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Parte III – A Ideia de Cinema

III. 2.1 – A Sinfonia Cromática de Bruno Corra

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Sinfonia Cromática, de Bruno Corra,213 aparece-nos, em jeito de manifesto, no texto Cinema Abstracto: Música Cromática, de 1912, e é uma das primeiras reflexões futuristas sobre a noção de cinema. Para Corra (1912), o cinema deveria ser, sobretudo, uma releitura dos conceitos subjacentes às artes tradicionais (nomeadamente o da definição de quadro e de composição), procurando desenvolver uma nova foram de expressão baseada na simplicidade, onde o simples emprego das cores dispostas de forma harmoniosa numa determinada superfície, resultaria numa agradável sensação à vista. O seu ponto de partida, inspirado directamente no carácter abstracto da música, era dotar o cinema da figura que no contexto musical se entende por acorde, tendo em vista o seu entendimento como um enorme “acorde cromático”. Nesse sentido, Corra procurou desenvolver um método capaz de ligar, do ponto de vista simbólico, as dimensões sonora e visual presentes na imagem, que intitulou de Sinfonia Cromática (Haas, 1997), partindo do princípio que o

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Só numa segunda geração de artistas futuristas é que iremos assistir ao desenvolvimento pleno de filmes. Neste sentido, deve referir-se o papel de Anton Giulio Bragaglia (1890-1960). Bragaglia foi fotógrafo e encenador. Em 1930, e realizou o seu primeiro filme S/título em 1933.

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A força das ideias do movimento futurista italiano, em particular ligadas ao cinema, tiveram uma enorme repercussão em toda a Europa e, em particular, na Rússia, Alemanha e França. Deste modo, o cinema foi, também, uma ideia futurista que proporcionou um conjunto de experiências plásticas e sonoras importantes para o seu desenvolvimento.

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Apesar do Futurismo italiano, como dissemos, não tenha produzido verdadeiramente filmes, o seu legado espalhou-se por todos os domínios das artes plásticas: pintura, escultura, foto-montagem, colagem... . O trabalho de Corra foi, pois, muito importante, desde logo, a partir do manifesto futurista (Cinema Abstracto:

Música Cromática (1912), onde descreve os primeiros “objectos” artísticos feitos com a imagem em

cinema pudesse ser entendido como uma sinfonia e, tal como acontece na música, seria na essência, e na prática, o resultado de determinados “acordes”. Como refere Patrick de Haas – o cinema de Corra seria, antes de mais, uma plataforma de entendimento “feliz” entre a cor e o tom certo.

Com efeito, é no início dos anos 10 que os futuristas Arnaldo Ginna e Bruno Corra exploram as metamorfoses da luz, desenvolvendo estratégias de utilização de ecrã variados, que iam desde o uso de simples telas brancas como suporte, impregnadas de glicerina, ou com a sua superfície coberta de papel de prata, onde eram aplicadas substâncias com propriedades reflexivas, capazes de produzir uma espécie de fosforescência. A utilização de gaze na superfície da tela, por exemplo, ao deixar filtrar os feixes de luz, produzia um efeito parecido com o vapor de fumo branco.

Por outro lado, as pesquisas realizadas por Corra e Gina tinham como fito a interacção com o espectador. Os autores entendiam que só através da produção de imagens harmoniosas (e uma imagem harmoniosa deveria ser, acima de tudo, uma “boa sensação” se poderia atingir esse objectivo de pleno comprometimento com o espectador. Procuravam, deste modo, transformar o cinema num meio de expressão que fosse capaz de instaurar uma relação privilegiada entre os espectadores e as obras. Desta forma, as características formais das obras realizadas a partir de determinadas superfícies, e tendo em conta as suas propriedades materiais, eram as responsáveis pela produção de efeitos cromáticos particulares.214 Toda a importância devia ser depositada na disposição das cores, umas a seguir às outras; a forma da sua disposição seria o “k” factor, o que iria contribuir decisivamente para o sucesso da “harmonia” entre as obras e os espectadores.215

O Arco-íris e A Dança aparecem-nos como dois acontecimentos de natureza fílmica,

“misteriosamente” desaparecidos, por volta dos anos 40.216 Em A Dança vários piões com cores, predominantemente entre o amarelo e roxo, são lançados uns contra os outros simulando uma dança de ritmo e movimento, com cerca de 90 segundos de duração. No filme O Arco-íris tudo se passa em torno de uma tela que nos aparece em tons de cinza. De

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«(...) les thèmes chromatiques qui sont là sous mes yeux, ébauchés sur des bandes de celluloïd, sont au nombre de trois : le premier est le plus simple que l´on puisse imaginer, en deux seules couleurs, complémentaires, rouge et vert; au début toute la toile est verte, puis apparaît dans le centre une pettite étoile rouge à six pointes qui roule sur elle-même en faisant vibrer ses pointes, comme des tentacules, et grandit, jusqu’à ce qu’elle occupe toute la toile, toute la toile est rouge; alors, d´une manière surprenante, apparaît sur toute la surface illuminée un fourmillement nerveux de points verts qui s’agrandissent jusqu’à ce qu’ils dévorent tout le rouge, à la fin toute la toile est verte (...)» (Corra, 2008: 235-236).

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A título de curiosidade, um dos seus inventos – O Piano Cromático – possibilitava, através de um complexo mecanismo, activar luzes arbitrariamente por via do toque nas teclas de um piano.

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seguida, e com um determinado ritmo, tintas coloridas caem umas sobre as outras provocando, deste modo, diversos efeitos de grande plasticidade, bem como a formação de bolhas ou a sobreposição de camadas e a aniquilação de cores sobrepostas, resultando numa espécie de “guerra” entre as próprias cores ou entre elas e a superfície. Não há dúvida de que as sinfonias cromáticas desenvolvidas por Corra foram de uma extrema importância para o surgimento de um cinema abstracto, em particular para o trabalho de cineastas como Hans Richter (1888-1976), Viking Eggeling (1880-1925), Walter Ruttmann (1887-1941), Germaine Dullac (1882-1942), René Clair (1898-1981) ou Dmitri Kirsanov (1899-1957).217

É com a publicação do jornal Itália Futurista, datado de 11 de Setembro de 1916, que temos acesso ao manifesto mais completo relativo ao cinema futurista. Este manifesto, intitulado A Cinematografia Futurista, tinha a particularidade de ter sido concebido por um número elevado de artistas, oriundos de diversas áreas de expressão, onde se encontram nomes como os de Emílio Settimelli (1891-1954), Remo Chiti (1891-1971), Arnaldo Ginna (1890-1982), Balla, Bruno Corra (1872-1976), e o próprio Marinetti.

As ideias disseminadas neste texto estariam na base da influência directa que o futurismo iria exercer nos jovens artistas soviéticos (FEKS),218 em particular, no surgimento do chamado Novo Cinema Russo, onde pontuavam nomes como Vertov, Eisenstein, Malevich, Rodchenko, entre os mais significativos. Na esteira da defesa do cinema, entendido realmente como uma arte, pairava a ideia de que se estava na presença de uma nova forma de expressão, capaz de se afigurar como o “presente a caminho do futuro”. Deste modo, o cinema, na óptica do futurismo italiano, deveria estar livre do

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Hans Richter com Rhythmus 21 (1921), um filme de animação, onde rectângulos e quadrados vão mudando a sua forma no ecrã, como se estivessem sujeitos a um ritmo musical. Symphonie Diagonale (1921), de Viking Eggeling, introduz-nos uma complexa forma geométrica que se apresenta em constante reformulação. Referência ainda para o trabalho absolutamente experimental da autoria de Walter Ruttmann,

Weekend (1930), que combina novos meios de expressão, como a rádio e o cinema. Nesta invulgar obra,

Ruttmann concebe um trabalho essencialmente sonoro e o ecrã mantêm-se completamente negro. Já antes, em 1927, Rutmann tinha inovado com a obra Berlin: Symphony of a Great City (1927), um trabalho paradoxal pois, de certa forma, junta a visão de Corra e também de Vertov. Por sua vez, Germaine Dullac com o filme The Smiling Madame Beudet (1923) mostra-nos um intrigante trabalho rodado a partir de fragmentos do corpo de uma mulher. Outro artista/cineasta muito importante foi René Clair, nomeadamente com o trabalho Entr'acte (1924), filme produzido a partir de um texto de Francis Picabia para um ballet da autoria de Erik Satie. Esta obra mostra-nos planos de forte efeito plástico, em slow motion, onde a imagem assume o papel de uma coreografia com a própria câmara de filmar. Chama-se ainda a atenção para o trabalho Ménilmontant (1925) realizado por Dmitri Kirsanov, um poema visual, com a presença mítica da actriz e bailarina Nadia Sibirskaia.

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O colectivo russo FEKS pretendia efectuar uma verdadeira migração de técnicas e recursos espectaculares oriundos do mundo do circo ou do teatro, por exemplo, para o campo do cinema. Kozintzev e Trauberg foram os protagonistas maiores deste colectivo do qual, num brevíssimo período, Eisenstein fez parte. Os filmes ficaram marcados pela grandiosidade dos décors construtivistas.

passado artístico, pesado e preconceituoso, e também da tradição artística, nomeadamente dos meandros do teatro clássico, da literatura e da dramaturgia, embora isso não fosse verdade219. O cinema futurista seria antes um lugar de liberdade das cores, das manchas, das linhas, das palavras e dos sons, visando todas as artes ao mesmo tempo e nenhuma em particular220 – «É preciso libertar o Cinematógrafo como meio de expressão para fazer dele o instrumento ideal de uma arte nova muito mais vasta e ágil que todas as artes existentes (...)».221

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