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Parte II – Do Visível ao Visual

II. 1 – A imagem visual e os filtros culturais

O fenómeno subjacente à representação da realidade, diferindo forma natural como percepcionamos o mundo à nossa volta, pode ser descrito por aquilo que designamos por percepção comportamental, onde os diversos filtros culturais102 (que são sempre anti- naturais, pois como diz Derrida (1971), a desconstrução entende a cultura de forma a que nunca se possa “naturalizar” o que não é “natural”) em parceria com os factores fisiológicos103 desempenham funções relevantes para o entendimento que a posteriori realizamos a partir da percepção de uma simples imagem (Gardner, 1982).

Passamos a reconfigurar, a reconstruir em função da forma como gerimos o nosso conhecimento, controlado pela nossa consciência e pela nossa memória (Efland, 2002). Neste sentido, as imagens construídas representam a selecção de um momento especial,104 onde se desprezam os múltiplos fenómenos que caracterizam o espaço visível e que, por isso, se tornam supérfluos.105 Esta construção, no entanto não deixa de, em termos formais, integrar todos os elementos constitutivos da imagem: o contorno da forma, a escala ou o claro-escuro, tentando “criar”/produzir a ideia de um objecto no espaço.

Tal esforço na construção de uma imagem, aponta sempre para uma dimensão cultural, por um lado, e ideológica, por outro, associada à própria visualidade (um olhar construído em função do sujeito), que se impõe nas relações entre a sensibilidade/inteligibilidade, face ao tempo/espaço. Em última análise, a visão é sempre uma construção ideológica e, neste sentido, não basta observar o visível num determinado

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A cultura molda (e regula) a consciência colectiva e individual, pois neste processso estão presentes os filtros culturais, responsáveis pela instauração de “processsos” que nos induzem uma pré-disposição mental. Ou seja, aquilo que percepcionamos é condicionado de acordo com a história individual de cada sujeito, onde, elementos ideológicos, económicos e sociais estão presentes. Assim, a realidade externa e o meio ambiente cultural são “coisas” percebidas e interpretadas de acordo com a natureza dos filtros culturais, por isso condicionantes. Se se troca um filtro, muda-se a imagem que é percebida.

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Não existe propriamente uma contaminação entre o fisiológico e o cultural, “eles” estão misturados à “nascença”.

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«Ver es todo un logro, no una simple tarea. Es el resultado de compreender una parte del mundo. Aprender a ver las cualidades que constituyen um campo visual, requiere un modo de atención que rara vez se emplea en la vida “ordinaria”. La mayor parte de lo que llamamus “ver” es de naturaleza instrumental» (Eisner, 2002).

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Por exemplo, o uso da perspectiva linear teve como propósito, e continua, de certo modo a ter, dois tempos num mesmo regime perceptivo – o da estabilização do “olhar” (face a uma parcela da realidade) e, simultaneamente, a construção de uma imagem visual suportada através dos vários filtros culturais, mantendo “curiosamente” o processo fisiológico neutro.

contexto empírico. É necessário ir mais além e perceber como se passa do visível para o visual, apostando naquilo que Gauthier (1995 e 1996) designa por “antropologia do olhar”.106 Assim, ao passarmos do visível ao visual estamos necessariamente na esfera do sujeito, postura que implica uma diferença fundamental entre olho e olhar, sendo que o olhar é o que define a intencionalidade e a profundidade da visão. Deste modo, a esfera do visível tem a ver com as qualidades que são inerentes ao aparelho perceptivo na sua reacção à luz. Já na análise a factos quotidianos verificamos uma maior complexidade, pois não se trata de simples reacções a estímulos, antes uma premente necessidade de organizar e construir o visual através da percepção. O visual está, por isso, dependente do olhar do sujeito «Porque perceber é olhar, e captar um olhar não é apreender um objecto no mundo, mas tomar consciência de ser visto (...)» (Sartre, 2003: 333), o olhar constrói o sujeito,107 portanto o “visual” é o “visível com significação”.

Deste modo, a passagem do visível (tudo aquilo que é possível ver) ao visual (dar significado ao que se vê) implica formar ou conceber necessariamente uma nova imagem visual (de algo que não se tem perante os olhos no momento), transformada em imagem perceptível pelo espírito ou pela imaginação.

Esta noção distingue o visível do visual, de que Didi-Huberman nos fala (1992 e 2007), apontando para problemas que estão relacionados com as imagens visuais – na produção, na circulação e no consumo das próprias, em conformidade com a natural interacção entre o observador e aquilo que é observado. Neste sentido, o estudo da “manifestação” da imagem visual assenta na necessidade de compreender os mecanismos do seu sentido – referimo-nos ao sentido dialéctico da imagem visual, socialmente construído e mutável, não passível de ser pré-formado ou simplesmente imanente da própria fonte visual. Por isso, Richard Chalfen (1996) evoca a fotografia para dizer que, antes de ser uma imagem visual, ela é, acima de tudo, um “processo de comunicação”, o que suscita alguns problemas, pois a nossa relação habitual com as imagens fotográficas revela-se também de forma sentimental (Sorlin, 1977 e Barthes, 2008). Deste modo, na passagem do visível para o visual é necessário reconhecer e ter em conta modalidades de

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Guy Gauthier desenvolve este conceito referindo-se, em particular, à ambiguidade do filme, nomeadamente na dificuldade em se distinguir o que é etnográfico do que é ficcional, uma vez que a validade do olhar está sempre em causa. O filme ou a fotografia, por exemplo, são sempre apreensões limitadas – pela técnica e pelo objecto de estudo.

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Sartre, no texto O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, exalta a importância do olhar na formação do indivíduo. Para Sartre, vemo-nos através do olhar do outro e é através desse olhar que passamos a participar no mundo ao qual pertencemos.

tratamento das imagens visuais: a imagem visual como registo produzido pelo observador; a imagem visual como registo ou parte daquilo que é observável; e, por fim, a interacção entre o observador e o observado. Ou seja, o que é próprio da percepção (referente às propriedades materiais das imagens visuais e do foro fisiológico) e aquilo que diz respeito aos códigos (filtros) culturais (simbólico, histórico) – da ordem da produção de sentido.

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