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Parte II – Do Visível ao Visual

II. 3 – A imagem automática e a fotografia

A invenção da fotografia, em termos técnicos, pode considerar-se o resultado do desenvolvimento de inúmeros processos físico-químicos150 que acabariam por ser eficazes na fixação de uma imagem numa superfície, ditando, desse modo, as condições necessárias ao aparecimento da fotografia.

Joseph Nicéphore Nièpce (1765-1833, Louis-Jacques Daguerre e William Henry Fox-Talbot (1800-1877) são considerados, embora de forma diversa, os inventores da fotografia.151

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Toda a imagem que se afasta do registo perspéctico, não requer do espectador uma disposição em aceitar a perspectiva como ferramenta legítima da representação do real, antes é neutra em relação a uma ideologia historicamente determinada e própria das imagens analógicas.

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Nam June Paik, Vostell, Bruce Naumam, Robert Morris, Dan Graham, Michael Snow, Chris Burden, entre outros.

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Há muito que eram conhecidos diversos processos físico-químicos capazes de sensibilizar superfícies por acção da luz. Por exemplo, os sais de prata já haviam sido testados por Albert Le Grand (1193-1280). Georges Fabricius (1516-1571), conseguiu obter imagens rudimentares a partir do uso do cloreto de prata. Heinrich Schulze (1687-1744), Wilhem Scheele (1747-1786) e Giacomo Beccaria (1716-1781) elaboraram fotogramas com recurso a materiais diversos: café, prata, ácido nítrico que ajudaram a perceber as suas características face à exposição à luz.

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O ano de 1826 oferece-se como um momento-chave. Nièpce, após uma década de experiências sem êxito, consegue desenvolver um método capaz de fixar uma imagem, que consistia em aplicar sobre uma placa de estanho uma substância conhecida por betume judaico, que continha propriedades fotosensíveis (uma resina espessa e escura muito utilizada na pintura e na impermeabilização da madeira), expondo-a no interior de uma camera obscura. Após 8 horas de exposição, Nièpce conseguiu fixar uma imagem, ainda que muito ténue, uma vista do seu quintal, processo que ficaria conhecido por heliografia (gravação com luz).

Uma das novidades que a invenção da fotografia introduziu, em termos tecnológicos, foi a possibilidade técnica de produzir imagens “automáticas”. A imagem fotográfica, na sua dimensão técnica, resulta pois, na captura automática de uma impressão da realidade, facto que, em parte, “escapa” à intervenção humana. Como escreve Bazin: «(...) entre o objecto original e a sua reprodução no espaço, apenas intervém um agente mecânico, não-vivo. Pela primeira vez uma imagem do mundo é formada automaticamente, sem a intervenção criativa do homem. A personalidade do fotógrafo introduz-se nos procedimentos de formação da imagem apenas na selecção do objecto a ser fotografado (...)» (2008:13).

Deste modo, a reprodução das aparências visíveis e a sua fixação, uma impressão luminosa numa superfície, constituíram-se como o princípio orientador da sua invenção, distinguindo assim a imagem fotográfica de outras imagens. Facto que introduziu a fotografia noutros contextos em que as suas potencialidades foram avaliadas de forma diferente. Desde logo, dois caminhos possíveis marcaram profundamente a fotografia: o primeiro momento considerou a própria fotografia como filha das tradições técnicas e estéticas (mais técnicas que estéticas), nomeadamente, destacando-se assim, a sua capacidade em imitar a realidade, aliás como Benjamin refere na «Pequena história da fotografia»: «(...) apesar de toda a habilidade artística do fotógrafo e da metodologia na

Daguerre, por sua vez, iria dar o seu contributo a partir de dois momentos distintos. O primeiro, que não pode ser dissociado da experiência adquirida com o seu Teatro-Diorama (em parceria com Charles Bouton, (1781-1853), que lhe permitiu desenhar em enormes panos e vidros translúcidos, a partir da utilização de uma camera obscura, cenários pintados em associação com complexos jogos de luz e som. O segundo momento dá-se em 1829, quando forma sociedade com Nièpce, com o propósito de aperfeiçoar os processos ligados à invenção de Nièpce, a heliografia. Após a morte de Nièpce, Daguerre abandona o uso do betume judaico para fixar imagens, iniciando as experiências com novos materiais, com especial relevo para a prata halogénea, substância que acabaria por estar na base do desenvolvimento do daguerreótipo As experiências de Daguerre consistiam em expor, na camera escura, placas de cobre prateado polidas e sensibilizadas com vapor de iodo, formando, deste modo, uma capa de iodeto de prata sensível à luz. Daguerre verificou que uma imagem podia revelar-se com o vapor de mercúrio, num período de tempo muito curto, reduzindo, assim, de horas para minutos o tempo de exposição. Este processo foi baptizado com o nome de Daguerreotipia. Os daguerreótipos eram “objectos” únicos, não sendo por isso passíveis de serem reproduzidos, como no caso dos negativos.

Talbot, por seu lado, empreende sozinho a aventura de captar uma imagem “positiva” tendo como ponto de partida a camera obscura. Desiludido com os desenhos que obtinha a partir da camera obscura, decide desenvolver um meio para captar e fixar a imagem. Acidentalmente, em 1834, ao usar uma folha de papel impregnado com nitrato de prata, fixado com sal de cozinha, conseguiu produzir uma imagem que designou escrita com luz (fotografia). O seu método permitia-lhe fixar em papel uma imagem negativa (desenhos fotogénicos) e tornar essa imagem positiva através da sua impressão por contacto com outra superfície sensibilizada, que Talbot descreve como revelação da imagem e a possibilidade de a reproduzir (negativo/positivo). Talbot, à altura, desconhecia os trabalhos desenvolvidos por Nièpce e Daguerre.

Amar, no seu texto História da Fotografia (2007) releva o nome do inventor Hippolyte Bayard, como sendo também um dos pioneiros da fotografia, apesar de injustamente esquecido.

atitude do seu modelo, quem contempla a fotografia sente o impulso irresistível de procurar, aqui e agora, o cintilar insignificante do acaso com o qual a realidade, por assim dizer, ateou o carácter da imagem» (1994:118-119). No segundo estava presente a ideia de que a fotografia era capaz de captar a realidade de uma outra forma, capaz de “fornecer” um ambiente visual da realidade substancialmente diferente, por exemplo, daqueles que eram obtidos pelos pintores e escultores. Por exemplo, a fotografia conseguia analisar o movimento, mostrar em detalhe pormenores, produzir ângulos e vistas como nunca tinham sido vistas, remetendo a sua influência directamente para uma «(...) visão aplainada e comprimida» do espaço, ao invés da simples manutenção do efeito de profundidade da perspectiva (Krauss, 2002: 43-44), facto de extrema importância para todo o desenvolvimento da pintura a partir do século XIX.

Estes dois caminhos acabaram por se completar, enquadrando a fotografia na sua dimensão técnica e também no que diz respeito às suas potencialidades expressivas.

A máquina fotográfica (que Flusser diz tratar-se da «transformação de um instrumento, presente na relação com a imagem, em máquina»)152 ao descender da camera

obscura acrescentou às suas capacidades a possibilidade das suas imagens, opticamente

perfeitas e em perspectiva, serem registadas. Inegavelmente, este facto foi responsável pela ideia que se fez da fotografia: uma tendência “natural” para produzir imagens em perspectiva. A fotografia introduziu-se como paradigma quase incontornável. Como se possuísse uma secreta “herança vocacional mimética” presente na arte (e que já se encontrava na perspectiva renascentista). Como consequência, a fotografia não teve problemas em se legitimar enquanto registo documental, enquanto que no domínio artístico demoraria muito tempo para se afirmar, pois, ao ter-se em conta o automatismo do

medium, imaginou-se a fotografia como o corolário de uma etapa final, onde finalmente

era possível construir imagens em perspectiva sem anomalias, sucedendo, desse modo, à continuidade do paradigma do código visual iniciado/instaurado no Renascimento.

Por outro lado, como Jeff Wall (2004) afirma, os artistas instauraram a ideia de que a fotografia enquanto medium não pode encontrar alternativas à representação, como o fizeram outras artes no passado, pois é da natureza física do próprio medium “representar coisas”. Este problema não pode ser menosprezado, pois o entendimento da fotografia

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«(...) quando os instrumentos se transformam em máquinas, a sua relação com o homem inverteu-se. Antes da revolução industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as máquinas eram cercadas por ele (...) antes, os instrumentos funcionavam em função do homem (...) grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas» (Flusser, 1998: 41).

enquanto registo perspéctico automático, funcionou, de certo modo, como uma armadilha ideológica, já que teve em conta um espectador disposto a aceitar a perspectiva como um instrumento legítimo na representação – com a fotografia obtinha-se automaticamente uma cópia do real153 (que Rosalind Krauss (2002) admite, ainda hoje, como uma questão da fotografia).

Fig.(19) Louis Daguerre Boulevard du temple, 1838 Fig. (20) Henry Fox Talbot Stable door and ladder,

Lacock Abbey,1844

Mas esta originalidade da fotografia, nomeadamente, em relação à pintura e que está assente nas suas potencialidades tecnológicas, onde as lentes (o “olho” fotográfico) substituem o olho humano, (a objectiva) possibilitavam a obtenção de uma imagem do exterior automática e sem a intervenção criativa do homem, como afirmámos. Esta génese automática subverteu de forma radical toda a lógica na construção da imagem, transferindo literalmente um objecto real para o campo da representação. Os espectadores passaram a acreditar na veracidade de um objecto representado pela fotografia.

Por outro lado, foi na tradição das artes plásticas que a fotografia estabeleceu inicialmente uma relação com os seus temas e géneros, procurando, ao mesmo tempo, afirmar-se como um meio de expressão artístico de pleno direito. Mas, por outro lado, e devido às suas capacidades técnicas inovadoras, acabaria por influenciar a própria pintura. O modernismo é exemplo do que acabamos de afirmar, sendo nele notória a influência recíproca entre a Fotografia e a Pintura. Desde logo, a influência dos “recortes fotográficos”, visíveis em inúmeras pinturas, “oriundos directamente das fotografias”. Estamos a falar, nomeadamente, na construção de novos planos e enquadramentos. Muitas vezes, estas fotografias já se encontravam impressas em jornais, revistas e cartazes. A

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Mas, como afirma Pierre Bourdieu (1965) essa relação entre imagem e espectador ao conferir um certificado de realismo, acentua a convicção tautológica de que a imagem fotográfica é uma imagem do real em conformidade com a sua representação. Bourdieu enuncia, como exemplo, uma simples foto familiar que, para além do seu valor patrimonial, passa a ser também um referencial de coesão familiar, impondo-se na estabilização das relações entre os indivíduos e o mundo real, implicando-os e relacionando-os de uma forma diferente.

pintura de Seurat Cirque (1891), retrata um momento da vida circense, onde nos é dado a ver um trapezista que desenvolve um “número” em cima de uma bicicleta. A cena está a ser visionada por uma audiência. Este momento ilustra muito bem o que acabámos de dizer, pois esta imagem encontrava-se exposta em muitas paredes impressa em cartazes, sendo alvo da atenção do pintor.154

Neste contexto, a imagem fotográfica iria dar lugar a uma profunda reflexão que se desdobrou entre a sua natureza técnica e o seu entendimento como meio de expressão, questões que seriam de uma enorme importância para as artes plásticas. A fotografia, como refere Bazin (2008), ficou “presa” do fascínio da representação da realidade, fundando em seu torno, um discurso de imagem técnica em que a realidade se projecta de forma mecânica.

Mas como refere Philippe Dubois (1983), o problema do automatismo da imagem fotográfica não tem só a ver necessariamente com a produção de semelhança, com o efeito de mimetismo, mas com uma outra dimensão muito mais abrangente que resulta do entendimento que se sustenta na génese da imbricabilidade entre a imagem e o referente, nomeadamente na transferência do real para o suporte (película) sensível: esta é para Dubois a questão mais importante que envolve a natureza do automatismo da sua imagem. O interesse pela fixação de uma imagem automática encontrou na fotografia um campo de identidade e de exploração, que se iria transmitir, em termos de influência, a todo o campo expressivo das artes visuais, desde a pintura, passando pelo design até ao cinema. Será justamente o cinema que irá tirar partido das novas premissas que a fotografia trouxe para o mundo da expressão, nomeadamente incidindo na natureza da objectividade fotográfica decorrente da sua natureza automática, pois não se irá contentar só em conservar o “objecto” como se ele estivesse “em suspensão”; o cinema vai procurar olhar para essa imagem em termos de duração e de mudança, de procura de movimento.

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