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Superprevisoes - Dan Gardner.pdf

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Academic year: 2021

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Jenny, eternamente viva nos corações de sua mãe e de seu pai, como se aquele dia fosse ontem

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Sumário

1. Um cético otimista 2. Ilusões de conhecimento 3. De olho nos números 4. Superprevisores 5. Superinteligentes? 6. Superquants? 7. Superviciados-em-notícias? 8. Beta perpétuo 9. Superequipes 10. O dilema do líder

11. Eles são mesmo tão super assim? 12. E agora?

Epílogo Um convite

Apêndice: Os dez mandamentos dos aspirantes a superprevisor Agradecimentos

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T

Um cético otimista

1

ODOS NÓS FAZEMOS PREVISÕES. Quando pensam os em m udar de trabalho, casar, com prar um a casa, fazer um investim ento, lançar um produto ou nos aposentar, tom am os a decisão com base no m odo com o esperam os que o futuro se desenrole. Essas expectativas são previsões. Muitas vezes, nós as fazem os por conta própria. Mas quando há grandes acontecim entos — quebras de m ercados, guerras im inentes, líderes na corda bam ba —, recorrem os aos especialistas, aqueles que estão por dentro das coisas. Recorrem os a pessoas com o Tom Friedm an.

Se você trabalha na Casa Branca, pode acontecer de encontrá-lo na Sala Oval com o presidente dos Estados Unidos, falando sobre o Oriente Médio. Se você é CEO de um a das quinhentas m aiores em presas do país, pode encontrá-lo em Davos, batendo papo no saguão com bilionários dos hedge funds e príncipes sauditas. E se não frequenta a Casa Branca nem hotéis suíços chiques, pode ler as colunas do New York Times e os best-sellers que o m antêm inform ado sobre o que está acontecendo agora, por que e o que vai acontecer a seguir.1 Milhões de pessoas fazem isso.

Com o Tom Friedm an, Bill Flack prevê eventos globais. Mas para seus insights a dem anda é m uito m enor.

Durante anos, Bill trabalhou para o Departam ento de Agricultura dos Estados Unidos, no Arizona — “em parte pegando no pesado, em parte preenchendo planilhas” —, m as hoj e m ora em Kearney, Nebraska. Bill é natural da região, um cornhusker da gem a. Ele cresceu em Madison, cidade de fazendeiros onde seus pais publicavam o Madison Star-Mail, um j ornal recheado

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de m atérias sobre os esportes e feiras locais. Foi bom aluno no ensino m édio e depois obteve seu bacharelado em ciências exatas na Universidade de Nebraska. Dali, foi estudar na Universidade do Arizona. Sua ideia era obter um doutorado em m atem ática, m as percebeu que o cam po estava acim a de sua capacidade — “m inhas lim itações foram esfregadas na m inha cara”, com o ele diz — e largou os estudos. Porém , não foi um tem po perdido. Aulas de ornitologia fizeram de Bill um ávido observador de pássaros, e, com o o Arizona é um ótim o lugar para isso, ele realizou algum trabalho científico de cam po em m eio período, depois obteve um em prego com o Departam ento de Agricultura e ficou nele por um tem po.

Bill tem 55 anos e está aposentado, em bora diga que, se alguém lhe oferecer um em prego, vai levar em consideração. De m odo que tem tem po livre. E passa parte dele fazendo previsões.

Bill j á respondeu m ais ou m enos trezentas perguntas com o “A Rússia vai anexar oficialm ente o território ucraniano nos próxim os três m eses?” e “No ano que vem , algum país vai deixar a zona do euro?”. São perguntas im portantes. E difíceis. Corporações, bancos, em baixadas, serviços de inteligência se esforçam para responder questões com o essas o tem po todo. “A Coreia do Norte vai detonar algum dispositivo nuclear até o fim do ano?” “Quantos países m ais vão relatar casos do vírus ebola nos próxim os oito m eses?” “Será que a Índia ou o Brasil vão se tornar m em bros perm anentes do Conselho de Segurança da ONU nos próxim os dois anos?” Algum as dessas perguntas são totalm ente obscuras, pelo m enos para a m aioria de nós. “A Otan vai convidar novos países para se j untar ao seu quadro de m em bros nos próxim os nove m eses?” “O governo regional do Curdistão vai realizar um referendo sobre a independência nacional este ano?” “Se um a em presa de telecom unicações não chinesa vencer um a licitação para prover serviços de internet na Zona de Livre-Com ércio de Shanghai nos próxim os dois anos, os cidadãos chineses terão acesso ao Facebook e/ou Twitter?” Quando Bill vê pela prim eira vez essas perguntas, pode ser que não faça a m enor ideia de com o respondê-las. “O que diabos é a Zona de Livre-Com ércio de Shanghai?”, talvez pense. Mas ele faz sua lição de casa. Reúne fatos, pesa argum entos conflitantes e se decide por um a resposta.

Ninguém baseia suas decisões nas previsões de Bill Flack, tam pouco lhe pede que diga o que pensa na CNN. Bill nunca foi convidado a visitar Davos ou a participar de um a m esa-redonda com Tom Friedm an. E isso é um a pena. Porque Bill Flack é um previsor incrível. Sabem os disso porque observadores científicos independentes anotaram a data, registraram por escrito e verificaram o acerto de tudo que Bill predisse. Seu histórico é excelente.

Bill não está sozinho. Há m ilhares de outros respondendo as m esm as perguntas. Todos são voluntários. A m aioria não é tão boa com o Bill, m as cerca de 2% sim . Entre essas pessoas há engenheiros e advogados, artistas e cientistas.

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Grandes investidores e trabalhadores com uns, professores e alunos. Vam os conhecer m uitos deles, inclusive um m atem ático, um cineasta e alguns aposentados ansiosos por partilhar seus subaproveitados talentos. Eu os cham o de superprevisores, porque é isso que são. Evidências confiáveis dão prova disso. Explicar por que são tão bons, e com o outros podem aprender a fazer o que eles fazem , é m eu obj etivo neste livro.

Com o nossos m odestos superprevisores se com param a cérebros notáveis com o Tom Friedm an é um a pergunta intrigante, m as não pode ser respondida porque a precisão dos prognósticos de Friedm an nunca foi rigorosam ente testada. Claro que os adm iradores e críticos de Friedm an têm suas opiniões, para o bem ou para o m al — “ele acertou a Prim avera Árabe em cheio” ou “ele m eteu os pés pelas m ãos na invasão do Iraque em 2003” ou “ele foi presciente sobre a expansão da Otan”. Mas não existem inform ações confiáveis quanto ao histórico de Tom Friedm an, som ente um a infinidade de opiniões — e opiniões sobre opiniões.2 E o m undo continua a girar. Todos os dias, a m ídia divulga previsões sem inform ar, nem sequer se perguntar, até que ponto as pessoas que as fizeram são realm ente boas. Todos os dias, as corporações e os governos pagam por previsões que podem ser prescientes ou inúteis, ou algo entre um a coisa e outra. E todos os dias, todos nós — líderes de nações, altos executivos, investidores, eleitores — tom am os decisões críticas com base em previsões cuj a qualidade é ignorada. Gerentes de tim es de beisebol j am ais sonhariam em puxar o talão de cheques para contratar um j ogador sem consultar as estatísticas de desem penho. Até m esm o os torcedores esperam ver as estatísticas dos j ogadores em tabelas e nas telas de tevê. E contudo, quando a coisa diz respeito aos previsores que nos aj udam a tom ar decisões que im portam m uito m ais do que um j ogo de beisebol, dam o-nos por satisfeitos em ficar no escuro.3

Visto sob esse prism a, confiar nas previsões de Bill Flack parece bastante razoável. De fato, confiar nas previsões de m uitos leitores deste livro pode se provar bastante razoável, pois o fato é que fazer prognósticos não é um talento do tipo “ou você tem ou você não tem ”. É um a habilidade que pode ser cultivada. Este livro vai m ostrar com o.

AQ UELA DO CHIMPANZÉ

Quero estragar a piada, então j á vou logo entregando o final: o especialista m édio foi m ais ou m enos tão preciso quanto um chim panzé atirando dardos.

Provavelm ente você j á ouviu essa antes. É fam osa — em alguns círculos, infam e. Já apareceu no New York Times, no Wall Street Journal, no Financial

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Times, na Economist e em outros j ornais pelo m undo afora. É o seguinte: um pesquisador j untou um grande grupo de especialistas — acadêm icos, experts e por aí vai — para em itir m ilhares de prognósticos sobre a econom ia, as bolsas, as eleições, guerras e outros assuntos prem entes. O tem po passou, e, quando o pesquisador verificou a precisão desses vaticínios, descobriu que a m édia dos especialistas era aproxim adam ente tão boa quanto chutes aleatórios. Só que esse não é o encerram ento da piada, porque “chutes aleatórios” não têm graça. O clím ax é sobre um chim panzé atirando dardos. Porque chim panzés são engraçados.

Esse pesquisador sou eu e por algum tem po não m e im portei com a piada. Meu estudo foi a avaliação m ais abrangente da literatura científica sobre o j uízo de especialistas. Um trabalho longo e cansativo que m e tom ou cerca de vinte anos, de 1984 a 2004, e cuj os resultados foram m uito m ais gratificantes e construtivos do que a piada sugere. Mas não m e incom odei com ela porque serviu para levar m inha pesquisa ao conhecim ento geral de m eus pares (é isso m esm o: cientistas tam bém apreciam seus quinze m inutos de fam a). E eu m esm o havia usado a velha m etáfora do “chim panzé atirando dardos”, então não tinha o direito de espernear.

Tam bém não m e incom odei porque a piada tem um quê de verdade. Abra qualquer j ornal, assista a qualquer noticiário na tevê e você vai encontrar especialistas prevendo o que está por vir. Uns são cautelosos. A m aioria é ousada e confiante. Um punhado alega serem estupendos visionários capazes de enxergar décadas no futuro. Com poucas exceções, não estão diante das câm eras por possuírem qualquer habilidade com provada. A precisão raram ente é m encionada. Previsões antigas são com o notícias velhas — logo esquecidas —, e os experts quase nunca são cobrados para conciliar o que disseram com o que de fato aconteceu. O único talento inegável que essas personalidades televisivas têm é sua habilidade para falar sobre um assunto em polgante com convicção, e isso é o que basta. Muitos enriqueceram m ascateando previsões de valor não com provado para executivos, funcionários do governo e pessoas com uns que j am ais pensariam em engolir um rem édio de eficácia e segurança duvidosas, m as costum am pagar por previsões tão confiáveis quanto o óleo de cobra vendido nos fundos de um a carroça. Essas pessoas — e seus clientes — m erecem um cutucão. Fiquei feliz por ver m inha pesquisa sendo usada para proporcionar isso a elas.

Mas percebi que, à m edida que m eu trabalho chegava ao conhecim ento geral, seu significado evidente se transform ava. O que m inha pesquisa havia m ostrado era que o especialista m édio fizera pouca coisa além de conj ecturar sobre m uitas das perguntas políticas e econôm icas propostas por m im . “Muitas” não é o m esm o que todas. Era m ais fácil levar a m elhor sobre o acaso nas questões de curto alcance, que exigiam olhar apenas um ano adiante, e a

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precisão dim inuía quanto m ais longe tentavam enxergar os especialistas — aproxim ando-se do nível do chim panzé j ogando dardos com três a cinco anos à frente. Essa foi um a descoberta im portante. Ela nos diz algum a coisa sobre os lim ites da opinião perita em um m undo com plexo — e os lim ites do que m esm o os superprevisores podem alcançar. Mas com o na brincadeira infantil do telefone sem fio, em que um a frase é sussurrada no ouvido de um a criança, que a repassa à seguinte, e assim por diante, e todos ficam chocados no fim ao descobrir o quanto a frase m udou, a m ensagem real foi adulterada ao ser constantem ente retransm itida, e as sutilezas se perderam por inteiro. A m ensagem passou a ser “todos os especialistas em previsão são uns inúteis”, o que não faz sentido. Algum as variantes eram ainda m ais grosseiras — com o “os especialistas sabem tanto quanto chim panzés”. Minha pesquisa se tornara um a referência saco de pancadas para niilistas que enxergam o futuro com o im previsível por natureza e populistas ignorantes que sem pre colocam antes da palavra “especialista” a expressão “pretenso”.

Então, cansei da piada. Minha pesquisa não em basava essas conclusões extrem as, tam pouco eu sentia qualquer afinidade por elas. Hoj e, isso é ainda m ais verdadeiro.

Há espaço de sobra para destacar pontos de vista razoáveis entre os detratores e os defensores de especialistas e suas previsões. Por outro lado, os detratores têm certa dose de razão. No m ercado de previsões existem m ascates suspeitos fornecendo insights questionáveis. Além disso, existem lim ites para a antevisão que talvez sej am intransponíveis. Nosso desej o de ver o futuro sem pre excederá nosso alcance. Mas os detratores vão longe dem ais quando m enosprezam qualquer previsão com o um a em preitada vã. Acredito ser possível enxergar o futuro, ao m enos em algum as situações e até certo ponto, e que qualquer pessoa inteligente, de m ente aberta e adepta do trabalho árduo pode cultivar as habilidades necessárias.

Podem m e cham ar de “cético otim ista”.

O CÉTICO

Para com preender a m etade “cética” desse rótulo, pense em um j ovem tunisiano em purrando seu carrinho cheio de frutas e legum es por um a estradinha de terra para um m ercado qualquer na cidade de Sidi Bouzid. Quando ele tinha três anos de idade, seu pai m orreu. Ele sustenta a fam ília tom ando dinheiro em prestado para encher o carrinho, na esperança de ganhar o suficiente vendendo seus produtos de m odo a pagar a dívida e conseguir algum a sobra. É a m esm a labuta todos os dias. Mas nessa m anhã, a polícia cerca o hom em e diz

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que vai confiscar sua balança porque ele violou algum a lei. Ele sabe que é m entira. Está sendo achacado. Mas não tem dinheiro algum . Um a policial o esbofeteia e insulta seu falecido pai. Eles levam sua balança e seu carrinho. O hom em vai a um escritório m unicipal para prestar queixa. É inform ado de que o funcionário responsável está num a reunião. Hum ilhado, furioso, im potente, o hom em sai.

Ele volta com gasolina. Diante do escritório m unicipal, ele se encharca com o com bustível, acende um fósforo e ateia fogo a si m esm o.

Apenas a conclusão dessa história é incom um . Há inúm eros am bulantes pobres na Tunísia e por todo o m undo árabe. A corrupção policial grassa, e hum ilhações com o as que foram infligidas sobre esse hom em são um a ocorrência cotidiana. Não têm im portância para ninguém , exceto a polícia e suas vítim as.

Mas essa hum ilhação particular, em 17 de dezem bro de 2010, levou Moham ed Bouazizi, de 26 anos, a pôr fogo em si próprio, e a autoim olação deflagrou protestos. A polícia reagiu com a brutalidade de costum e. Os protestos se espalharam . Tentando apaziguar a opinião pública, o ditador da Tunísia, presidente Zine el-Abidine Ben Ali, visitou Bouazizi no hospital.

Bouazizi m orreu em 4 de j aneiro de 2011. A inquietação aum entou. Em 14 de j aneiro, Ben Ali fugiu para um confortável exílio na Arábia Saudita, pondo fim a sua cleptocracia de 23 anos.

O m undo árabe assistiu a tudo perplexo. Então, protestos eclodiram em Egito, Líbia, Síria, Jordânia, Kuwait e Bahrain. Após três décadas no poder, o ditador egípcio Hosni Mubarak foi derrubado. Por toda parte, os protestos passaram a revoltas, e as revoltas a guerras civis. Essa foi a Prim avera Árabe — e com eçou com um hom em pobre, em nada diferente de tantos outros, sendo extorquido pela polícia, com o inúm eros outros tam bém o foram , antes e depois, sem m aiores consequências.

Um a coisa é olhar para trás e esboçar um arco narrativo, com o fiz aqui, ligando Moham ed Bouazizi a todos os eventos que foram desencadeados após seu protesto solitário. Tom Friedm an, com o m uitos bam bam bãs de prim eira, é habilidoso nesse tipo de reconstrução, particularm ente no Oriente Médio, que ele conhece tão bem , tendo feito seu nom e no j ornalism o com o correspondente do New York Times no Líbano. Mas será que m esm o Tom Friedm an, se estivesse presente naquela m anhã fatal, teria sido capaz de perscrutar o futuro e antever a autoim olação, os tum ultos, a derrubada do ditador tunisiano e tudo que se seguiu? Claro que não. Ninguém poderia. Talvez, dado o grande conhecim ento que Friedm an tem da região, ele tivesse refletido que a pobreza e o desem prego eram elevados, o núm ero de j ovens desesperados estava crescendo, a corrupção era desenfreada, a repressão era im piedosa e, portanto, a Tunísia e outros países árabes eram barris de pólvora prestes a explodir. Mas um observador poderia ter

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extraído essa m esm íssim a conclusão no ano anterior. E no ano anterior a esse. Na verdade, poderia ter dito isso sobre a Tunísia, o Egito e vários outros países por décadas. Eles podiam ser barris de pólvora, m as nunca explodiram — até 17 de dezem bro de 2010, quando a polícia foi longe dem ais com aquele pobre hom em . Em 1972, o m eteorologista am ericano Edward Lorenz escreveu um artigo com um título interessante: “Previsibilidade: pode o bater de asas de um a borboleta no Brasil provocar um tornado no Texas?”. Um a década antes, Lorenz descobrira por acaso que m inúsculas variações na entrada de dados em sim ulações de padrões clim áticos no com putador — com o substituir 0,506127 por 0,506 — eram capazes de produzir previsões de longo prazo dram aticam ente diferentes. Seu insight serviria de inspiração para a “teoria do caos”: em sistem as não lineares com o a atm osfera, m esm o pequenas m udanças em condições iniciais podem se avolum ar em enorm es proporções. Assim , em princípio, um a borboleta solitária no Brasil poderia bater asas e provocar um tornado no Texas — ainda que um a infinidade de outras borboletas brasileiras pudesse bater asas freneticam ente a vida toda sem j am ais causar um a ventania digna de nota a quilôm etros dali. Claro que Lorenz não quis dizer que a borboleta “causa” o tornado no m esm o sentido que eu faço um a taça de vinho se quebrar se bato nela com um m artelo. Ele quis dizer que se essa borboleta em particular não tivesse batido suas asas naquele m om ento, a rede incalculavelm ente com plexa de ações e reações teria se com portado de form a diferente e o tornado j am ais teria se form ado — assim com o a Prim avera Árabe talvez nunca tivesse acontecido, pelo m enos não quando e com o aconteceu, se a polícia tivesse deixado Moham ed Bouazizi sim plesm ente vender suas frutas e legum es naquela m anhã em 2010.

Edward Lorenz m udou a opinião científica em relação ao ponto de vista de que há lim ites rígidos para a previsibilidade, um a questão profundam ente filosófica.4 Por séculos, os cientistas presum iram que o aum ento do conhecim ento deve levar a um a m aior previsibilidade, pois a realidade é sistem ática com o um relógio — um relógio incrivelm ente grande e com plicado, m as ainda assim um relógio —, e quanto m ais os cientistas aprendessem sobre seu m ecanism o, com o as engrenagens se aj ustam , com o funcionam os pesos e m olas, m aior seria a precisão com que poderiam captar suas operações com equações determ inistas e predizer o que ele vai fazer. Em 1814, o m atem ático e astrônom o francês Pierre-Sim on Laplace levou esse sonho a seu extrem o lógico:

Devem os portanto encarar o presente estado do universo com o o efeito de seu estado anterior e com o a causa desse que lhe sobrevirá. Um intelecto que a dado m om ento conhecesse todas as forças que anim am a natureza e a situação respectiva dos seres que a com põem , e que fosse suficientem ente vasto para subm eter esses dados à análise, abarcaria na m esm a fórm ula os

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m ovim entos dos m aiores corpos do universo e os dos átom os m ais tênues: nada seria incerto para ele, e o porvir, com o o passado, apresentar-se-ia perante seus olhos.

Laplace cham ou sua entidade im aginária de “dem ônio”. Se ele soubesse tudo sobre o presente, considerou Laplace, poderia prever tudo sobre o futuro. Ele seria onisciente.5

Lorenz j ogou água de chuva gelada nesse sonho. Se o relógio sim boliza a previsibilidade laplaciana perfeita, seu oposto é a nuvem lorenziana. A ciência do ensino m édio nos ensina que nuvens se form am quando o vapor d’água se j unta em torno das partículas de poeira. Isso parece sim ples, m as a m aneira exata com o um a nuvem particular se desenvolve — a form a que ela assum e — depende das com plexas interações de realim entação entre as gotículas. Para capturar essas interações, os criadores de m odelos de com putador necessitam de equações altam ente sensíveis a m inúsculos erros de efeito borboleta na coleta de dados. Desse m odo, m esm o que saibam os tudo que há para saber sobre com o as nuvens se form am , não serem os capazes de prever o form ato que um a nuvem em particular vai assum ir. Podem os apenas esperar e ver. Em um a das grandes ironias da história, os cientistas hoj e sabem vastam ente m ais do que seus colegas de um século atrás, e possuem capacidade de análise de dados vastam ente m aior, m as são m uito m enos confiantes nas perspectivas da perfeita previsibilidade.

Esse é um grande m otivo para a m etade “cética” de m inha posição de “cético otim ista”. Vivem os em um m undo em que as ações de um ser hum ano praticam ente im potente podem provocar um a reação em cadeia pelo m undo afora — ondulações na água que nos afetam a todos em graus variáveis. Um a m ulher m orando em um subúrbio em Kansas City pode achar que a Tunísia é outro planeta, e que sua vida não tem ligação com esse país, m as se ela fosse casada com um navegador da força aérea que partisse da Whitem an Air Force Base, nas proxim idades de sua casa, talvez ficasse surpresa em descobrir que as ações de um tunisiano obscuro levaram a protestos, que levaram a tum ultos, que levaram à queda de um ditador, que levou a protestos na Líbia, que levaram a um a guerra civil, que levou à intervenção da Otan em 2012, que levou às m anobras evasivas de seu m arido para desviar do fogo antiaéreo sobre Trípoli. Essa é um a conexão fácil de rastrear. Muitas vezes, as conexões são m ais difíceis de enxergar, m as estão a toda nossa volta, em coisas com o o preço da gasolina que pagam os no posto ou os trabalhadores desem pregados no fim da rua. Em um m undo onde um a borboleta no Brasil pode fazer a diferença entre apenas m ais um dia de sol no Texas e um tornado devastando um a cidade, é equivocado pensar que alguém possa enxergar m uito adiante no futuro.6

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O OTIMISTA

Mas um a coisa é reconhecer os lim ites da previsibilidade, e outra com pletam ente diferente é m enosprezar qualquer previsão com o um exercício fútil.

Aponte o m icroscópio para um dia na vida daquela m ulher que m ora em um subúrbio de Kansas City : às 6h30 da m anhã, ela guarda docum entos num a pasta, entra no carro, tom a o cam inho de sem pre para o trabalho e estaciona no centro. Com o faz todo dia útil de m anhã, passa pelas estátuas de leões e entra no edifício de inspiração grega da Kansas City Life Insurance Com pany. Em sua m esa, trabalha em planilhas por algum tem po, participa de um a teleconferência às 10h30, passa alguns m inutos no site da Am azon e responde e-m ails até as 11h50. Depois vai a um pequeno restaurante italiano para alm oçar com sua irm ã. A vida da m ulher é influenciada por m uitos fatores im previsíveis — do bilhete de loteria em sua bolsa à Prim avera Árabe que resulta nas m issões de voo de seu m arido sobre a Líbia até o fato de que o preço da gasolina acaba de subir cinco centavos por galão porque houve um golpe de Estado em algum país sobre o qual ela nunca ouviu falar — m as existe um igual núm ero de fatores, ou m ais, inteiram ente previsíveis. Por que ela saiu de casa às 6h30? Ela não queria ficar presa no engarrafam ento. Ou, dizendo de outra form a, ela previu que o trânsito estaria m uito m ais pesado m ais tarde — e com toda probabilidade tinha razão, porque a hora do rush é bastante previsível. Quando estava no carro, antecipava o com portam ento dos dem ais m otoristas constantem ente: eles param no cruzam ento quando o sinal fica verm elho; perm anecem em suas faixas e dão seta antes de entrar. Ela esperava que as pessoas que haviam ficado de participar da teleconferência às 10h30 de fato o fizessem , e tinha razão. Com binou de encontrar a irm ã ao m eio-dia no restaurante porque um cartaz com o horário do estabelecim ento dizia que estaria aberto nesse m om ento, e avisos de horário são um guia confiável.

Fazem os prognósticos m undanos com o esses rotineiram ente, enquanto outros, com o m esm o caráter rotineiro, fazem prognósticos que m oldam nossas vidas. Quando a m ulher ligou seu com putador, aum entou um pouco o consum o de eletricidade em Kansas City, assim com o todos os dem ais trabalhadores naquela m anhã, e coletivam ente eles provocaram um aum ento na dem anda de energia, com o fazem todo dia útil de m anhã a essa hora. Mas isso não criou problem as porque as com panhias produtoras de eletricidade antecipam esses picos e m odificam a saída de energia de acordo com eles. Quando a m ulher entrou no site da Am azon, o site destacou certos produtos que achou que ela poderia apreciar, um a previsão derivada de suas com pras e visitas passadas, bem com o as de m ilhões de outras pessoas. Constantem ente nos deparam os com operações preditivas com o essa na internet — o Google personaliza resultados de busca pondo as coisas que im agina que você vai achar m ais interessantes no topo

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—, m as elas operam com tanta sutileza que raram ente notam os. E depois há o lugar onde a m ulher trabalha. Sua com panhia de seguro de vida está no ram o de prever incapacitação e m orte, e realiza um bom trabalho. Isso não significa que eles sabem precisam ente quando vou m orrer, m as fazem um a boa ideia de quanto tem po alguém com m inha idade e perfil — sexo, renda, estilo de vida — deve viver. A Kansas City Life Insurance Com pany foi fundada em 1895. Se seus atuários não fossem bons previsores, teria ido à falência há m uito tem po.

Todas essas coisas em nossa realidade são previsíveis, e outras tantas m ais. Acabo de pesquisar no Google a hora do nascer e do pôr do sol em Kansas City, Missouri, e as obtive em m enos de um m inuto. Essas previsões são confiáveis, sej a para am anhã, depois de am anhã ou daqui a cinquenta anos. O m esm o pode ser dito de m arés, eclipses e fases da lua. Tudo pode ser predito a partir de leis científicas sistem áticas com o um relógio, com precisão suficiente para satisfazer o dem ônio previsor de Laplace.

Claro que cada um desses bolsões de previsibilidade pode ser abruptam ente furado. É m uito provável que um bom restaurante m antenha as portas abertas se estiver dentro do horário de funcionam ento inform ado, m as pode ser que isso não aconteça, por um a série de m otivos: o gerente perdeu a hora, um incêndio, o lugar foi à falência, um a pandem ia, um a guerra nuclear, um experim ento científico acidentalm ente criou um buraco negro que sugou o sistem a solar. O m esm o é verdade para qualquer outra coisa. Mesm o aquelas previsões de cinquenta anos do am anhecer e do poente podem estar erradas de algum m odo, se, em algum m om ento nos próxim os cinquenta anos, um a rocha espacial m uito grande colidir com o planeta e m odificar sua órbita em torno do sol. Não existem certezas na vida se atribuím os um a probabilidade não zero à invenção de tecnologias que nos perm itam descarregar o conteúdo de nossos cérebros na nuvem de um a rede de com putadores e ao surgim ento de um a sociedade futura tão próspera e voltada ao espírito público que o estado possa ser custeado por doações voluntárias.

Assim , a realidade é sistem ática com o um relógio ou nebulosa com o um a nuvem ? O futuro é previsível ou não? Essas são falsas dicotom ias, as prim eiras de m uitas que irem os encontrar. Vivem os em um m undo de relógios e nuvens e de um a vasta m ixórdia de outras m etáforas. A im previsibilidade e a previsibilidade coexistem de form a conflituosa nos sistem as inextricavelm ente entrelaçados que com põem nosso corpo, nossa sociedade e o cosm os. Até que ponto algo é previsível depende do que estam os tentando prever, quão adiante no futuro e sob que circunstâncias.

Vej a a área de Edward Lorenz. Previsões do tem po são em geral bastante confiáveis, sob a m aioria das condições, para alguns dias à frente, m as se tornam cada vez m enos precisas para três, quatro, cinco dias adiante. Muito além de um a sem ana, poderíam os perfeitam ente consultar nosso chim panzé que atira dardos.

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De m odo que não podem os dizer se o clim a é previsível ou não, apenas que o clim a é previsível até certo ponto sob determ inadas circunstâncias — e devem os ter m uito cuidado quando tentam os ser m ais precisos do que isso. Pegue algo aparentem ente tão sim ples quanto a relação entre o tem po e a previsibilidade: em geral é verdade que quanto m ais tentam os olhar adiante no futuro, m ais difícil é enxergar. Mas pode haver exceções prolongadas à regra. Prever a continuação de um prolongado m ercado em alta na bolsa pode se provar lucrativo por m uitos anos — até subitam ente se provar ser sua ruína. E predizer que os dinossauros continuariam a ocupar o topo da cadeia alim entar foi um a aposta segura por dezenas de m ilhões de anos — até que um asteroide ocasionou um cataclism o que abriu nichos ecológicos para um m inúsculo m am ífero que acabaria evoluindo para um a espécie que tenta prever o futuro. Leis da física à parte, não existem constantes universais, de m odo que separar o previsível do im previsível é um trabalho difícil. Não existe atalho.

Os m eteorologistas sabem disso m ais do que ninguém . Eles fazem um grande núm ero de previsões e costum am verificar sua precisão — e é por isso que sabem os que previsões de um e dois dias costum am ser bastante acertadas, ao contrário das de oito dias. Com essas análises, os m eteorologistas são capazes de aprofundar sua com preensão de com o o clim a funciona e aj ustar seus m odelos. Depois, tentam novam ente. Prever, m edir, revisar. Repetir. É um processo infindável de m elhoria gradativa que explica por que previsões clim áticas são boas e m elhoram lentam ente. Porém , deve haver lim ites para tais m elhorias, pois o clim a é o exem plo clássico da não linearidade. Quanto m ais à frente o previsor tenta enxergar, m aior é a oportunidade para o caos bater suas asas de borboleta e soprar as expectativas para longe. Grandes saltos na capacidade com putacional e o contínuo aperfeiçoam ento dos m odelos de previsão talvez em purrem os lim ites um pouco m ais para o futuro, m as esses avanços pouco a pouco se tornam m ais difíceis e as com pensações encolhem em direção ao zero. Até que ponto pode m elhorar? Ninguém sabe. Mas conhecer os lim ites presentes é em si m esm o um êxito.

Em tantos outros em preendim entos em que há m uita coisa em j ogo, os previsores estão tateando no escuro. Eles não fazem ideia da qualidade de suas previsões no curto, m édio e longo prazos — e nenhum a ideia de quão boas suas previsões podem vir a ser. Na m elhor das hipóteses, têm palpites vagos. Isso porque o procedim ento de prever-m edir-revisar opera apenas dentro dos lim ites rarefeitos da previsão high-tech, com o o trabalho de m acroeconom istas em bancos centrais, de profissionais de m arketing e das finanças em grandes em presas ou de analistas das pesquisas de opinião, com o Nate Silver.7 Com m ais frequência, as previsões são feitas e depois... nada. O grau de acerto raram ente é determ inado após o fato e quase nunca é feito com suficiente regularidade e rigor para que se possam extrair conclusões. O m otivo? Em geral, um problem a

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de dem anda: os consum idores de previsão — governos, em presas e público em geral — não dem andam evidência de acerto. Assim , não há m edição. O que significa nada de revisão. E, sem revisão, não pode haver m elhoria. Im agine um m undo em que as pessoas gostam de correr, m as não fazem ideia da velocidade de um ser hum ano m édio, ou da velocidade m áxim a que um a pessoa pode atingir, porque os corredores nunca concordaram com regras básicas — perm anecer na pista, com eçar a prova quando a arm a for disparada, term inar após um a distância especificada — e não há j uízes independentes e cronôm etros m edindo os resultados. Qual a probabilidade de que os tem pos dos corredores m elhorem nesse contexto? Não m uita. Os m elhores atletas estão correndo tão rápido quanto o ser hum ano é fisicam ente capaz? Mais um a vez, provavelm ente, não.

“Eu m e dei conta de com o a m edição é im portante para m elhorar a condição hum ana”, escreveu Bill Gates. “Você pode obter um incrível progresso se estabelecer um obj etivo claro e encontrar um a m edida que im pulsione o progresso em direção a esse obj etivo [...]. Isso pode parecer básico, m as é espantoso com que frequência não é feito e com o é difícil fazer direito.”8 Ele tem razão sobre o que é preciso para m otivar o progresso, e é surpreendente com o isso raram ente é feito em previsões. Mesm o esse sim ples prim eiro passo — estabelecer um obj etivo claro — não costum a ser dado.

Você pode pensar que o obj etivo da previsão é antever o futuro de m odo acurado, m as esse nem sem pre é o obj etivo, ou ao m enos não o único. Às vezes, as previsões são feitas para entreter. Pense em Jim Cram er, da CNBC, com seu bordão, “buuyah!”, ou em John McLaughlin, apresentador do The McLaughlin Group, berrando para os participantes de sua m esa-redonda preverem a probabilidade de um evento “num a escala de zero a dez, com zero representando possibilidade zero e dez representando a com pleta certeza m etafísica!”. Às vezes as previsões são usadas para prom over ideologias e estim ular a ação — com o os ativistas esperam fazer quando advertem sobre os horrores que nos espreitam a m enos que m udem os de com portam ento. Há tam bém a previsão “vestida para im pressionar” — com o a que os bancos fazem quando pagam um fam oso especialista para falar aos clientes ricos sobre a econom ia global em 2050. E algum as previsões são feitas para confortar — assegurando ao público que suas crenças estão corretas e o futuro vai transcorrer com o esperado. Militantes adoram essas previsões. Elas são o equivalente cognitivo de entrar num banho quente.

Essa m ixórdia de obj etivos raram ente é adm itida, o que torna difícil até m esm o com eçar a trabalhar no sentido da m edição e do progresso. É um a situação confusa, que não parece em vias de m elhorar.

E contudo essa estagnação é um grande m otivo para eu ser um cético otimista. Sabem os que em grande parte do que as pessoas querem prever —

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política, econom ia, finanças, negócios, tecnologia, vida diária — a previsibilidade existe, em algum grau, sob certas circunstâncias. Mas existe m uito m ais que não sabem os. Para os cientistas, não saber é em polgante. É um a oportunidade de descobrir; quanto m aior o desconhecido, m aior a oportunidade. Graças à — francam ente espantosa — falta de rigor em tantos dom ínios da previsão, essa oportunidade é im ensa. E, para aproveitá-la, tudo que tem os a fazer é estabelecer um obj etivo claro — precisão? — e levar a sério sua m edição.

Tenho feito isso durante a m aior parte de m inha carreira. A pesquisa que produziu o resultado do chim panzé atirando dardos foi a fase um . A fase dois com eçou no verão de 2011, quando eu e m inha parceira de pesquisa (e na vida), Barbara Mellers, lançam os o Good Judgm ent Proj ect (GJP) e convidam os voluntários para participar da previsão do futuro. Bill Flack foi um dos que respondeu. Assim com o m ilhares de outros naquele prim eiro ano, e m ais tantos outros m ilhares nos quatro anos que se seguiram . No total, m ais de 20 m il leigos intelectualm ente curiosos tentaram im aginar se os protestos na Rússia iriam se espalhar, se o preço do ouro iria despencar, se a Nikkei fecharia acim a dos 9500, se a guerra estouraria na península coreana e m uitas outras questões sobre assuntos globais desafiadores e com plexos. Variando as condições de experim entação, poderíam os m edir quais fatores m elhoraram a antevisão, por qual m argem , em que prazos e até que ponto poderiam ser boas as previsões se práticas m elhores fossem se acum ulando um as sobre as outras. Posto dessa form a, parece sim ples. Não foi. Tratou-se de um program a exigente que precisou de talentos e trabalho duro de um a equipe m ultidisciplinar baseada na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e na Universidade da Pensilvânia.

Por m aior que fosse, o GJP foi apenas parte de um esforço de pesquisa m uito m ais am plo patrocinado pela Intelligence Advanced Research Proj ects Activity [Atividade de Proj etos de Pesquisa Avançada em Inteligência, IARPA]. Não se deixe levar pelo nom e insípido. A IARPA é um órgão dentro da com unidade de inteligência que presta contas ao diretor da National Intelligence [Inteligência Nacional], e seu trabalho é dar apoio à pesquisa ousada que prom ete tornar o serviço de inteligência am ericano m elhor do que j á é. E grande parte do que faz o serviço de inteligência am ericano é prever tendências políticas e econôm icas globais. Por um a estim ativa grosseira, os Estados Unidos têm 20 m il analistas de inteligência aferindo tudo, de quebra-cabeças m inúsculos a grandes eventos, com o a probabilidade de um ataque surpresa de Israel às instalações nucleares iranianas ou a saída da Grécia da zona do euro.9 Até que ponto todas essas previsões são boas? Essa não é um a resposta fácil, pois a com unidade de inteligência, com o tantos grandes produtores de previsões, nunca se m ostrou disposta a gastar dinheiro para descobrir. Há vários m otivos para essa relutância, alguns m ais respeitáveis do que outros, m as falarem os disso depois. O que im porta é que esses procedim entos de previsão são críticos para a segurança

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nacional e contudo pouco pode ser dito com algum a confiança sobre quão bons eles são ou até m esm o se são tão bons quanto um a operação m ultibilionária envolvendo 20 m il pessoas deve ser. Para m udar isso, a IARPA criou um torneio de previsão em que cinco equipes científicas lideradas por pesquisadores de ponta na área com petiriam para produzir previsões precisas sobre o tipo de questões difíceis com as quais os analistas de inteligência lidam todos os dias. O Good Judgm ent Proj ect foi um a dessas cinco equipes. Cada um a se m anteria efetivam ente em seu próprio proj eto de pesquisa, livre para im provisar quaisquer m étodos que j ulgasse adequados, m as obrigada a subm eter previsões às nove da m anhã, zona de tem po oriental, todos os dias, de setem bro de 2011 a j unho de 2015. Exigindo que as equipes transm itissem as m esm as perguntas ao m esm o tem po, o torneio criou um cam po de j ogo equilibrado — e um rico estoque de dados sobre o que funciona, com que efetividade e quando. Ao longo de quatro anos, a IARPA apresentou cerca de quinhentas perguntas sobre assuntos m undiais. Os prazos foram m ais curtos do que em m inha prim eira pesquisa, com a vasta m aioria das previsões se estendendo por m ais de um m ês e m enos de um ano. Ao todo, reunim os m ais de 1 m ilhão de j uízos sobre o futuro.

No ano 1, o GJP suplantou o grupo de controle oficial em 60%. No ano 2, vencem os o grupo de controle em 78%. O GJP tam bém superou seus com petidores afiliados a universidades, incluindo a Universidade de Michigan e o MIT, por am pla m argem , de 30% a 70%, e suplantou até analistas de inteligência profissionais com acesso a dados confidenciais. Depois de dois anos, o GJP estava de tal form a levando a m elhor sobre seus com petidores acadêm icos que a IARPA largou as dem ais equipes.10

Entrarei em detalhes depois, m as quero destacar duas conclusões-chave que em ergem dessa pesquisa. Um a, a antevisão é real. Algum as pessoas — com o Bill Flack — a têm de sobra. Não são gurus ou oráculos com o poder de perscrutar décadas no futuro, m as possuem efetivam ente um a capacidade real, m ensurável, de avaliar até que ponto eventos com m uita coisa em j ogo têm probabilidade de ocorrer com três m eses, seis m eses, um ano ou um ano e m eio de antecedência. A outra conclusão é o que torna os superprevisores tão bons. Não se trata realm ente de quem sej am . É o que fazem . A antevisão não é um dom m isterioso concedido ao nascer. É o produto de m odos particulares de pensar, colher inform ação, atualizar convicções. Esses hábitos de pensam ento podem ser aprendidos e cultivados por qualquer pessoa inteligente, ponderada, determ inada. Pode até nem ser tão difícil assim de com eçar. Um resultado que m e surpreendeu particularm ente foi o efeito de um tutorial cobrindo alguns conceitos básicos que explorarem os neste livro e estão resum idos no apêndice dos dez m andam entos. Levou apenas cerca de sessenta m inutos para ler e m esm o assim m elhorou a precisão em m ais ou m enos 10% ao longo de todo o ano do torneio. Certo, 10% podem soar m odestos, m as foram conseguidos a um

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custo m uito baixo. E não se esqueça de que m esm o increm entos m odestos na antevisão m antidos no decorrer do tem po representam um a som atória. Falei sobre isso com Aaron Brown, um escritor, veterano de Wall Street e principal gerente de risco na AQR Capital Managem ent, um hedge fund com m ais de 100 bilhões de dólares em ativos. “É m uito difícil de enxergar porque não é dram ático”, afirm ou ele, m as, se for m antido, “é a diferença entre um vencedor constante que ganha bem e o cara que vive quebrado”.11 Um a j ogadora de pôquer de nível internacional que em breve irem os conhecer não poderia estar m ais de acordo. A diferença entre os bichos-papões e os am adores, disse ela, é que os bichos-papões sabem a diferença entre um a aposta 60/40 e um a aposta 40/60.

Mas se é possível m elhorar a antevisão sim plesm ente m ensurando-a, e se as recom pensas da antevisão m elhorada forem substanciais, por que a m ensuração não é um a prática-padrão? Grande parte da resposta a essa pergunta reside na psicologia que nos convence de saberm os coisas que na realidade não sabem os — por exem plo, se Tom Friedm an é um previsor preciso ou não. Vou explorar essa psicologia no capítulo 2. Por séculos, ela estorvou o progresso na m edicina. Quando os m édicos finalm ente aceitaram que sua experiência e percepções não eram m eios confiáveis de determ inar se um tratam ento funcionava, eles se voltaram para testes científicos — e a m edicina finalm ente com eçou a fazer rápidos avanços. A m esm a revolução precisa com eçar na previsão.

Não vai ser fácil. O capítulo 3 exam ina o que é necessário para testar previsões tão rigorosam ente quanto a m oderna m edicina testa tratam entos. É um desafio m aior do que pode parecer. No fim da década de 1980, elaborei um a m etodologia e conduzi o que foi, na época, o m aior teste de acerto das previsões dos especialistas políticos j am ais realizado. Um resultado obtido m uitos anos depois foi a piada que hoj e m e faz estrem ecer. Mas outra descoberta dessa pesquisa não recebeu nem de perto tanta atenção, ainda que fosse m uito m ais im portante: um grupo de especialistas apresentou um a antevisão m odesta, m as real. O que provocou a diferença entre os especialistas com antevisão e os que ficaram tão abaixo das expectativas que derrubaram a m édia para o nível de um chim panzé atirando dardos? Não era nenhum dom m ístico nem acesso a inform ação que os outros não tinham . Tam pouco qualquer conj unto de crenças particular. Na verdade, dentro de um a gam a de opiniões bastante am pla, o que eles pensavam não tinha im portância. Era como pensavam .

Inspirada em parte por esse insight, a IARPA criou seu inédito torneio de previsões. O capítulo 4 é a história de com o isso aconteceu — e a descoberta dos superprevisores. Por que eles são tão bons? Essa pergunta perm eia o livro do capítulo 5 ao 9. Quando você os conhece, é difícil não ficar adm irado com sua sagacidade, de m odo que talvez suspeite que é a inteligência que faz toda a

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diferença. Não é. Eles tam bém são notavelm ente proficientes com núm eros. Com o Bill Flack, m uitos possuem form ação avançada em m atem ática e ciência. Então é a arcana e secreta m atem ática? Não. Mesm o superprevisores entusiasm ados pela m atem ática raram ente se valem de seu instrum ental. Eles tendem tam bém a ser viciados em notícia que perm anecem por dentro dos últim os acontecim entos e regularm ente atualizam suas previsões, de m odo que você pode ficar tentado a atribuir seu sucesso às infindáveis horas passadas na em preitada. Porém , isso tam bém seria um erro.

A superprevisão de fato exige níveis m ínim os de inteligência, proficiência com núm eros e conhecim ento do m undo, m as qualquer um que leia livros sérios sobre pesquisa psicológica provavelm ente possui esses pré-requisitos. Então, o que eleva a previsão a um a superprevisão? Com o no caso dos especialistas dotados de antevisão real em m inha pesquisa inicial, o que m ais faz diferença é como o previsor pensa. Vou descrever isso em detalhe, m as, falando de m odo geral, a superprevisão exige um m odo de pensar que envolva m ente aberta, cuidado, curiosidade e — acim a de tudo — autocrítica. Tam bém exige foco. O tipo de pensam ento que gera j uízos superiores não vem sem esforço. Som ente um a pessoa determ inada pode fornecê-lo de form a razoavelm ente constante, e é por isso que nossas análises têm m uitas vezes encontrado no com prom isso com o autoaprim oram ento o indicativo m ais poderoso de desem penho.

Nos últim os capítulos, vou resolver um a aparente contradição entre as exigências de um j uízo qualificado e a liderança efetiva, responder ao que acredito serem os dois m ais fortes desafios de m inha pesquisa e concluir — apropriadam ente, para um livro sobre previsões — com um a consideração sobre o que virá a seguir.

UMA PREVISÃO SOBRE A PRÁTICA DE PREVISÕES

Mas talvez você ache que isso tudo está irrem ediavelm ente ultrapassado. Afinal, vivem os num a era vertiginosa de com putadores cada vez m ais potentes, de algoritm os incom preensíveis e m egadados. Em essência, a capacidade de fazer previsões que eu estudo envolve o j uízo subj etivo: são pessoas pensando e decidindo, nada m ais. Não chegou a hora de pôr um fim a esse cenário descuidado de palpites e conj ecturas?

Em 1954, Paul Meehl, um psicólogo brilhante, escreveu um livrinho que causou com oção.12 O livro revisava vinte estudos, m ostrando que especialistas bem inform ados predizendo resultados — se um aluno se sairia bem na faculdade ou se um a pessoa em liberdade condicional voltaria para a prisão — não eram tão precisos quanto sim ples algoritm os som ando indicadores obj etivos,

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com o testes de aptidão e históricos de conduta anterior. A alegação de Meehl incom odou m uitos especialistas, m as pesquisas subsequentes — hoj e m ais de duzentos estudos — m ostraram que na m aioria dos casos os algoritm os estatísticos superam o j uízo subj etivo, e, no punhado de estudos em que isso não ocorre, geralm ente ficam pau a pau. Um a vez que algoritm os são rápidos e baratos, ao contrário do j uízo subj etivo, um em pate j ustifica seu uso. A questão hoj e é indiscutível: quando você tem um algoritm o estatístico de validade com provada, use-o.

A descoberta nunca representou um a am eaça ao reinado do j uízo subj etivo, pois é m uito raro term os algoritm os de validade com provada para o problem a do m om ento. Era apenas pouco prático para a m atem ática desbancar o bom e velho j uízo hum ano — em 1954 e m esm o hoj e.

Mas avanços espetaculares na tecnologia da inform ação sugerem que estam os nos aproxim ando de um a descontinuidade histórica na relação da hum anidade com as m áquinas. Em 1997, o Deep Blue, da IBM, derrotou o cam peão m undial de xadrez Garry Kasparov. Atualm ente, program as de xadrez com ercialm ente disponíveis derrotam qualquer ser hum ano. Em 2011, o supercom putador Watson derrotou os cam peões do gam eshow televisivo Jeopardy!, Ken Jennings e Brad Rutter. Esse foi um desafio com putacional vastam ente m ais difícil, m as os engenheiros do Watson se saíram bem . Agora não é m ais im possível im aginar um a com petição de previsão em que um supercom putador dá um a surra não só em superprevisores, com o tam bém nos supersabichões. Depois que isso acontecer, continuará a haver previsores hum anos, m as, com o com petidores hum anos do Jeopardy!, só os assistirem os por diversão.

Assim , fui conversar com o engenheiro-chefe do Watson, David Ferrucci. Eu tinha certeza de que o Watson poderia facilm ente dar conta de um a pergunta sobre o presente ou o passado, com o “Quais foram os dois líderes russos que trocaram de função nos últim os dez anos?”. Mas estava curioso sobre suas opiniões a respeito de quanto tem po levará para o Watson ou um de seus descendentes digitais acertar questões com o “Dois im portantes líderes russos vão trocar de função nos próxim os dez anos?”.

Em 1965, o polím ata Herbert Sim on achou que estávam os a apenas vinte anos de um m undo em que as m áquinas poderiam fazer “qualquer trabalho de que o hom em é capaz”, o tipo de coisa ingenuam ente otim ista que as pessoas diziam na época, e um m otivo para Ferrucci — que trabalha com inteligência artificial há trinta anos — ser m ais cauteloso hoj e.13 A com putação cam inha a passos largos, observou Ferrucci. A capacidade de enxergar padrões está crescendo de m aneira espetacular. E o aprendizado da m áquina, com binado às prósperas interações entre o ser hum ano e a m áquina que alim entam o processo de aprendizado, prom ete m uito m ais avanços fundam entais no futuro. “Vai ser

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um a dessas curvas exponenciais em que estam os m eio que no fundo, hoj e”, disse Ferrucci.

Mas há um a vasta diferença entre “Que dois líderes russos trocaram de função?” e “Dois líderes russos trocarão de função outra vez?”. A prim eira é um fato histórico. O com putador pode ir lá checar. A segunda exige que o com putador forneça um a conj ectura em basada sobre as intenções de Vladim ir Putin, o caráter de Dm itri Medvedev e a dinâm ica causal da política russa, e depois integre essa inform ação em um parecer. As pessoas fazem esse tipo de coisa o tem po todo, m as isso não a torna fácil. Significa que o cérebro hum ano é prodigioso — porque a tarefa é absurdam ente difícil. Mesm o com o galopante avanço dos com putadores, o tipo de previsão que superprevisores fazem ainda está m uito fora de seu alcance. E Ferrucci não tem certeza se algum dia verem os um ser hum ano atrás do vidro no Sm ithsonian com um a placa dizendo “j uízo subj etivo”.

As m áquinas talvez se saiam m elhor em “im itar o significado hum ano” e portanto m elhor em predizer o com portam ento hum ano, m as “há um a diferença entre im itar e refletir significado e originar significado”, disse Ferrucci. Esse é um espaço que o j uízo hum ano sem pre vai ocupar.

Na previsão, assim com o em outros cam pos, continuarem os a ver o j uízo hum ano sendo substituído — para consternação dos colarinhos brancos —, m as tam bém verem os cada vez m ais sínteses, com o “xadrez estilo livre”, em que hum anos com com putadores com petem em equipes, recorrendo à indiscutível potência da m áquina, m as tam bém ocasionalm ente controlando-a. O resultado é um a com binação que pode (às vezes) derrotar tanto hum anos com o m áquinas. Para enxergar a dicotom ia hom em versus m áquina sob nova luz, com binações de Garry Kasparov e Deep Blue talvez se provem m ais robustas do que abordagens puram ente hum ana ou puram ente m áquina.

O que Ferrucci de fato vê ficar obsoleto é o m odelo do guru, que torna pueris tantas discussões: “Vou rebater sua polêm ica Paul Krugm an com m inha contrapolêm ica Niall Ferguson, e refutar seu editorial Tom Friedm an com m eu blog Bret Stephens”. Ferrucci vê um a luz no fim desse longo túnel escuro: “Acho que vai ficar cada vez m ais estranho” para as pessoas escutar o conselho de especialistas cuj as opiniões são em basadas apenas por seu j uízo subj etivo. O pensam ento hum ano é prej udicado por arm adilhas psicológicas, fato que se tornou am plam ente reconhecido apenas na últim a década ou perto disso. “Então o que espero é que o especialista hum ano se alie a um com putador para superar as lim itações e vieses cognitivos hum anos.”14

Se Ferrucci estiver com a razão — e suspeito que está —, no futuro terem os de com binar a previsão baseada em com putadores com o j uízo subj etivo. Assim , é hora de levar am bos a sério.

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Q

Ilusões de conhecimento

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UANDO O DERMATOLOGISTA VIU m anchas no dorso da m ão do paciente, ficou desconfiado e extraiu um pedaço de pele. Um patologista confirm ou que era carcinom a basocelular. O paciente não entrou em pânico. Ele tam bém era m édico. Sabia que essa form a de câncer raram ente se espalha. O carcinom a foi rem ovido e, por precaução, m andaram o paciente visitar um oncologista fam oso. O m édico especialista descobriu um caroço na axila direita do paciente. Havia quanto tem po aquilo estava ali? O paciente não sabia. O m édico disse que deveria ser retirado. O paciente concordou. Afinal de contas, o hom em era um a figura de renom e. Se ele dizia “tire”, quem iria discordar? A cirurgia foi m arcada.

Quando passou o efeito da anestesia e o paciente acordou, ficou surpreso ao ver seu peito todo enfaixado com bandagens. O m édico chegou. Sua expressão era som bria. “Preciso contar a verdade”, com eçou. “Sua axila está cheia de tecido canceroso. Fiz o m elhor que pude para extirpar e rem ovi seu m úsculo peitoral m enor, m as talvez não tenha salvado sua vida.”1 Essa últim a afirm ação foi um a tentativa m odesta de suavizar o golpe. Com o o doutor deixou bem claro, o paciente não tinha m uito tem po de vida.

“Por um m om ento, o m undo pareceu acabar”, escreveu o paciente m ais tarde. “Após um breve período de surpresa e choque, virei o m áxim o que pude de lado e chorei sem pudores. Não m e lem bro m uito m ais sobre o resto do dia.” Na m anhã seguinte, com a m ente lúcida, “form ulei um plano sim ples de com o passaria o resto de m inha vida [...]. Um a curiosa sensação de paz se abateu sobre m im após ter com pletado o plano, e peguei no sono”. Nos dias que se seguiram , visitas apareceram para oferecer conforto ao paciente da m elhor form a que

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podiam . Ele achou tudo bastante em baraçoso. “Logo ficou claro que estavam m ais constrangidas do que eu”, escreveu.2 Ele estava m orrendo. Isso era um fato. A pessoa tinha de m anter a calm a e fazer o que fosse necessário. Choradeira não servia para nada.

Esse episódio m elancólico aconteceu em 1956, m as o paciente, Archie Cochrane, não m orreu, o que é um a sorte, porque depois se tornou um a reverenciada figura na m edicina. O m édico especialista estava errado. Cochrane não tinha câncer term inal. Não tinha câncer nenhum , com o um patologista descobriu quando exam inou o tecido rem ovido durante a cirurgia. Cochrane ficou tão chocado com a suspensão de sua sentença de m orte quanto ficara ao recebê-la. “Eu havia sido inform ado de que o patologista ainda não dera seu parecer”, escreveu ele, m uitos anos depois, “m as em nenhum m om ento duvidei das palavras do cirurgião.”3

Esse é o problem a. Cochrane não duvidou do m édico especialista e o m édico não duvidou de seu próprio j ulgam ento e, assim , nenhum dos dois considerou a possibilidade de que o diagnóstico estivesse errado, tam pouco considerou aconselhável esperar pelo relatório do patologista antes de bater o m artelo quanto à vida de Archie Cochrane. Mas não devem os j ulgá-los com dureza dem asiada. É a natureza hum ana. Todos nós j á fom os apressados dem ais em chegar a um a conclusão sobre algo e lentos dem ais em m udar de opinião. E se não exam inarm os com o com etem os esses equívocos, continuarem os a com etê-los. Essa estagnação pode se prolongar por anos. Ou um a vida inteira. Pode até durar séculos, com o ilustra a longa e m iserável história da m edicina.

CEG OS DISCUTINDO

A parte “longa” é bastante óbvia. Pessoas tentam curar os doentes desde que as pessoas ficam doentes. Mas “m iserável”? Isso é m enos óbvio, m esm o para leitores fam iliarizados com a história da m edicina, porque “a m aioria das histórias da m edicina são incrivelm ente estranhas”, com o observou o m édico e autor britânico Druin Burch. “Elas fornecem um claro relato sobre o que as pessoas acreditavam que estavam fazendo, m as quase nenhum sobre se estavam com a razão.”4 O cataplasm a de ovo de avestruz aplicado pelos m édicos egípcios de fato curava fraturas na cabeça? Na antiga Mesopotâm ia, os tratam entos do Zelador do Reto Real de fato conservavam os retos reais saudáveis? E quanto às sangrias? Todo m undo, dos antigos gregos aos m édicos de George Washington, j urava que a prática era um tonificante m aravilhoso, m as funcionava? As histórias típicas em geral não falam a respeito disso, m as quando usam os a ciência m oderna para j ulgar a eficácia dos tratam entos históricos, fica claro, de

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m aneira deprim ente, que a m aioria das intervenções era inútil ou coisa pior. Até bem pouco tem po em term os históricos, não era incom um que um doente m elhorasse na ausência de um m édico, porque deixar a doença seguir seu curso natural era m enos perigoso do que o m al que o m édico podia infligir. E era raro que os tratam entos m elhorassem , independentem ente de quanto tem po passasse. Quando George Washington caiu doente em 1799, seus estim ados m édicos lhe fizeram incontáveis sangrias, m inistraram m ercúrio para causar diarreia, induziram o vôm ito e provocaram bolhas cheias de sangue aplicando ventosas quentes à pele. Um m édico na Atenas de Aristóteles, na Rom a de Nero, na Paris m edieval ou na Londres elisabetana teria balançado a cabeça, aprovando grande parte dessas práticas pavorosas.

Washington m orreu. Poderíam os presum ir que tais resultados fariam os m édicos questionar seus m étodos, m as, para ser j usto, o fato de Washington m orrer não prova nada sobre os tratam entos, senão que fracassaram em im pedir sua m orte. Pode ser que os tratam entos tenham aj udado, m as não o suficiente para vencer a doença que levou a vida do prim eiro presidente norte-am ericano, ou que não tenham feito a m enor diferença, ou, ainda, que tenham acelerado sua m orte. É im possível saber qual dessas conclusões é acertada apenas observando o desfecho da história. Mesm o com m uitas observações com o essas, pode ser difícil ou im possível que a verdade venha à tona. Sim plesm ente, há fatores dem ais envolvidos, prováveis explicações dem ais, incógnitas dem ais. E se os m édicos j á estão inclinados a achar que os tratam entos funcionam — o que de fato acontece, pois do contrário não os prescreveriam —, toda essa am biguidade provavelm ente será interpretada em favor da ditosa conclusão de que os tratam entos são de fato eficazes. É preciso fortes evidências e experim entação m ais rigorosa do que fazer sangrias no paciente e ver se ele m elhora para superar as ideias preconcebidas. E isso nunca foi feito.

Pense em Galeno, o m édico de im peradores rom anos do século II d.C. Ninguém influenciou m ais gerações de m édicos. Os escritos de Galeno foram a fonte indiscutível de autoridade m édica por m ais de m il anos. “Fui eu, e m ais ninguém , quem revelou o verdadeiro cam inho da m edicina”, escreveu Galeno com sua m odéstia de costum e. E contudo Galeno nunca conduziu nada parecido com um experim ento m oderno. E por que deveria? Experim entos são o que as pessoas fazem quando não têm certeza de qual é a verdade. E Galeno não se abalava com dúvidas. Todo resultado confirm ava que tinha razão, independentem ente de quão equívoca a evidência pudesse parecer para alguém m enos sábio do que o m estre. “Todo aquele que bebe deste tratam ento se recupera em breve tem po, a não ser aqueles para os quais ele não é de nenhum a aj uda, que m orrem todos”, escreveu ele. “É óbvio, portanto, que ele fracassa apenas nos casos incuráveis.”5

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repetidam ente na história da m edicina. São hom ens (sem pre hom ens) de forte convicção e profunda confiança em seu próprio bom senso. Eles adotam tratam entos, desenvolvem teorias ousadas para explicar seu trabalho, denunciam os rivais com o charlatães e m edicastros e divulgam suas descobertas com paixão evangélica. Assim sem pre foi desde os antigos gregos, e depois com Galeno, Paracelso, o alem ão Sam uel Hahnem ann, o am ericano Benj am in Rush. No século XIX, a m edicina am ericana presenciou batalhas acirradas entre m édicos ortodoxos e um a m ultidão de figuras carism áticas com curiosas novas teorias, com o o thom sonianism o, que sugeria que a m aioria das doenças se devia a um excesso de frio no corpo, ou a cirurgia orificial de Edwin Pratt, cuj a percepção fundam ental foi de que, nas palavras de um detrator, com exagero apenas m oderado, “o reto é o foco da existência, contém a essência da vida e realiza as funções em geral atribuídas ao coração e ao cérebro”.6 Na periferia ou na corrente dom inante, quase tudo isso estava errado, os tratam entos oferecidos indo dos inúteis aos perigosos. Alguns m édicos tem iam exatam ente isso, m as a m aioria continuava com o se nada estivesse acontecendo. A ignorância e a certeza perm aneciam os traços decisivos da m edicina. Com o observou o cirurgião e historiador Ira Rutkow, m édicos que furiosam ente debatiam os m éritos dos vários tratam entos e teorias eram “com o cegos discutindo as cores do arco-íris”.7

A cura para essa epidem ia de certezas ficou tentadoram ente próxim a de ser encontrada em 1747, quando um m édico naval, o britânico Jam es Lind, pegou doze m arinheiros sofrendo de escorbuto, dividiu-os em pares e deu a cada par um tratam ento diferente: vinagre, cidra, ácido sulfúrico, água do m ar, pasta de cortiça e fruta cítrica. Foi um experim ento nascido do desespero. O escorbuto era um a am eaça fatal para os m aruj os em viagens de longa distância e nem m esm o a segurança dos m édicos era capaz de esconder a futilidade de seus tratam entos. Assim , Lind resolveu dar seis tiros no escuro — e, num deles, acertou o alvo. Os dois m arinheiros que receberam frutas cítricas se recuperaram rápido. Mas, contrariam ente à crença popular, esse não foi um m om ento eureca que anunciou a m oderna era da experim entação. “Lind se com portava de um j eito que parece m oderno, m as não com preendia totalm ente o que estava fazendo”, observou Druin Burch. “Sua incapacidade de extrair um a conclusão do próprio experim ento foi tam anha que nem m esm o ele ficou convencido dos excepcionais benefícios de lim as e lim ões.”8 Por anos depois disso, os m arinheiros continuaram a sofrer de escorbuto e os m édicos, a prescrever rem édios inúteis.

Foi som ente no século XX que a ideia de estudos randôm icos controlados, m edições cuidadosas e poder estatístico passou a vigorar. “Será a aplicação do m étodo num érico ao obj eto da m edicina um a engenhosidade trivial e vã, com o sustentam alguns, ou um im portante estágio do desenvolvim ento de nossa arte,

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com o outros proclam am ?”, perguntou o Lancet em 1921. O estatístico britânico Austin Bradford Hill respondeu enfaticam ente que a segunda afirm ação era a verdadeira, e lançou o m odelo para a investigação m édica m oderna. Se pacientes idênticos em todos os aspectos fossem colocados em dois grupos, e os grupos tratados de form a diferente, escreveu ele, saberíam os que o tratam ento causou algum a diferença no resultado. Parece sim ples, m as é im possível na prática, porque não existem duas pessoas exatam ente iguais, nem m esm o gêm eos idênticos, de m odo que o experim ento será arruinado pelas diferenças entre os suj eitos testados. A solução reside na estatística: se designássem os aleatoriam ente pessoas a um grupo ou outro, quaisquer diferenças existentes entre elas seriam contrabalançadas se um a quantidade suficiente de suj eitos participasse do experim ento. Desse m odo podem os concluir com confiança que o tratam ento provocou algum as diferenças nos resultados observados. Não é perfeito. Não existe perfeição em nosso m undo caótico. Mas é m elhor do que sabichões coçando o queixo.

Hoj e, isso parece chocantem ente óbvio. Estudos randôm icos controlados agora são rotineiros. E, contudo, foi algo revolucionário, porque a m edicina antes nunca fora científica. Sem dúvida, ela ocasionalm ente colhera os frutos da ciência, com o a teoria m icrobiana das doenças e o raio X. E assum ia ares de ciência. Havia hom ens instruídos com títulos im pressionantes que conduziam estudos de caso e inform avam os resultados em palestras recheadas de term os latinos em universidades augustas. Mas, científica, não era.

Era ciência de culto à carga, expressão depreciativa cunhada bem m ais tarde pelo físico Richard Fey nm an para descrever o que aconteceu depois que as bases aéreas am ericanas da Segunda Guerra Mundial foram rem ovidas das ilhas do Pacífico Sul, encerrando o único contato dos ilhéus com o m undo exterior. Os aviões haviam trazido produtos m aravilhosos. Os ilhéus queriam m ais. Assim , “puseram -se a construir coisas com o se fossem pistas de aterrissagem , m ontando fogueiras nas laterais das pistas, fazendo um a cabana de m adeira para um hom em ficar sentado ali dentro com dois pedaços de pau na cabeça, com o fones de ouvido, e varas de bam bu se proj etando com o antenas — ele é o controlador —, e esperam que os aviões pousem ”.9 Mas os aviões nunca voltaram . Assim , a ciência de culto à carga possui a form a exterior de ciência, m as carece daquilo que a torna verdadeiram ente científica.

A m edicina carecia de dúvida. “A dúvida não é um a coisa a ser tem ida”, observou Fey nm an, “m as um a coisa de enorm e valor.”10 É o que im pulsiona a ciência adiante.

Quando um cientista lhe diz que não sabe a resposta, ele é um hom em ignorante. Quando lhe diz que tem um palpite sobre com o a coisa vai funcionar, está inseguro a respeito. Quando tem certeza

Referências

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