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geração modernista: torrões de terra-roxa em terras de ouro e rosas

o poema de Manuel Bandeira12 ilustra como poucos a atitude iconoclasta da pri-

meira geração modernista. lido em meio a apupos e enorme estardalhaço pelo poeta

10 martelo = estrofes de versos decassílabos, comuns na poesia heróica ou satírica dos repentistas. 11 perau = barranco; declive acentuado que converge para um rio ou arroio (termo usado no Sul).

12 Manuel carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em recife (pe), em 1886, e morreu no rio de Janeiro em

1968, cidade para onde veio ainda adolescente, a fim de cursar o colégio pedro ii. estudou engenharia em São paulo, mas a tuberculose não lhe permitiu prosseguir a carreira. Sua poesia transita do Simbolismo para o modernismo, mas o uso do verso livre e a fina ironia fazem com que logo obtenha o respeito dos modernistas, sendo acolhido com grande entusiasmo pelos promotores da Semana de Arte Moderna de 22. é, sem sombra

de dúvida, um dos maiores poetas da língua portuguesa, com dezenas de títulos publicados no brasil e no exterior.

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O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

ronald de carvalho no palco do teatro municipal de São paulo, durante a segunda noite da Semana de Arte Moderna, em 15 de fevereiro de 1922, ele explicita o escárnio e o desprezo da nova geração pelos parnasianos e pós-parnasianos, como olavo bilac e coelho neto, cujo rigor estético e obsessão formal (o culto da “arte pela arte”) sofrem uma implacável caricatura ao longo do texto. bandeira os descreve como sapos, que “saem da penumbra” com os papos enfunados e se deslumbram com a luz. As remissões a bilac, aliás, são quase diretas: os versos da nona estrofe parodiam sem pudor a “profissão de Fé” do parnasiano, em que este compara a arte poética à ourivesaria (“Invejo o ourives quando

escrevo: / Imito o amor / Com que ele, em ouro, o alto relevo / Faz de uma flor.”) e proclama aos quatro ventos sua servidão à Forma (“Assim procedo. Minha pena / Segue esta norma, / Por

te servir, Deusa serena, / Serena Forma!”13), expressa em ‘normas’ e ‘técnicas’ de perfeição

formal que o modernista tratará de confiar à boca dos sapos.

Frise-se que “os Sapos” é um texto datado de 1918, que já denuncia com enorme veemência o espírito iconoclasta do autor e sua completa aversão à decadente estética parnasiana. bandeira retomaria o mote com o célebre poema-manifesto “Poética”14,

escrito alguns anos mais tarde, por meio do qual, além de rechaçar o “bom-tom” da

Belle Époque (“Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado”) e a submissão do fazer literário a outras esferas discursivas (“Estou farto do lirismo namorador/Político/

Raquítico/Sifilítico/De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.”), ele defende de maneira bastante ostensiva a autonomia do discurso poético (“– Não

quero mais saber do lirismo que não é libertação.”), declinando sua identificação com “o lirismo dos loucos” e dos “clowns de Shakespeare”. Além disso, a própria liberdade formal que o poeta advoga evidencia-se de modo bastante coerente em cada verso de sua “poética”, desde a absoluta falta de métrica e a constante ausência de rima até o gosto pelo vocabulário prosaico, simples (“lirismo funcionário público”) ou por vezes inusitado (“Será contabilidade tabela de co-senos”; “Raquítico / Sifilítico”), que retira da arte poética a aura de solenidade e nobreza com que esta se revestiu até o final do século xix.

o texto ii, por sua vez, revela-nos o valor da paródia para os escritores modernistas. todas as “releituras” que estes promovem da literatura mais canônica de seu país com- portam sempre esse “contracanto” dialético por meio do qual se ‘reverencia’ uma obra antológica de nossas letras (como é o caso da “canção do exílio”, de gonçalves dias), mas, simultaneamente, também se estigmatiza aquilo que ela possui de mais débil e anacrônico. Ainda assim, é curioso notar como Oswald de Andrade15 mantém uma

13 bilAc, olavo. “profissão de Fé”. in: Poesias. 22ª ed. Francisco Alves, São paulo, 1946, pp. 5-10. 14 o referido poema abre o capítulo 6 da i parte deste livro, dedicado ao estudo dos “estilos de época”. 15 José Oswald de Sousa Andrade nasceu em São paulo, em 1890, e morreu na mesma cidade em 1954. era filho

de uma família bastante rica, o que lhe permitiu viajar cedo para a europa, onde travou contato com os artistas de vanguarda da França e da itália. tornou-se, assim, um dos maiores promotores do modernismo no brasil, escrevendo

inclusive dois manifestos célebres do movimento: o Pau-Brasil (1924) e o Antropofágico (1928). Além da vasta produção literária, destacou-se ainda por seu engajamento político, sob visível influência do ideário comunista.

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O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A

relação afetiva com os versos de g. dias, apropriando-se do nacionalismo ufanista do poeta romântico para convertê-lo em uma espécie de “provincianismo progressista”, o que até certo ponto nos atesta a convicção da intelligentsia paulistana de que seu estado e sua capital eram a “locomotiva” do desenvolvimento nacional.

contudo, essa feição dinâmica e cosmopolita de São paulo jamais poderia dissimular a origem oligárquica de sua burguesia (barões do café que ascendem a capitães de indústria), a qual sempre aspirou a um papel hegemônico na vida política do país, esquecendo-se de que as demais oligarquias regionais também almejavam o poder central e sabiam articular-se entre si para governar a velha “república dos coronéis”. nem tampouco con- seguiria ocultar a sua permanente sedução diante do estrangeiro, em última instância a razão de ser de uma cultura agroexportadora que dependia do mercado externo para o escoamento de seu produto e dele importava não apenas artigos de consumo, como também uma vasta gama de bens simbólicos da indústria cultural ianque e européia. Vejamos, pois, como tal contradição foi magnificamente apreendida na prosa de ficção de um dos maiores talentos de sua geração, o poeta e prosador Mário de Andrade16,

um torrão de terra-roxa em meio a tantas terras, ouros e rosas. Texto III

Amar, verbo intransitivo (fragmentos) – Mário de Andrade

Mas não tem dúvida: isso da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem escapadas nem imprevistos. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar. Diante da natureza não é assim. Diante da vida é assim. Decisão: viajaremos hoje. O latino falará: Viajaremos hoje! O alemão fala: Viajaremos hoje. Ponto final. Pontos de exclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse... [...]

Eis aí uma das coisas com que Fräulein não se dava bem. Pra ela era preciso entender sempre o significado das palavras senão não compreendia mesmo. Estes brasileiros?!... Uma preguiça de estudar!... Qual de vocês seria capaz de decorar, que nem eu, página por página, o dicionário de Michaelis pra vir para o Brasil? não vê. Porém quando careciam de saber, sabiam. Adivinhavam. [...]

– Eu acho milhor,1 Laura. Francamente: acho. Fräulein falava tudo pra ele, abria os olhos dele e

ficávamos descansados, ela é tão instruída! Depois pregávamos um bom susto nele. (Se ria.) Ficava curado e avisado. Ao menos eu salvava a minha responsabilidade. Depois não é barato não! tratei Fräulein por oito contos! Sim senhora: oito contos, fora a mensalidade. Naturalmente não barateei. Mais caro que o Caxambu que me custou seis e já deu um lote de novilhas estupendas. Mas isso não tem importância, o importante é o nosso descanso. [...]

16 Mário raul de morais Andrade nasceu em 1893, em São paulo, onde faleceu em 1945. Formou-se pelo conser-

vatório dramático e musical, que mais tarde o acolheu como professor de história da música. era um homem eclético e um artista polígrafo, que, além de participar ativamente do movimento modernista, desempenhou

diversas atividades (etnólogo, folclorista, professor de estética) e se dedicou a diversos gêneros literários (poesia, romance, conto, crônica e ensaio).

17 observe que o autor, fiel ao espírito modernista, adota ortografia própria, a fim de valorizar as formas variantes

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O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A Texto IV

Macunaíma – Mário de Andrade

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar.18 De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si19

o incitavam a falar exclamava: – Ai! que preguiça!...

e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba20, espiando o trabalho

dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns21 diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma

cunhatã22 se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha as mãos nas graças dela, cunhatã

se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru23 pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede

da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar. Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente. [...]

mário de Andrade: de Jeca a macunaíma, o enigma