linguagen(s) do cinema na construção dos trabalhos realizados pelos artistas plásticos com recurso ao medium vídeo. Reside também na enfatização dos mecanismos inerentes à produção de significado presente na “imagem em movimento quando instalada”, onde a figura do espectador se revela central como agente activo, contribuindo para que a vídeo-instalação seja entendida como categoria singular detentora de uma identidade própria.

Os anos 60 do séc. XX ficaram irremediavelmente conotados com a produção em larga escala de trabalhos artísticos com recurso à imagem em movimento. Neste sentido, podemos afirmar que o panorama contemporâneo é reflexo dessa situação, em que se constata o desenvolvimento e a aplicação de práticas e de estratégias que foram capazes de operar, em larga escala, uma transformação radical no próprio panorama artístico. Torna-se evidente que, pouco a pouco, a imagem em movimento se foi apropriando de todos os lugares, trocando as convencionais salas de cinema pelas galerias de arte. Desse modo, reclamou para si mesma uma ampla onda cinemática que, do cinema à televisão, passando pela vídeo-instalação, foi dominando, de forma decisiva, parte significativa do contexto artístico. O cinema, as artes plásticas, o filme e o vídeo surgem naturalmente como foco privilegiado da presente investigação pois, apesar de se constituírem a partir de um complexo mosaico, onde tomam lugar realidades distintas, eles mantêm um denominador comum – a imagem em movimento.

No entanto, é preciso chamar a atenção para a complexidade que a própria designação imagem em movimento comporta. Ou seja, esta modalidade específica da imagem, quando aplicada às diversas categorias artísticas que a utilizam, revela-se portadora de um determinado grau de imprecisão. Situação que se afigura tanto ou mais verdadeira quanto a apresentação das imagens se afasta daquilo que estamos habituados a ver, por exemplo na imagem fílmica, ou mesmo na imagem televisiva – imagens de grande eficácia na representação do movimento – onde naturalmente se enquadra o cinema e parte do seu encanto. Mas também sabemos que, no contexto generalizado da utilização da imagem em movimento, estamos a falar de toda e qualquer actividade artística que envolva trabalhos com imagens projectadas, onde o movimento não é só induzido mecanicamente (temporalizado), mas decorrente de outros factores muito associados à lógica, por

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exemplo, da pintura ou da escultura. A imagem em movimento está presente numa diversidade de meios como o filme, os diapositivos (projecções de imagens fixas), o vídeo ou os jogos de luz.

3. Objectivos

É o cinema que, num primeiro momento, vai tirar partido das enormes possibilidades técnicas da imagem em movimento, tendo em conta que a sua exploração comporta inúmeras possibilidades expressivas. Assim, é fundamental relacionar a dinâmica presente na formulação do dispositivo do cinema com a própria lógica da imagem em movimento instalada no âmbito das artes plásticas.

Autores como Walter Benjamim, Rudolf Arnheim ou Erwin Panofsky facultaram as primeiras análises formais e conceptuais sobre as “mecânicas” que o cinema, entendido como uma nova forma de representar a realidade, propôs, a par da sua posterior transformação em categoria artística2. Estas testemunham, desde muito cedo, a enorme diversidade e complexidade que este dispositivo, agora consolidado como arte, viria a introduzir no meio da produção artística. Não se resumindo apenas à questão da evolução tecnológica, tem em conta, acima de tudo, as potencialidades do presente, na manipulação da imagem em movimento. O próprio contexto modernista3, nas suas múltiplas tendências,

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Benjamin (1994) considerava o cinema como uma arte da era mecânica mas cuja natureza anunciava, desde logo, uma lógica conceptual e formal ao nível do uso e manipulação das recentes imagens em movimento. Por sua vez, Rudolf Arnheim (1989), diz-nos que o cinema é o sucedâneo do teatro e o pai da televisão, desenvolvendo as primeiras teorias que abordam o cinema como uma arte e sublinhando as suas peculiares características. A argumentação de Arnheim baseia-se nas ideias futuristas e dadaístas sobre o próprio cinema e as suas potencialidades. Neste sentido, deve-se ter em conta o pensamento de Jean Epstein, nomeadamente, na detecção do carácter polisensorial proporcionado por um medium fabuloso capaz de explorar, em simultâneo, muitos materiais como a luz, o som ou o texto, ampliando, desse modo, a nossa percepção da realidade. O cinema, “a máquina do Diabo”, era capaz de criar uma realidade visual que estava muito para além das nossas fronteiras espácio-temporais. Aliás, realidade que Paul Wegener percebeu de imediato: o dispositivo cinematográfico produz a partir da sua condição maquínica.

Erwin Panofsky (1934) elege o cinema como o grande elo transformador da cultura contemporânea, pois contém os “ingredientes” próprios em termos de “gosto”, de “comportamento”, de “moda”, de “consumo” e de “identificação social”.

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É curiosa a forma como, no início do séc. XX, as vanguardas russas, o dadaísmo e o surrealismo, numa fase posterior, começaram por utilizar a imagem em movimento. Nalgumas obras, como Anemic Cinema de Marcel Duchamp (1925-26) ou L'Étoile de Mer (1928), de Man Ray é possível encontrar práticas que se tornaram emblemáticas para o desenvolvimento de obras de artistas plásticos com recurso à imagem em movimento. O cinema das vanguardas históricas procurou através deste meio um modelo próprio afecto à representação, menos contemplativo, menos introspectivo e, por isso, mais destabilizador, como nos diz Benjamin (1994). Por exemplo, a relação do dadaísmo com o cinema deu origem a um “deslize” caleidoscópico de imagens, imagens em “velocidade” e já o sem o tempo necessário para as percepcionar de forma convencional. De certa forma, os trabalhos apresentaram-se mais como uma continuação dos enunciados modernistas presentes na pintura do que no cinema propriamente. Basta, para isso, ter em conta os trabalhos de Viking Eggeling ou de Hans Richter. E o mesmo para o cubismo ou o futurismo – a

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foi, aliás, a prova que o uso da imagem em movimento se foi instalando progressivamente, com distintos conteúdos e expressões formais/conceptuais, ainda que os trabalhos produzidos neste contexto, na sua generalidade, estivessem directamente filiados nas condições (sobretudo de ordem sociocultural) que caracterizaram o aparecimento do cinema. Questões como a montagem, o raccord, campo e profundidade de campo viriam a induzir uma lógica espácio-temporal própria, ao nível das imagens, com resultados efectivos nos próprios procedimentos artísticos, verificados em muitos domínios, com especial preponderância para a estreita relação e interdependência entre o objecto artístico e os espectadores.

Curiosamente, quando recuamos aos primórdios do contexto do aparecimento do cinema, percebemos que o legado dos pioneiros foi, muitas vezes, formado a partir de acontecimentos ocasionais ou mesmo coincidências, contribuições importantíssimas para a compreensão e a “formação” dos processos que seriam decisivos para, por exemplo, a implementação de um sistema cinematográfico.4 Estes acasos foram, por isso, fulcrais para se poder lidar com esta modalidade específica da imagem e, através dela, se enveredar pela aventura da produção de sentido, como profetizou Riciotto Canuto (1919). Desde as contribuições de Émille Reynaud e do seu Teatro Óptico, passando pelo importante contributo de Eadweard Muybridge até ao Cinematógrafo dos irmãos Lumière, observamos a existência de uma procura alicerçada em múltiplas revoluções que conjugam desenvolvimentos tecnológicos e científicos com conhecimentos em torno do funcionamento da visão – como o princípio de Joseph Plateau5 que nos conduziu à ideia de

possibilidade de conferir à pintura movimento, que decorria da simulação das possibilidades técnicas que a máquina detinha.

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Basta, a este propósito, pensar na relação entre a avaria da máquina de Méliès, a consciência do corte e do efeito de sobre-exposição daí resultante, ou no travelling “acidentalmente” descoberto por Albert Promio (um dos operadores de câmara dos Irmãos Lumière que, numa viagem a Veneza, filmou todo o esplendor da cidade, através das imagens obtidas por um câmara colocada numa gôndola deslizando ao longo das fachadas, procedimento posteriormente adoptado por Edwin Porter), todas elas ocorrências fundamentais para se iniciar uma gramática e a possibilidade de se estabelecer um particular código narrativo a partir das próprias imagens em movimento.

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De realçar os estudos levados a cabo pelo psicólogo Hugo Munsterberg (1863-1916), (The Photoplay:A

Psychological Study, 1916). Munsterberg foi também responsável pela compreensão do fenómeno da ilusão

do movimento. O denominado efeito phi (para além do efeito da persistência da visão, que se baseia na capacidade da retina reter uma imagem algum tempo após o seu desaparecimento, permitindo, desse modo, o reconhecimento de uma imagem para a outra), revela um outro nível de percepção que se efectua nos domínios da memória e com intervenção da imaginação. Duas imagens fixas, por exemplo, ao apresentarem-se na retina a partir da diferença de pequenos intervalos de tempo são percebidas como apresentarem-se fosapresentarem-se uma única imagem a deslocar-se de um ponto para o outro. Este efeito é pois decisivo para as questões afectas à montagem, nomeadamente na mudança de planos.

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cinema.

Nesta análise, também não podemos esquecer as contribuições decisivas dos artistas do Modernismo, em particular o movimento futurista italiano, a partir de Bruno Corra, bem como da pintura e da escultura de Balla e Boccioni – ou ainda a “vital” importância que Marinetti atribui ao cinema, enquanto dispositivo gerador de uma arte total, a par dos dispositivos cénicos de Prampolini, Moholy-Nagy e Schlemmer.

Foi, de facto, com o Tempo do Cinematógrafo – como Bresson preferiu designar o período histórico que vai desde os irmãos Lumière, Méliès e Porter até à Primeira Guerra Mundial, que a imagem em movimento fica de forma incontornável ligada ao destino do cinema. Mas, se no início do cinema, a mudez narrativa se constituía como factor emblemático, presente na enunciação da sequência das suas imagens, é no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial que ocorrerá uma profunda mudança que o irá conduzir e torná-lo refém – nomeadamente a partir do incontornável contributo de D.W.Griffith – da instauração de um código próprio, do aparecimento da gramática cinematográfica e dos seus próprios procedimentos operativos (a par de processos que rejeitam, quase como destino incontornável, qualquer aproximação à captação do real, do simulacro naturalista). Não por acaso, este processo ocorre em simultâneo com uma atitude cada vez mais forte de rejeição a essa capacidade e expressão do cinema, potenciando um registo meramente mecânico.

É neste quadro que se torna necessário estabelecer uma distinção que visa a organização das duas formas de trabalhar a imagem em movimento (presentes desde o início), distinção que tende a identificar factores de separação entre os dispositivos que a utilizam. Se, por um lado, o espaço da imagem em movimento surge naturalmente integrado no contexto cinematográfico, verifica-se contudo a necessidade de uma releitura das obras que durante todo o séc. XX foram produzidas com recurso à imagem em movimento, procurando uma lógica absolutamente distinta daquela que esteve presente no rumo iniciado pelo cinema. Devemos, para o efeito, ter presente a história da própria imagem em movimento que atravessou todo um processo de teor experimental, onde a própria estabilização do medium cinema esteve em causa. Foram, essencialmente, as três primeiras décadas do séc. XX responsáveis por esse período “laboratorial”, onde as possibilidades expressivas desta imagem específica foram sendo ensaiadas (período contaminado pelas experiências efectuadas pelo cinema das vanguardas históricas e pelo cinema de vanguarda). Aqui, deve-se realçar o inquestionável contributo dos

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artistas/realizadores pioneiros, sobretudo americanos, russos, franceses, alemães, italianos e ingleses. Entre os mais significativos, encontram-se autores diversos e com objectivos claramente distintos: George Méliès, Edwin Porter, D.W. Griffith, Dziga Vertov, Sergei Eisenstein, Viking Eggeling, Hans Richter ou Oskar Fischinger. Estes autores vieram marcar profundamente a imagem em movimento no percurso que esta assumiu até ao momento da implementação definitiva do par imagem-som e, consequentemente, da formatação definitiva do cinema enquanto medium. A influência das obras destes autores deixaria um poderoso legado com consequências efectivas para o futuro da imagem em movimento no contexto da produção cinematográfica, tanto na vertente dita clássica como na vanguardista presente na segunda metade do séc. XX, onde autores como Luís Buñuel, Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Andrei Tarkovsky, Orson Welles, Jean Luc-Godard, Alain Resnais, Francesco Rosi, Carlos Saura ou François Truffaut procuraram uma produção para além da preponderância do espanto retiniano.

Desta perspectiva se pode inferir que aquilo que parece imperar nesta distinção (entre as vias clássica e vanguardista) é a própria condição temporal – intrínseca à produção de um tipo de imagem em movimento capaz de propor entendimentos distintos sobre o assunto. Por um lado, temos as imagens em movimento percepcionadas através de um dispositivo que inclui um ecrã branco bidimensional, com cadeiras dispostas em anfiteatro na penumbra, enquadrado por um ritual próprio. Por outro, a presença de uma realidade que entra em nítido contraste com a primeira, onde as imagens em movimento integram um espaço exíguo, “informal”, centrado na mobilidade dos corpos individualizados dos espectadores – apesar do fascínio pelo movimento das imagens (motion) se manter inalterado. Referimo-nos a uma diferença basilar que pode ser identificada tanto ao nível dos propósitos das obras como ao nível da relação com o espectador, ou seja, da concepção de um dispositivo centrado no seu corpo que está presente na génese da vídeo-instalação. Este dispositivo centra-se na intersecção do espaço com a imagem em movimento, capaz de potenciar uma experiência dinâmica de ambos, apelando para uma percepção háptica por parte do espectador.

Para podermos entender esta questão devemos revisitar as noções de mise-en-scène e de mise-en-cadre6 presentes no cinema – em nítida comparação com a noção de

mise-on-display presente nas imagens instaladas. Este último caso, a mise-on-mise-on-display, aponta para

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Se no conceito de mise-en-scène temos essencialmente uma inter-relação entre tudo o que se passa no ecrã, na mise-en-cadre o que está em jogo é sobretudo um problema de composição pictórica entre as imagens, entendidas como quadros que interagem de forma mútua, em termos de sequência, na própria montagem.

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práticas artísticas presentes, por exemplo, no campo da pintura, da colagem, ou da foto-montagem. Interessa-nos, por este motivo, debater a produção de trabalhos, onde a imagem é instalada com interessantes inferências de outros géneros e técnicas que, desde a fotografia ao documentário, têm vindo a ser uma estratégia recorrente de muitos autores.

Formular esta problematização em moldes que proponham ultrapassar a tradicional janela (e respectivo enquadramento) – que Arnheim e Bazin nos descrevem através da transferência de processos ligados aos modelos perspécticos usados na arte do período clássico (e, em particular, na experiência temporal da Pintura) e agora “transformados” pelas máquinas do cinema em profundidade de campo – permite-nos interpelar as imagens em movimento “instaladas” de forma diferente, relacionando-as com outras zonas de produção de sentido.

É sobretudo nesta perspectiva que Deleuze analisa os processos semióticos, identificando falhas no que diz respeito a uma lógica empregue no tratamento das imagens e, em particular, daquelas que são próprias do cinema e da imagem fílmica, as quais têm uma natureza completamente diferente daquela que é própria da linguagem (2004). Deleuze, referindo-se a Peirce (1974),7 desenvolve a teoria de o mundo, em termos puramente semióticos, ser entendido através de uma grande variedade de fenómenos sensíveis, sendo a sua totalidade, por isso, impossível de delimitar. Este aspecto (empregue na representação), muito vincado na experienciação, está também presente na diversidade potencial da imagem em movimento, revelando lacunas que são estruturantes dos processos semióticos aplicados à descodificação da representação, onde muitos factores não são tidos em conta, como é o caso do factor temporal – paradigma imagem-tempo (1985) – necessariamente implicado nas múltiplas consequências ao nível da compreensão da imagem em movimento, dado relevante para a compreensão dos novos regimes perceptíveis presentes na vídeo-instalação.

Assim, na produção de trabalhos artísticos com recurso à imagem em movimento, dir-se-ia que o processo dominante é aquele que se relaciona com a substituição da produção de mimesis ou semelhança, quando seria desejável que as imagens instaladas se aproximassem da escultura ou da pintura, por exemplo, pois já não conta a representação da realidade da imagem, entendida como própria da recepção da imagem cinematográfica

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Para Peirce, aquilo que podemos constatar como conhecimento do mundo real resulta apenas das suas representações. Nesse sentido, a representação, segundo o autor, está sempre refém de um conjunto de inferências subordinadas à sua apreensão. Para Peirce estes factores não podem ser dissociados da experienciação individual.

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mas, justamente, a realidade da representação da imagem: a apresentação das “costas da imagem”, a deslocação da visão, a periferia do enquadramento em desfavor do imobilismo espacial do espectador. Nesta operação, visa-se, portanto, uma lógica criativa que parece estender-se aos assuntos do mundo e, dentro deles, sobrepor-se, de forma clara, à tendência duplicadora do próprio mundo, tanto do ponto de vista analítico como de uma pura duplicidade retínico-matérica8.

Na sequência do que aqui foi exposto torna-se necessário esclarecer de que forma se distingue a imagem em movimento presente no contexto do cinema daquela que é trabalhada a partir dos interesses dos artistas plásticos. Nomeadamente, separando as imagens que se recebem “em movimento” daquelas em que o movimento decorre, através de influências várias e complexas, exactamente na medida dos procedimentos operativos que estão presentes aquando da instalação da imagem. Por outras palavras, quando observamos instalações que incluem a imagem em movimento, estamos perante algo estranho, no sentido em que o propósito da obra não se disponibiliza (não nos é imposto), antes é sugerido – de modo a ficar muito dependente da própria experienciação do sujeito. Ou seja, o dispositivo, apesar de lá estar distribuído por máquinas de projecção, luzes, objectos estruturantes próprios da arquitectura (e o espectador “flanando” por entre apelos vários), na realidade, não se impõe. Todavia, a percepção das imagens em movimento inseridas na obra é transferida para o dispositivo instalador que assim potencia a produção de significado, ficando o artista e o espectador com o diferimento da experiência. As imagens em movimento, quando instaladas, não são, por isso, conducentes à passividade, nem são, em si mesmas, uma reacção às imagens do cinema. Contudo, nos antípodas desta realidade da imagem em movimento instalada, isto é, no dispositivo do cinema (e no interior da sua orgânica) também podemos encontrar uma produção e uma manipulação das imagens fora da sequência da tradicional imagem-percepção, onde o acontecimento toma lugar sem a preponderância do espanto retiniano. É isto que se verifica quando revisitamos obras de cineastas9 e de artistas como Harum Faroki, Jesper Just, Pier Paolo Pasolini, Boris Gerrets, Bill Seaman ou Jean-Luc Godard, por exemplo, em cujo trabalho

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O denominado «efeito-cinema» de Baudry (1978).

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O cinema produzido por certos autores “marginais” à lógica do cinema comercial, apesar de se manter no campo operativo do dispositivo que o comanda, propõe-nos outras abordagens, outras intenções que, necessariamente, conferem a este tipo de cinema uma outra atitude quer em relação às linguagens próprias do meio quer, também, no que diz respeito aos procedimentos operativos. Aliás, a ideia de cineasta ao invés de director/realizador não é indiferente pois embora os termos se refiram ao mesmo, implicam uma aproximação diferente ao fenómeno.

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podemos identificar muitas aproximações (ou mesmo processos de simultaneidade) entre os dois dispositivos.

A ideia de cinema é complexa e se tivermos em conta os acontecimentos que precederam no seu aparecimento e que o formataram, poderemos então esclarecer algumas questões que, como afirma Hal Foster, estão na génese de um outro uso das imagens, fora do tempo do cinema, mas que se encontram, simultaneamente, dentro dele. Este desdobramento, que os artistas plásticos10 introduziram na manipulação e produção da imagem em movimento, com outra ordem de intenção, é, pois, parte do problema: a consciência, desde muito cedo, de que a percepção do movimento da imagem é accionada num espaço e num tempo onde o corpo do espectador se espacializa e age sobre ele. Neste sentido, os artistas plásticos trabalham directamente sobre a matéria, passando a imagem em movimento a ser parte decisiva do dispositivo 11 (a natureza da obra) – o que a implica (a obra) na associação de diversos meios, ajudando (a imagem) a sobreviver para lá do seu artifício. A simples imagem-percepção,12 próxima do cinema dito clássico (onde está presente a ideia de que a acção do sujeito se esgota no próprio movimento entretanto iniciado) é aqui posta em causa, pois nas obras plásticas onde a imagem em movimento é instalada a produção de significado não decorre, como referimos, simplesmente da imagem em movimento. Será então necessário abordar todo o processo que foi, em termos operativos, realizado pelos artistas com o intuito de analisar, a par dos propósitos e sentidos que acompanharam a feitura dos “objectos” propriamente ditos, as diversas estratégias que foram sendo experimentadas/testadas. Na presente investigação, as obras (sobretudo aquelas que fazem parte do universo da vídeo-instalação) são um instrumento de enorme utilidade, na medida em que nos introduzem a imagem em movimento, muito

10

É preciso não esquecer que o cinema começou por ser uma invenção que se estabilizou por entre inúmeros acontecimentos técnicos, estéticos e éticos, onde os artistas plásticos tiveram um papel fundamental. Durante o século XIX, os temas trabalhados pelas práticas fotográficas e da pintura ainda estavam, de certa forma, subjugados às concepções estéticas, por um lado, do “pitoresco” e, por outro, do “sublime”. Deste modo, a fotografia começou por importar os elementos plásticos das práticas da pintura subvertendo-os, de seguida, através da construção de um novo modelo de representação baseado nas suas especificidades técnicas. O cinema e a fotografia, pela divisão que imprimiram à produção e difusão das imagens foram, sem dúvida, fundamentais para o aparecimento e revelação das formas abstractas. Esta manipulação de “mini-imagens” traduziu-se na possibilidade de novos enquadramentos e, com eles, na expansão dos limites perceptivos do espaço (Lucie-Smith, 1996).

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Dentro das práticas artísticas contemporâneas encontramos um conjunto significativo de trabalhos que usam a imagem instalada, sendo que o propósito da obra não se centra no fascínio que a todos nós provoca a dispersão do cone de luz, presente, por exemplo, na imagem projectada.

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Deleuze, reportando-se a Peirce, aponta uma diferença de grau entre aquilo que designa imagem-movimento e imagem-percepção. A imagem-imagem-movimento refere-se de forma inequívoca ao tempo do cinema dito clássico, onde as imagens projectadas se exprimem num todo que muda em função de uma métrica. Por seu lado, a imagem percepção não pode ser simplesmente reduzida simplesmente a uma métrica.

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para além dos procedimentos do fazer e do entendimento artístico convencionais, como uma entidade inserida numa natureza em permanente questionamento, algo que surge entre o inacabado e o não-amado (muitas vezes expondo-se ali a inexorável nudez dos processos técnicos).

Para a compreensão desta problemática devemos também realçar a importância do contexto cultural que se estabeleceu pelos finais da Segunda Guerra Mundial e que veio enfatizar, de forma radical, um conjunto de questões do foro social e artístico, fundamentais para os artistas do pós-guerra, quando, nomeadamente, a arte que fora produzida no contexto dos cânones modernistas havia perdido a sua vitalidade original. A arte devia ser a contrapartida do quotidiano, devendo este encontrar-se, “disponibilizar-se”, no seio da própria arte. Neste sentido, a introdução da imagem em movimento no trabalho artístico na década de 60 do séc. XX – onde as questões tecnológicas e económicas foram determinantes para a estabilização e democratização tanto do filme/celulóide como mais tarde do vídeo electrónico/digital – surge como imagem de marca desse período, uma arma eficaz adaptada às novas necessidades emergentes na década em questão. Obviamente que, através destes media, os artistas puderam ter, também, a oportunidade de questionar as tradicionais noções da percepção, nomeadamente a forma como a imagem nos é dada a ver e a sua exploração para além dos limites formais a partir das condições presentes na sua percepção. Assim, partimos da tentativa de definição da ideia de imagem em movimento, na sua relação com as questões ligadas à percepção do espaço, do movimento, etc.. Ou seja, em consonância com as preocupações que emergiram da década de 60, onde a imagem em movimento passou a ser tratada como um elemento singular, uma imagem dividida entre diversos factores que povoam o dispositivo artístico (espaço, corpo do espectador, objectos pontuais, adereços), um fragmento da imensidão de outras imagens que ali se vão construindo e desenhando. Dispositivo que parece ser sustentado por uma ideia de tempo que não é experimentada sequencialmente. O fascínio dos artistas plásticos pelas imagens em movimento parece ter-se deslocado para esta zona de um tempo-memória que está, definitivamente, mais perto da natureza da pintura ou da escultura do que do cinema dito clássico.

Imagem, corpo e espaço são pois os conceitos operativos que, neste contexto, sustentam a noção de imagem em movimento instalada – e a consequente emancipação da imagem-percepção. Assim, a imagem instalada procura suspender a imagem em função do corpo que habita um determinado espaço propício a uma experiência pessoal, portadora de

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memórias e de lembranças, sujeitando esse corpo (do espectador) a novas condições e aventuras perceptivas que possibilitam a expansão da própria subjectividade espacial.

As questões relativas ao medium vídeo são passíveis de se organizar em termos de uma lógica diacrónica devido ao facto deste suporte ser ainda recente, o que nos permite um acesso quase total aos arquivos da sua produção. Procuramos, neste trabalho, descortinar as grandes tendências que parecem ocupar o seu espaço e que estão directamente relacionadas com o uso do medium em estado puro – e não só confinado às linguagens do cinema ou ao contexto das artes plásticas. É preciso, pois, analisar as principais tendências das práticas do vídeo, observar com acuidade a sua relação com o mundo, bem como a sua influência junto das sucessivas gerações. Nesta análise, não esquecemos as contribuições dos artistas que procuraram utilizar a televisão como medium artístico, dada a sua natureza técnica (onde estiveram presentes as indústrias da televisão que, a par dos seus formatos magnéticos pioneiros, conseguiam produzir imagens, trabalhá-las quase em tempo real e editá-las de seguida).

Com efeito, quando o vídeo começou a ser integrado nas práticas artísticas, desenvolveu-se por dois conteúdos diferentes: um de cariz claramente anti-formato televisivo e outro que, justamente, fazia o aporte do vídeo com o media televisivo. Quando olhamos para o passado recente percebemos que a televisão, enquanto medium, foi susceptível de ser integrada nas práticas da arte contemporânea, através de dois processos que se completavam: por um lado, o próprio mecanismo em si como efeito cénico e plástico e, por outro, os conteúdos que passaram a ser emitidos pelas imagens dos televisores.

Deste modo, as obras produzidas com o vídeo parecem revelar duas grandes tendências: a primeira, apoiava-se, na documentação da vida do artista, através de auto-representações e de registos de performances; a segunda advogava o regresso às figurações do corpo, que passam, deste modo, a ser novamente temáticas da representação. Assim, colocamos a hipótese de que estas duas tendências se irão materializar nos dispositivos e regimes perceptivos da vídeo-instalação. Porquanto a natureza do vídeo electrónico, ao entrar em cena, desencadeou inúmeras possibilidades que se manifestaram em subtilezas na manipulação das imagens. Por exemplo, se por um lado ele permitiu o regresso à figuração (tout-court) no domínio artístico, por outro, também não deixa de ser verdade que se viria a constituir como uma ferramenta capaz de produzir imagens eficazes fora do campo artístico, onde o seu pendor tecnológico se manifestou (imagens exclusivamente

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produzidas a partir da sua especificidade tecnológica, imagens sintéticas).

Esta explosão do mundo da imagem em movimento, que se manifesta na vídeo-instalação, parece ter no papel do sujeito a chave do seu entendimento, pois este transforma-se, ele próprio, numa imagem em movimento.

4. Estrutura

A presente investigação estrutura-se em torno de cinco partes que se dividem, por sua vez, em capítulos e subcapítulos.

Na primeira e segunda parte, respectivamente «Imagem e Percepção» e «Do Visível ao Visual», procuramos definir o conceito de imagem a partir das condicionantes presentes na percepção das imagens, tanto aquelas que são de carácter fisiológico, como as subjacentes aos “modos de ver” determinados pelos regimes ópticos predominantes numa determinada cultura. Ou seja, partimos da tentativa de definição da ideia de imagem para a sua relação com as questões ligadas à percepção da luz, da cor, do espaço e do movimento, introduzindo as alterações determinadas pela fotografia.

Na terceira parte, «A Ideia de Cinema», argumentamos que o cinema se veio constituir como paradigma do aparecimento da imagem em movimento e das questões relacionadas com a sua natureza e que, tanto por concordância, como por dissonância, se encontram ancoradas à gramática própria deste meio. Assim, torna-se necessário delimitar e analisar o campo do cinema por forma a poder efectuar a sua distinção da imagem instalada. Para o efeito, dividimos a nossa análise em duas vertentes distintas. A primeira, diz respeito à caracterização do dispositivo do cinema, prestando uma atenção especial às manifestações do cinema nas vanguardas artísticas do início do séc. XX. Já a segunda entende o cinema na sua relação com a produção cinematográfica que se veio a consolidar no período histórico subsequente como uma arte de síntese pois, como afirma Peter Wollen (1984:5), esta arte «(…) conjuga dialecticamente outras artes: a pintura, a literatura, o teatro, etc.) com uma linguagem específica», possibilitando, deste modo, o estudo de artistas/realizadores que produzem um cinema com importantes inflexões no mundo da arte contemporânea, com particular incidência no contexto da vídeo-instalação. Exploramos, neste caso, a ideia de filme enquanto conceito que percorre tanto o campo do cinema como o das artes plásticas.

Nas quarta e quinta partes, «Da imagem em movimento à revolução vídeo» e «Do vídeo à la carte às vídeo-instalações», procuramos delimitar o campo do vídeo, quer como

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suporte, quer como conceito, remetendo a análise para os modos da sua utilização pelos artistas, particularmente a partir da década de 60 do século passado. Neste caso, torna-se pertinente considerar a existência de uma “linguagem” afecta ao vídeo cuja existência, uma vez confirmada, poderá implicar um regime discursivo autónomo com particular relevância no campo das artes plásticas. Aqui incidimos a nossa análise nas temáticas e características formais que se encontram na génese da utilização deste suporte, não esquecendo a importância que a televisão assumiu no seu desenvolvimento. Abordamos também o papel do espectador a partir das condições de recepção, sendo estas determinantes na produção de significado e sentido das imagens elas mesmas. Deste ponto de vista, o espectador assume-se como uma entidade a partir da qual se efectua, na prática, a distinção fundamental entre o dispositivo informe presente na imagem instalada e o dispositivo estabilizado do cinema.

Por último, procuramos aferir, a partir das obras produzidas por artistas plásticos, quais as características particulares que permitem considerar a vídeo-instalação como categoria artística. Todas estas características – o duplo ecrã, o mise-on-display, o contexto, o carácter multimédia, entre outras – podem, no nosso ponto de vista, ser sintetizadas no triângulo constituído pela articulação entre corpo, espaço e imagem, centrado, por sua vez, na figura do espectador, tornando absolutamente singular o acontecimento da vídeo-instalação no âmbito da produção artística contemporânea.

5. Metodologia

Relativamente às ferramentas utilizadas na investigação, em termos metodológicos e no que respeita aos procedimentos da consolidação do presente trabalho, destacamos a pesquisa bibliográfica; a leitura e visualização de catálogos de artistas; o contacto com a obra de artistas, em exposições e também o visionamento de importantes obras cinematográficas; a informação útil disponível na Internet. Relativamente às bibliotecas a frequentar, distinguimos: a Biblioteca Nacional, a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, a Biblioteca da Cinemateca de Lisboa, a Biblioteca da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, a Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa e a Biblioteca do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Na realização deste trabalho foram efectuadas visitas de estudo a museus, galerias e bibliotecas fora do contexto nacional.

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nesta área, facto que me permitiu realizar a presente investigação a partir de dentro da própria génese da problemática em questão. Foram justamente os problemas relacionadas com esta área de trabalho que me possibilitaram o impulso (e a coragem) necessário para enfrentar um problema ainda pouco estudado, nos termos aqui colocados. Foi também importante toda a investigação fora do contexto académico, onde o contacto com artistas e outros agentes ligados a inúmeras áreas do saber se revelaram motivadoras para o rumo da investigação, possibilitando, à volta das questões aqui abordadas, interessantes contextos de discussão. De realçar a minha prática pedagógica directamente envolvida, no contexto do ensino artístico, que resultou num profícuo aporte da experiência pedagógica – através de colegas e alunos.

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Parte I – Imagem e Percepção

I.1 – A Imagem

Encontrar uma definição de imagem é uma tarefa difícil e ambiciosa, pois sabemos que, à partida, abarca um leque variado de significados, por vezes quase contraditórios. Neste sentido, o que pode haver em comum entre um filme e uma radiografia, uma pintura e um mural? Curiosamente, parece existir um consenso “surdo” entre todas estas acepções, isto é, tudo parece fazer sentido quando designamos algo em concreto: uma pintura, um mural, uma radiografia, um desenho, um graffiti, uma capa de CD, entre outros.

Neste sentido, as imagens resultam de construções culturais que se encontram em permanente actualização. No domínio da arte em geral, a noção em causa está inequivocamente ligada às representações de índole visual, algo que possui uma forma visível, ou seja, as designadas imagens visuais, tendo em conta a variedade de significados que se lhes atribuem.

Podemos entender a imagem visual como uma modalidade específica da imagem em geral, independentemente da sua natureza e do seu uso, não esquecendo, naturalmente, as diferenças e semelhanças face a outros “tipos” de imagens.

Neste contexto, a imagem em movimento possui características singulares que lhe conferem um lugar especial entre as várias modalidades da imagem; articulando-se e fazendo depender a sua especificidade dessas modalidades da imagem e seus contextos históricos – nomeadamente da pintura, da gravura, da fotografia e recentemente do vídeo. Assim, não se pode falar de imagem em movimento sem pensar em conceitos como, por exemplo, o de rectângulo pictórico. Esta relação estende-se, ainda, ao destino massificado do próprio uso das imagens. É comum, por isso, encontrarmos em muita literatura o termo “civilização da imagem” que sugere, de forma clara, o facto de vivermos num mundo hiper-povoado de imagens. Na perda de fronteira entre usos e práticas associadas às várias modalidades da imagem visual, obtemos, necessariamente, ambientes porosos, híbridos.

A palavra “imagem” tem a sua origem no encontro entre os termos Imago (latim) e

Eidos (grego). Por seu turno, Eidos é a raiz etimológica do termo idea e do verbo idein,

cuja significação se prende com “ver” ou “olhar para”, questões teorizadas por Platão. Em conexão com imagem, o fenómeno que Platão analisa não é, propriamente, o eidos nem a

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phantasma (aparição). No entanto, é certo que ídolo tem a mesma raiz que eidos (é um

diminutivo, uma pequena forma ou pequena imagem) e, por outro lado, eikôn (ícone) acentua a ideia de semelhança que existe, por exemplo, entre duas entidades. Em ícone, ídolo, phantasma, o problema ontológico é semelhante: eles não são o original, mas pretendem apresentá-lo. Apresentam o ausente, ou seja, aquilo de que são duplos, imitações, meras aparições, representações, porque são substitutos. Se quisermos, têm uma função vicária. Assim, a imagem13 ao conter em si essa posse vicária propõe (ou substitui) uma imagem em alternativa ao real. Importante é pois a possibilidade de semelhança evocada que a imagem comporta.

Em Platão, embora a imagem seja um substituto de uma realidade não física, ela só existe a partir de fenómenos que são naturais e dependem do uso dos sentidos – a imagem depende da percepção14 - «Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se estás a entender-me»15.

O original não tem de ser algo físico; uma dor, um prazer, uma alegria, uma tristeza, um desejo ou um amor também aparecem sem que no seu aparecer haja alguma dúvida acerca da sua eficácia. A tristeza não é azul (embora possa simbolicamente assim ser representada) nem a melancolia negra, nem a alegria rosa, etc. Ou seja, é este tipo de fenómenos que Platão aponta para dizer que um eidôlon, uma representação ou uma imagem não se reporta simplesmente à multiplicidade das “coisas” designadas por imagens mas, também, ao que se pode induzir a partir dessas mesmas imagens, nomeadamente aquilo que há de comum e cobre os vários particulares como sendo uma unidade. A faculdade mimética faz parte da “natureza” que a cultura usa para criar uma “outra” natureza – que participa/potencia a cópia, a imitação, a criação de modelos, a exploração das diferenças. A imagem visual tem esse poder – de representar a realidade ausente ou

13

É com Platão que encontramos primeiramente uma visão descontínua da imagem. É fundamental para percebermos a distinção de fundo entre a imagem propriamente dita e a imagem simulacro. Platão, no

Sofista, distingue uma imagem boa de uma imagem má, uma imagem positiva de uma imagem negativa. A

boa imagem (cópia) guarda a mesma proporção entre os elementos constitutivos do modelo. A má imagem (simulacro) distorce essa relação entre os elementos constitutivos do modelo, no sentido de enganar a visão.

14

Nos dois mundos idealizados por Platão (o mundo supra sensível e o mundo sensível) encontramos um elo comum – as coisas sensíveis imitam as ideias, exactamente da mesma forma que um artista imita a natureza. No entanto, as imagens na representação apenas serviam para efectuar uma verdadeira ponte para o supra-sensível. No Teeteto [151e-186e], Platão dá exemplos de imagens, referindo-se, em particular, àquelas que se tornavam acontecimentos ou fenómenos sensíveis – imagens reflectidas na água, espelhos, etc., por comparação com aquilo que designava por realidade verdadeira e “outra” que era reflectida.

15

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distante, aquela que não pode estar presente aos nossos sentidos.16

Em contrapartida, pensar em imagens – e especificamente em imagens visuais – também implica considerar os processos que permitem a sua formação e o seu entendimento, ou seja, ter presente as questões ligadas à visão e aos fenómenos da percepção.

De uma forma geral, a percepção visual, quando associada à imagem, identifica as “qualidades” observadas nos conteúdos das próprias imagens. Referimo-nos, nomeadamente, aos efeitos que essas imagens despoletam em nós. Na realidade, as percepções visuais só existem na forma de sínteses de sensações (Gibson, 1983) que são “despertadas” pelo sistema visual. Estamos a falar de operações induzidas pelo cérebro que envolvem a memória, a cognição e o desejo (Persiaux, 2007) e que resultam, claramente, da maior ou menor atenção que dedicamos a um determinado assunto em detrimento de outro. Desde que a luz encontra o olho inicia-se um processo de eleição, recorte e depuração, que depende tanto dos processos fisiológicos como das subtilezas introduzidas pelos contextos culturais e sociais, impregnando o fenómeno do olhar de forma “pulsante” (Aumont, 1989). Por outro lado, nessa relação, não pode existir uma imagem visual sem primeiro ter existido a percepção de determinado(s) objecto(s). Esta relação entre percepção e imagem sofreu um desvio importante no final do século XIX, em parte devido às correntes positivistas que, suportadas por um consistente desenvolvimento técnico e científico, passaram a considerar a imagem como “coisa” independente da percepção. Isto é, a imagem ao, ser capaz de tornar presente um objecto ausente afasta-se da “dependência da percepção”, não deriva exclusivamente dela. Quando muito, a realidade percepcionada serve como matéria para a imaginação que a recria num determinado contexto a partir da “ideia” que temos dessa mesma realidade. Assim, mesmo que a percepção seja entendida como pura criação de uma representação automática interna, ela é sempre resultante de um estímulo externo.

É, pois, no contexto de qualquer imagem visual que se assume uma dupla dimensão, diríamos crítica, nos vários domínios das artes visuais: por um lado, uma

16

Ainda que Platão analise, por exemplo, "coisas" com função de imagem e que têm uma dimensão táctil ou háptica. Por exemplo, no Sofista, a questão é posta até nos termos específicos de compreensão da verdade – as imagens podem ser acústicas. Quando nos contam histórias falsas em que acreditamos; ou quando nos dizem o que vai acontecer e não estamos lá para verificar. Desse modo, o lógos dos sofistas cria uma imagem que só pode ser anulada se houver a possibilidade de estar na situação em que se pode experimentar a "própria coisa", em termos visados.

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imagem sem referente directo e, por outro, uma imagem que nos aproxima desse referente. Já com Aristóteles, a imagem deriva exclusivamente da acção dos sentidos e é esta relação com o real que lhe atribui um elevado grau de credibilidade.17 Possui, deste modo, características formais que possibilitam a identificação e o reconhecimento, factores que não excluem a relatividade da interpretação. Aristóteles é o primeiro autor a apontar para a psicologia da percepção, pois chama a atenção para a importância daquilo que, nos nossos dias, designamos por recepção da informação, processo essencial à percepção visual (Simondon, 2006). Assim, na psicologia da percepção, a natureza da imagem visual passa a ser “pesada” pela suspeição da existência de um “cérebro” específico (Gross, 1999) capaz de a conceber como parte integrante daquilo que tinha origem na razão e nos sentidos18 e, por isso, também responsável pela natureza subjectiva que a caracteriza. Deste modo, a imagem visual estabilizou-se a partir do real percepcionado – com maior ou menor grau de verosimilhança – e de um condensado de experiências mais ou menos ricas face ao objecto representado, a partir da própria subjectividade do espectador, constituindo-se como um primeiro grau de acesso e de associação entre as “realidades” de apreensão – a mente, a memória e o imaginário individual/colectivo, onde de facto se manifesta e se reconfigura.19 Acreditamos assim que esta natureza da imagem (Merleau-Ponty, 1992) é a razão do seu êxito.20

A percepção visual, entendida enquanto processo global e privilegiado da apreensão do mundo, tem sido alvo de uma enorme variedade de observações empíricas, de experiências e teorias desenvolvidas desde a Antiguidade. Contudo, é no século XIX que podemos verdadeiramente falar da teoria da percepção visual, em termos científicos, nomeadamente a partir dos estudos efectuados por Helmholtz e Fechner e do aparecimento dos laboratórios de Física, Fisiologia e Óptica, que possibilitaram o desenvolvimento das observações e experiências necessárias ao estudo da percepção visual e também a resultados demonstráveis e passíveis de serem medidos por aparelhos de precisão, onde se

17

Aristóteles, Da Alma [412a-424b].

18

O que Aristóteles designava por “os nervos do sentimento” – a Visão, a Audição, o Olfacto, o Gosto e o Tacto.

19

É Francastel quem chama a atenção para esta particularidade da imagem visual ao associá-la directamente ao sistema nervoso. Deste modo, a imagem está sempre dependente da associação a factos, experiências e conhecimentos já existentes e que invariavelmente resultam em processos interpretativos. A experiência perceptiva visual é “apenas” um passo preliminar e importante (Francastel, 1983).

20

Autores como Marshall McLuhan (2002) sublinham ainda o facto de a enorme força associada às imagens visuais, na nossa sociedade, estar relacionada com a proliferação, em grande escala, dos poderosos media contemporâneos. Outros autores ainda abordaram este assunto com interessantes derivações, de que se destacam Umberto Eco, Jacques Aumont, Jean Baudrillard e Gilbert Durand.

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inclui o aparecimento de inúmeros dispositivos ópticos.

Por volta de 1850, J. P. Müller21 começa por investigar um conjunto de questões ligadas que ficaria conhecido como a “lei das energias nervosas” (visão moderna dos “nervos do sentimento” de Aristóteles). Müller desenvolveu uma tabela/grelha em que relacionava os organismos e respectivas fontes de estímulo, mapeando diferenças e semelhanças ao nível da percepção visual entre diversos organismos (abelhas, cães e humanos) e tentando perceber o que neles é comum e distinto.22 Cada espécie define a forma como recebe estímulos e comunica com o mundo exterior, respondendo a necessidades tão diversas como as de índole sexual, alimentar, de identificação entre pares – e, ainda, outras, como aquelas que dizem respeito às ilusões visuais.23

Este fenómeno é essencial quando pensamos, por exemplo, na relação que estabelecemos com um campo sensorial vasto. Perante um conjunto alargado de estímulos, somos “obrigados” a seleccionar o que vemos, uma vez que é impossível assimilar a sua totalidade. Deste modo, a imagem visual, ao ser percepcionada, transforma-se numa experiência única e singular.24 Assim, para autores como Robert Solso, a percepção visual existe a par de uma actividade mental que não pode conceber-se sem a intervenção do factor tempo, implicando, deste modo, a intervenção da memória, não histórica mas activada fenomenologicamente (Dortier, 2007). Estabelece-se, assim, a absoluta necessidade da existência da metáfora na imagem visual. Ou seja, a necessidade de

21

J. P. Müller, fisiologista alemão do século XIX, desenvolveu um estudo que se viria a revelar muito importante para o esclarecimento do funcionamento da percepção visual. No texto Handbuch der

physiologie, Müller demonstra que as sensações estão muito mais dependentes dos órgãos sensoriais do que

dos estímulos que os afectam.

22

No mundo animal a vida é percebida de forma diversa. As abelhas, por exemplo, não percepcionam o vermelho mas, ao contrário dos seres humanos, são sensíveis ao comprimentos de onda ultravioleta. O deslocamento dos olhos para o plano frontal, a progressiva adaptação à claridade e ao escurecimento, o desenvolvimento de zonas de projecção visual no córtex cerebral, entre outras características, permitiram construir um dispositivo complexo, ágil e pronto a descodificar o mundo exterior (Guyton & Hall, 2006).

23

No texto Vision and Art: The Biology of Seeing, Margaret Livingstone (2002) tenta perceber as opções plásticas dos artistas em função e em conformidade com o olho e o córtex visual. Assim, o uso de determinados “efeitos”, por exemplo, na pintura, apesar de serem desenvolvidos, aparentemente, a partir de determinadas necessidades plásticas e estéticas, na realidade estão sujeitas a um conjunto de impulsos físico-químicos que “fazem” com que esses efeitos realmente funcionem. Impressão de movimento ou um simples efeito de claro-escuro, podem ser apenas analisados do ponto de vista fisiológico. Neste processo, por vezes é preciso reinventar as formas, as cores ou mesmo os movimentos de um determinado objecto. A nossa visão é em grande parte uma construção mental e as ilusões surgem, em parte, destas situações (Debroise, 2001). Por outro lado, fora da representação, o cérebro também é capaz de construir imagens que assumem grande credibilidade e que não dependem dos sentidos influenciando-nos de forma efectiva (Balle, 2007).

24

A teoria da cognição de Robert L. Solso (1996) aponta para a forma como os seres humanos percepcionam e processam a informação relativa a uma imagem representada. A imposição de um caminho paralelo, o da percepção pura em conjunto com os mecanismos da memória e da associação de ideias, remete novamente para o “olho” – se o olho é uma câmara tudo o resto (aquilo que não está a ser percepcionado) parece ser invisível, de acordo com a “qualidade”, a forma e a produção de significado da natureza da representação.

Imagem

Fig.  (51)  Marcel  Duchamp  Anemic  Cinema, 1925-26

Referências

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