• Nenhum resultado encontrado

os impasses do antigo sistema colonial

o texto i, aliás, incumbe-se magnificamente de descrever tais relações no âmbito de um espaço colonial ainda em formação, cuja economia era dirigida pela burguesia mercantil e por poderosos senhores de terra que se associavam para explorar um território de dimensões continentais, mas sem a menor autonomia política. embora a produção e a economia forjassem, pouco a pouco, uma consciência anticolonial, as estruturas de poder eram manejadas à distância pela coroa portuguesa, uma contradição aguda que irá acirrar-se cada vez mais. da mesma forma, o fruto do trabalho de milhares de escravos africanos, de outros tantos indígenas aprisionados pelos portugueses e dos homens “livres” que sonhavam prosperar no novo mundo não se destinava à jovem colônia, mas sim ao mercado mundial, em que portugal figurava como mero fornecedor de matérias-primas às potências européias.

não são poucos os “ressentimentos” nessa precária ordem social. Até 1549, quando tomé de Souza desembarca na bahia para iniciar o processo de colonização,

10

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

éramos praticamente uma nação indígena, com cerca de 230 tribos distribuídas de modo esparso ao longo da imensa costa e em pontos mais distantes do interior, des- de os pampas gaúchos até o sertão nordestino ou a selva amazônica. Sem possuir a complexa organização social das comunidades astecas, maias e incas, que chegavam a agrupar mais de dez milhões de pessoas, os nativos do território sob domínio portu- guês eram cerca de três milhões no limiar do século xVi. Ainda assim, sua presença cultural foi marcante na vida da jovem colônia: tupis e tupinambás, tamoios e gua- ranis, todos eles se sobrepõem aos lusitanos e fazem do tupi-guarani uma verdadeira “língua franca”, empregada amplamente pelos missionários religiosos, colonizadores e o conjunto da população na primeira fase de ocupação do país.

em 1587, na bahia, sede do governo colonial, havia 12 mil brancos, 8 mil indígenas e apenas 4 mil escravos africanos. A expansão do regime de latifúndio e da monocultura de cana, fumo e cacau estimulará, contudo, o chamado “tráfico negreiro”, trazendo ao país vários contingentes de escravos capturados na costa ocidental da áfrica (de Angola até congo e Senegal) e em moçambique, filhos de povos que também iriam povoar outras áreas coloniais, como as ilhas do caribe, dentre os quais se destacam o banto, o ioruba e o nagô. essa prática genocida já era comum para portugal desde 1450: à época da “descoberta” do brasil, mais de 150 mil africanos tinham sido ar- rancados de sua terra e remetidos ao ‘entreposto distribuidor’ em lisboa (em 1552, eles representavam 10% da população da capital portuguesa!).6

Além de nos legar uma total dependência do estrangeiro e uma absurda con- centração fundiária, a sociedade que se constitui entre nós abrigará, pois, desde as suas origens, profundas contradições étnicas e sociais. como a sede do sistema colonial luso se encontrava do outro lado do Atlântico, a surda disputa pelo poder nas capitanias fará com que se difunda o nepotismo, o arbítrio e as mais nefastas práticas inquisitoriais. como diz o poeta, havia a cada canto “um grande conselheiro”, que lhes queria governar “cabana e vinha” (ou seja, a vida doméstica e o próprio tra- balho de cada um); sua arrogância, como de praxe, não tinha limites: embora não soubessem cuidar da sua “cozinha” (ou, como dizemos hoje, não servissem nem para síndico), pretendiam governar “o mundo inteiro”. o clima de delação era insuportável: em cada porta, à espreita do vizinho, “um bem freqüente olheiro” pronto a fuxicar a

6 A história dos primeiros anos do tráfico português na áfrica nos é contada por José ramos tinhorão no livro Os negros em Portugal – uma presença silenciosa (editorial caminho, lisboa, 1988). os portugueses “filhavam” (seqüestravam) e traficavam negros desde o rio Senegal (cabo Verde e guiné) até a altura do rio zaire ou congo (São tomé e costa da mina). os escravos eram trocados por mantas coloridas, bacias de barbeiro, manilhas de latão e cavalos (14 negros por um cavalo, na região de gâmbia e Senegal, durante a segunda metade do século xV), sendo enviados para a europa e as “índias de espanha”, mas também servindo aos portugueses nas mais diversas atividades – empregados domésticos, trabalhadores do campo (na lavoura, derrubada de matas, etc.), estivadores nos portos, grumetes nos navios, auxiliares de marujos nos barcos fluviais, remadores de galés, tra- tadores de animais e vendedores de carvão, dentre outras – e até nos mais abjetos serviços municipais, como a retirada do lixo doméstico. Ver, a respeito, também: tinhorão, José ramos. Os sons dos negros no Brasil. Art editora, São paulo, 1988, pp. 11-12.

10

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

vida alheia para em seguida “o levar à praça e ao terreiro”. A estrofe final, porém, é o fecho de ouro do soneto, uma síntese irrepreensível do que era a cidade da bahia e sua estrutura social (símile do próprio brasil colonial), com “estupendas usuras no

mercado” e “todos os que não furtam muito pobres”, isto é, uma elite corrupta e ladina, já habituada ao roubo, à sonegação e à espoliação de um povo pobre e maltrapilho – e, por certo, alvo perfeito para a pena ferina de gregório, talvez o maior herdeiro entre nós da tradição satírica do trovadorismo medieval, que já se popularizara em portugal com as cantigas de escárnio e maldizer.

Ainda que os versos de gregório de matos guardem, à primeira vista, certa mágoa de intelectual e homem de letras espirituoso triturado pela lógica mercantil, que só se ocupava de “trocar” homens e mercadorias, eles nos sugerem que aquela sociedade não era um amálgama homogêneo de bandidos e trapaceiros, como nos costuma sugerir o senso comum. o que a retorcida linguagem do artista barroco nos atesta é que a riqueza se edificava à mercê de uma ordem acintosamente injusta, ou seja, por um amplo sistema institucional de exploração e pilhagem que relegava à miséria a maioria da população local. conforme adverte o historiador paulo caval- cante, antes de reiterar o perverso ideologema de que para a colônia vieram apenas larápios e degredados da pior espécie (e, por isso, o brasil não teria dado certo...), conviria bem mais reconhecer que, sob a égide do antigo sistema colonial, o roubo, o furto e a corrupção configuraram um certo tipo de prática social – o descaminho – “encoberta pelas formalidades oficiais, porém radicalmente ativa e penetrante, irradiada por todo o corpo social, inclusive os escravos”. contraface dialética dos

caminhos oficiais, “todos esses modos de furtar existiam e se reproduziam em função do contexto geral de exploração e não como decorrência de desvios morais, de uma cristianização imperfeita ou mentalidade bastarda”.7

Texto III

A Jesus Cristo Nosso Senhor – Gregório de Matos Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,

Da vossa alta piedade me despido8;

Antes, quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa que vos há ofendido Vos tem para o perdão lisonjeado.

7 cAVAlcAnte, paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). hucitec

/ FApeSp, São paulo, 2006, p. 58.

110

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

Se uma ovelha perdida e já cobrada9

Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Texto IV

A inconstância dos bens do mundo – Gregório de Matos Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a luz, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol e na luz falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstância.

Se a poesia satírica de gregório serve para pôr a nu as mazelas do antigo sistema colonial, sua obra religiosa e lírica também nos ajuda a compreender os dile- mas da era barroca. desde a segunda metade do século xVi, a europa protagonizava um profundo conflito ideológico e cultural. A reforma religiosa, empreendida por teólogos como o alemão martinho lutero (1483-1546) e o francês João calvino (1509- 1564), que afrontaram resolutamente o poder papal e os dogmas da igreja católica, já havia se consolidado na inglaterra, na holanda e em várias cidades às margens do reno e do báltico, mas viria a ser contida na espanha, na itália e até mesmo em parte da áustria e da Alemanha, que constituíam o império dos habsburgos. A ciência, estimulada pelas exigências de um mundo em expansão, desenvolvia-se de maneira extraordinária, sobretudo após as revelações do astrônomo polonês nicolau

111

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

copérnico (1473-1543) de que os planetas realizavam um duplo movimento (não apenas sobre o seu próprio eixo como também em torno do sol), o que, em certa medida, já prenunciava as conclusões do italiano galileu galilei (1564-1642) sobre a rotação da terra e as clássicas leis da mecânica celeste, estabelecidas pelo inglês isaac newton (1642-1727).

A “revolução copernicana” fomentara uma nova concepção científica do mundo. Arnold hauser salienta que a teoria de que a terra se move ao redor do Sol – uma afronta à antiga crença de que era o universo quem se movia em torno do nosso planeta – “mudou, para todo o sempre, o velho lugar designado ao homem, no universo, pela providência”. deixávamos de ser o centro do cosmos, e o próprio ser humano já não podia ser considerado “como o fim e o propósito da criação”. mais do que desacreditar o nosso posto central na ordem cósmica, a proposição de copérnico significou, em última instância, que o nosso mundo não possuía mesmo qualquer centro, sendo apenas um sistema contínuo e infinito submetido à validade universal das leis naturais.10

A resposta da igreja católica não tardou. buscando conciliar o ideário religioso do período medieval com as mudanças que o mercantilismo capitalista patrocina (cuja maior expressão espiritual, sobretudo na esfera artística, havia sido o renasci- mento), impõe-se a contra-reforma, cujo pólo de irradiação viria a ser a península ibérica. restaura-se a disciplina na poderosa instituição, que, em resposta à refor- ma protestante, realiza entre 1545 e 1563, em trento, na itália, um longo concílio ecumênico que procede a uma ampla reformulação do catolicismo.

embora a visão tradicional nos proponha uma contraposição maniqueísta entre o Barroco e o Renascimento, muitos críticos de arte preferem estabelecer um elo de plena continuidade entre os dois estilos. Wölfflin, por exemplo, frisa que a arte barroca representa não um declínio, mas a progressão natural da arte renascentista para um estilo que já não é táctil, mas sim visual e dotado de vários artifícios para dissimular aquilo que pretende expressar.11 hatzfeld, por sua vez, identifica algumas variantes ou

gerações nesse percurso, denominando de Maneirismo, a distorção e alargamento das formas do último renascimento, com aspectos ornamentais marcantes que já prenunciariam o Barroco. este, em sua acepção clássica, conjuga simultaneamente formas majestosas e sóbrias, além de apresentar notável tensão psicológica, anseio de paz

10 hAuSer, Arnold. História social da Literatura e da Arte. tomo i. 2ª ed. mestre Jou, São paulo, 1972, pp. 564-

565.

11 no Barroco, prevalece a caracterização pictórica dos objetos, isto é, desviada de seus limites e pautada na acumu-

lação de elementos, ao passo que no Renascimento ela é linear, ou seja, centrada em limites claros e precisos.

essa exuberância visual do estilo, patente na profusão de imagens e esculturas de santos e outras figuras do mundo celestial católico, também seria uma reação natural à severa iconografia do universo protestante, cujos templos eram despidos de imagens e predicavam a claridade absoluta, em detrimento do jogo de luz e sombra que a plástica barroca iria explorar. Ver, a respeito, WÖlFFlin, enrique. Conceptos fundamentales en la historia

112

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

espiritual e simplicidade nos enredos, configurando uma “evolução do renascimento hispanizado no exato momento em que se celebra o concílio de trento”.12 Já em sua

última fase, o Barroquismo indicia um rebuscamento extremo, com o uso de adornos sem qualquer função estrutural e o abuso nas descrições, repletas de metáforas que só visavam um efeito surpreendente sobre o público.

o crítico ilustra sua periodização com alguns nomes da literatura espanhola: o Maneirismo (que, segundo hatzfeld, se estende de 1570 a 1600 na espanha) é o momento de góngora (1561-1627), notável sonetista que exerceu enorme influência sobre a poesia lírica de gregório de matos; o Barroco, propriamente dito (situado entre 1600 e 1630), possui em cervantes (1547-1616), o genial autor de Dom Qui-

xote, sua expressão maior; e o Barroquismo (1630 a 1670) corresponde à geração de calderón de la barca (1600-1681), que compôs autos e comédias sobre temas históricos e religiosos, como a saborosa peça A vida é sonhar .

A “diAléticA FulminAnte” do bArroco

A leitura dos textos iii e iV nos permite entrever algumas das tensões e contra- dições latentes do universo barroco. o soneto dedicado à “inconstância” das coisas terrenas, por exemplo, é uma descrição lírica do novo mundo destituído de centros em que o homem pós-renascentista se situa, despojado de sua antiga importância e valor. A velha realidade dualista cristã, em que o ser humano goza da graça divina e compartilha uma existência superior junto ao criador, é superada por uma ordem homogênea e contínua, organizada “segundo um princípio, um todo coerente e vital, um mecanismo ordenado e eficiente”,13 que o poeta ainda não compreende

plenamente, mas ao qual se rende, consciente de que ele próprio é uma das partes sem a qual o todo não existirá.

o poema realiza, a seu modo, uma sutil revisão do clássico motivo do carpe

diem,14 que a poesia neoclássica retomará no século xViii. mais do que exortar ao

gozo imediato dos bens terrenos, como o próprio gregório fez em soneto dedicado a sua futura esposa maria de povos (“Goza, goza da flor da mocidade, / Que o tempo

trata a toda ligeireza”), ou denotar perplexidade e temor frente à fugacidade das coisas deste mundo, segundo a fórmula que matos transcreve do espanhol góngora (“Oh

não aguardes que a madura idade / Te converta essa flor, essa beleza, / Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.”),15 ele reafirma que o único bem constante na vida é a

inconstância – um provocante paradoxo que nos revela a essência dialética da for-

12 hAtzFeld, helmut. Estudios sobre el Barroco. 2ª ed. gredos, madrid, 1966, p. 70. 13 hAuSer, op. cit., p. 565.

14 Carpe diem – expressão latina, cunhado pelo poeta horácio (Odes, i, 11,8), que significa, literalmente, “aproveita

o dia [de hoje]”, numa alusão à efemeridade da existência e à convicção de que a felicidade consiste no uso comedido dos bens da vida.

15 guerrA, gregório de matos. “A maria de povos, sua futura esposa”. in: Poemas escolhidos. círculo do livro,

113

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

mulação barroca, capaz de equacionar, no plano da linguagem, as tensões que uma consciência dividida não logra superar.16

A certeza de que nada mais é perene ou imutável e de que a instabilidade afeta tanto os elementos físicos objetivos (a luz, o Sol), quanto os sentimentos e virtudes (a tristeza, a formosura) e as opções estéticas (o gosto da pena17), já fora magistralmente

consignada por camões em suas Rimas (“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.”). o mérito do artista barroco, contudo, é a sua habilidade na “alquimia dos contrários”: por meio de sua “dialética fulminante”, ele trata de converter a diferença em oposição, expressa em vários pares simétricos (luz x sombras,

dia x noite, alegrias x tristeza, etc.), que, ao final, nos sugerem uma identidade entre os diversos itens materiais e espirituais (sua inconstância).18

o texto iii também se vale desse jogo de contrários, mas agora sob um prisma religioso, em que as antinomias entre espírito e matéria cedem vez ao confronto entre culpa e perdão (irar x abrandar, ofender x lisonjear, perdoar x pecar, etc.). como observou o ensaísta mexicano octavio paz, há uma briga mortal entre esta vida e a outra, este mundo e o do além, o corpo e a alma – um antagonismo que penetra os domínios da linguagem e, em meio às suas inversões e retorções, nos faz ver a palavra como um autêntico “corpo vivo”.19

cultiSmo e conceptiSmo

ressalta-se novamente a força da linguagem: mais do que confessar o seu pecado, o artista trata de enredar a deus com uma teia verbal urdida pelo seu raciocínio engenhoso e ardiloso, que parodia a própria bíblia e a célebre “parábola do filho pródigo”.20 A tese do poeta é bem simples: são os pecadores, e não os inocentes, os

seres mais dignos da piedade divina (“quanto mais tenho delinqüido, vos tenho a perdoar

16 WiSniK, José miguel. “introdução”. in: guerrA, op. cit., p. 17.

17 o verso aludido (“Como o gosto da pena assim se fia?”) se presta a múltiplas leituras, já que “fiar”, além do signi-

ficado básico de “torcer ou reduzir a fio alguma matéria”, assume também a acepção de “confiar, entregar sob confiança” ou, ainda, “expor ao arbítrio ou capricho alheio”.

18 genette, gerard. “l’or tombe sous le fer”. in: Figures. Seuil, paris, 1966, pp. 29-38. traduzido por WiSniK,

artigo citado.

19 pAeS, octavio. Conjunciones y disyunciones. Joaquim moritz, méxico, 1969, p. 34.

20 A passagem está em lucas, 15, 11-32. cansado das tarefas da vida doméstica, um jovem pede a seu pai, dono de terras

e rebanhos, a parte que lhe cabe da herança familiar e se aventura pelo mundo, em busca de novas experiências. depois de dilapidar sua fortuna em contínuas festas e gozos mundanos, conhece a penúria, a solidão e a fome, padecendo as piores provações, como dormir ao relento e alimentar-se de restos alheios. por fim, decide regressar à casa paterna, onde é recebido com grande pompa, para desgosto do outro filho, que, durante a ausência do irmão, vira-se obrigado a trabalhar em dobro e, por isso, não aceita que o pai renda tantas homenagens à “ovelha desgarrada”. o episódio, por certo, não deve prestar-se a interpretações literais. Seu valor simbólico permite-nos que vejamos nele uma alusão aos ritos de passagem que um ser humano deve enfrentar, em cada estágio de sua vida, até atingir a maturidade: o filho “pródigo”, em verdade, demonstra uma coragem e iniciativa que seu irmão, submisso ao jugo paterno, jamais exibira. A alegria do pai é talvez o reconhecimento de que a dura experiência forjou um novo homem, já agora apto a ocupar o papel que a estrutura familiar lhe reservara.

114

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

mais empenhado”); de certa forma, os que se dispõem a argüir as normas ou papéis a nós impostos poderão ser condenados pela justiça dos homens, mas decerto serão absolvidos pelo pastor supremo – que, se não exercer a sua complacência, se arriscará a privar-se da fé que as ovelhas lhe devotam (“e não queirais, pastor divino, perder na

vossa ovelha a vossa glória”). gregório avaliava bem o alcance de suas palavras, já que também havia sido vítima das autoridades de sua época, que o forçaram a um exílio em Angola, no intuito de silenciar-lhe a arma mais ferina: o verso.

A redenção do poeta se dá, pois, nesse tortuoso e insólito jogo verbal, que tanto opera sobre o conteúdo retórico do texto quanto sobre a cuidadosa e criativa seleção dos signos explorados, configurando, em síntese, os dois procedimentos básicos da expressão barroca:

•฀Conceptismo – raciocínio lógico e engenhoso, destinado a convencer o leitor (ou ouvinte) da justeza de sua proposição (v. texto III);

•฀Cultismo – jogo de palavras, malabarismo verbal com que o poeta recria os signos lingüísticos, valendo-se de figuras estilísticas, trocadilhos ou eventual recomposição dos elementos mórficos.

o “boca do inferno” lança mão de ambos os artifícios em suas composições poéticas. Sua veia cultista, por exemplo, pode ser sobejamente ilustrada pela décima que transcrevemos abaixo, em que o poeta, de maneira acintosamente jocosa e provocativa, decompõe um vocábulo composto e explora a sugestiva polissemia de cada termo, seja no âmbito denotativo, seja no conotativo:

Texto V

A uma freira que satirizando a delgada fisionomia do poeta o chamou Pica-Flor Gregório de Matos

Se Pica-Flor21 me chamais,

Pica-Flor aceito ser, mas resta agora saber se no nome que me dais meteis a flor que guardais no passarinho melhor! Se me dais este favor, sendo só de mim o Pica, e o mais vosso, claro fica, que fico então Pica-Flor.

21 naquele tempo, o mesmo que beija-flor. com a decomposição do termo original (pica + flor), o autor explora a

115

O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

A oratória do padre António Vieira