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Aluísio Azevedo e a irrupção dos ‘bestializados’ na cena literária

A publicação de O cortiço, em 1890, apesar de certos vícios ideológicos e narrativos que sua filiação naturalista enseja, marca a emersão definitiva na literatura brasileira das massas urbanas, deliberadamente esquecidas pelos autores românticos e com papel secundário na prosa machadiana, que sempre privilegiou os conflitos psicológicos do

indivíduo e concedeu mínima atenção à dimensão social e ao caráter épico-dramático dos sujeitos coletivos. A prosa anterior já havia consagrado algumas personagens de grande projeção em nosso imaginário, como a figura heróica e quase medieval do indígena em José de Alencar ou a mescla de pícaro e malandro que desponta nos capítulos folhetinescos das Memórias de um sargento de milícias, de manuel Antônio de Almeida. todavia, coube à obra de Aluísio Azevedo14 elevar ao primeiro plano da cena literária

aquela legião de tipos populares – de trabalhadores braçais e lavadeiras até malandros e rezadeiras – que, mesmo anônimos e destituídos de quaisquer direitos de cidadania, não apenas alimentaram a febril expansão da capital Federal, como também (re)inventaram formas de resistir ao controle social e de contornar as absurdas privações que padeciam. em meio à agonia do império, eram ainda capazes de alimentar sonhos de emancipação e progresso; mas as frustrações da jovem república logo terminariam por convertê-los na face mais incômoda e traumática de uma modernização repressiva e excludente.

essa massa de trabalhadores “livres” e de seres situados à margem da opressiva ordem social, espécie de contraface urbana da velha senzala colonial, sobrevive a duras penas graças a arranjos precários urdidos nas brechas das estruturas políticas burguesas. ela iria constituir, durante as primeiras décadas da república Velha, as

13 ensarilhar = emaranhar, embaralhar, enredar.

14 Aluísio tancredo gonçalves de Azevedo nasceu em 1857, em São luís, no maranhão, filho do vice-cônsul

português na cidade. Após os estudos secundários, vai para o rio de Janeiro, a convite do irmão, o escritor Artur Azevedo. morto o pai, regressa à terra natal e inicia a vida literária, cujo marco é a publicação de O mulato, em 1881, primeira obra naturalista de nossas letras. hostilizado por denunciar o preconceito racial e atuar na oposição, deixa de vez São luís e volta ao rio, onde continua a escrever. morreu em 1913, quando servia como cônsul em buenos Aires.

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hordas de ‘bestializados’ a quem o poder público, como em nenhuma outra cidade do novo regime, trataria de segregar e, se possível, expulsar do perímetro urbano.15

basta lembrar, a propósito, o “bota-abaixo” do prefeito pereira passos, derrubando mais de 800 moradias no centro do rio, em 1904, a pretexto de remodelar e sanear a metrópole. era a ‘civilização’ que chegava à capital Federal, apregoava o poder – e aos ‘bárbaros’ nada mais restava a não ser buscar novos abrigos (ampliando ainda mais a ocupação dos morros adjacentes) ou reagir de modo violento e incontido, como ocorreu na Revolta da Vacina, ao final do mesmo ano, em que as nobres intenções do sanitarista oswaldo cruz de erradicar a febre amarela acabaram soando como mais uma intromissão inaceitável das elites no curso da vida popular.

um século após a demolição dos cortiços e “cabeças-de-porco” da velha ordem impe- rial, os bestializados continuam a povoar a cidade moderna, agora espraiados pelas favelas e os grotões da periferia. mudam os cenários, mas o drama permanece o mesmo, con- forme nos ilustra a abertura do contundente romance Cidade de Deus, de paulo lins, no capítulo final deste livro. tudo, porém, principia com Aluísio Azevedo e o amplo painel composto em O cortiço. é verdade que o texto acima transcrito, seja pela linguagem, seja pela estrutura ou até mesmo a abordagem da narrativa, acusa uma clara influência do Naturalismo – estilo contemporâneo do Realismo, porém avesso à análise psicológica e adepto do positivismo e das teorias científicas (ou que assim se rotulavam) para “explicar” o caráter, as atitudes e o próprio destino final de suas personagens.

recomendamos que, após o exame do texto integral de O cortiço, o leitor pesquise os seguintes aspectos da narrativa:

•฀ Como as imposições do meio, da raça e da própria fisiologia humana justificam a maioria dos

conflitos que se desenrolam na vidadaquele grupo social?

•฀ Embora a linguagem obedeça à norma culta do idioma, de feição quase lusitana, que vocabulário

o autor emprega para descrever o cortiço e seus moradores?

•฀ Que efeito nos sugere o apelo constante às imagens sensoriais, sobretudo as impressões olfativas e

visuais, reunidas livremente em sucessivas sinestesias?

•฀ Como o Naturalismo aplica as idéias do “darwinismo social” do século XIX (segundo o qual as

sociedades humanas são regidas pelos princípios biológicos da seleção natural: os mais fracos são extintos e apenas os fortes sobrevivem)?

•฀ No “romance de tese” naturalista, as personagens não têm índole própria, são meros tipos

literários sem matizes psicológicos, fadados a cumprir o destino que lhes é imposto por fatores externos. Como isso afeta o português Jerônimo e a jovem Pombinha?

15 o termo foi cunhado pelo historiador José murilo de carvalho, em seu livro Os bestializados. Acerca do tema,

o apresentador da obra, nicolau Sevcenko, formula uma oportuna questão: “Se o Rio de Janeiro era a sede e a

cidade ideal do projeto republicano, por que razão ali, mais do que em qualquer outro lugar, se boicotou deliberadamente todas as possibilidades de consolidação da cidadania?” cf.: cArVAlho, José murilo de. Os bestializados: o Rio de

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mesmo que essa visão estreita da existência humana – que artistas como machado de Assis e graciliano ramos apreenderam de modo muito mais sutil e percuciente – desagrade ao público mais exigente, a narrativa de Aluísio Azevedo é compensada pela visível influência que este acolhe de Émile Zola (1840-1902), famoso autor de

Germinal (1885) – para muitos, o primeiro romance do proletariado na literatura universal –, e do português Eça de Queirós (1845-1900), cuja prosa vigorosamente anticlerical de O crime do Padre Amaro repercutiu bastante no brasil. inspirado em zola, Azevedo há de cultivar o gosto pelos vastos painéis sociais e a opção pelos su- jeitos coletivos, oprimidos pela voracidade do capital, como são os mineiros de carvão de Germinal ou os camponeses miseráveis de A terra. o objetivo do autor francês era aplicar à descrição dos fatos humanos e sociais um absoluto rigor científico, algo que seus discípulos nem sempre lograram; entrementes, a forma como procurou investigar as causas materiais das paixões humanas, elaborando uma larga obra baseada na sua experiência vital e em meticulosa pesquisa prévia, resultou numa valiosa contribuição para todos que lhe seguiram os passos.

por fim, cumpre advertir ao leitor mais entusiasmado que a consciência do escritor em O cortiço não possui um sentido dialético, tampouco assume um ponto de vista proletário ou de identidade explícita com os excluídos, ainda que, na opi- nião de alguns críticos, ele seja um dos raros “romancistas de massas” da literatura brasileira. mais cauteloso, Alfredo bosi salienta que o observador se posiciona do

alto, como um narrador onisciente, que distingue “entre a vida dos que já venceram, como João romão, o senhor da pedreira e do cortiço, e a labuta dos humildes que se exaurem na faina da própria sobrevivência”. e esse oblíquo discernimento do fenômeno social o fará conceituar o trabalho como a “moléstia nervosa” dos ricos, que nunca se saciam e padecem o ‘frenesi do lucro’, ou a “atividade cega, instintiva” que move o formigueiro humano.16

Ao lado de Aluísio Azevedo, estarão ainda os nomes dos cearenses Adolfo Caminha (1867-1897), célebre criador de A normalista (1893) e Bom Crioulo (1895), romance de grande repercussão pela temática inusitada que aborda (um triângulo amoroso formado por dois marinheiros homossexuais e uma portuguesa, que se apaixona pelo mais jovem dos marujos), Domingos Olímpio (1850-1906), autor de

Luzia-Homem (1903) e Manoel de Oliveira Paiva (1861-1892), que escreveu Dona

Guidinha do Poço por volta de 1891 (editado apenas em 1951, por iniciativa de lúcia miguel-pereira). os dois últimos, aliás, voltados para as agruras da paisagem serta- neja e as mazelas do latifúndio nordestino, representam um curioso contraponto agrário à hegemonia do mundo urbano na prosa naturalista, prova evidente de que a “importação de idéias” também deve ajustar-se às condições singulares de cada realidade socioespacial.

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Os Sertões (Campanha de Canudos) / I Parte – O Homem – Euclides da Cunha

Capítulo III – O SERTANEJO (fragmento)

O SERTANEJO é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda1 da sela. Caminhando,

mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada,18 no gesto

contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

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