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Formas da era moderna: a crônica, o conto, a novela e o romance.

os manuais de teoria literária identificam, nos períodos ditos “clássicos” da literatura ocidental (da Antigüidade greco-romana até o renascimento), três gran- des gêneros literários, por meio dos quais poetas e prosadores expressam distintos conteúdos e atitudes diante do mundo: o lírico, o épico e o dramático.

essa tripartição tradicional sofre, porém, significativas revisões a partir do ro- mantismo, cuja proposta estética, sob o impulso das transformações advindas da nova era urbano-industrial burguesa, se contrapõe em muitos aspectos à poética do classicismo. durante o século xix, com a consolidação da imprensa e da indústria gráfica, impõem-se novas formas literárias (como a crônica e o romance) que, por vezes, serão capazes de combinar em uma única obra traços essenciais dos três gêneros mais consagrados.

convém ainda destacar que, em suas origens, a classificação das espécies literárias não pode ser dissociada da própria hierarquia que rege a organização da sociedade. os gêneros de maior prestígio são, invariavelmente, aqueles mais afeitos ao gosto e às preocupações da aristocracia, ao passo que os gêneros “menores” se relacionam a temas e estruturas identificados com as classes populares. Veja-se, por exemplo, a divisão feita pelo filósofo grego Aristóteles, que buscou sistematizar o conhecimento estético de seu tempo na obra A arte poética: ele considera que os gêneros “maiores” são a epopéia e a tragédia, quase sempre protagonizadas por personagens de sangue “nobre”, enquanto os “menores” seriam a comédia e a sátira, nas quais as figuras de origem popular aparecem com maior destaque.

de certa forma, ecoa sobre a distinção de Aristóteles a secular oposição entre o “clássico” e o “popular”, que se estende a todas as manifestações artísticas do mundo ocidental, como é o caso da música, em que as obras de harmonia mais complexa, compostas por artistas quase sempre patrocinados pelas elites (igreja, nobreza ou a própria burguesia), recebem o rótulo de clássicas e as mais simples, ou de mais fácil execução, muito difundidas entre as classes despossuídas, são chamadas, com um tom pejorativo, de populares.

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em sua História social da literatura e da arte, ao analisar as grandes epopéias da grécia Antiga, como a Ilíada e a Odisséia (cuja autoria se atribui a homero, embora muitos não as julguem obra individual nem popular, mas sim produção anônima de cortesãos talentosos e artistas de razoável cultura literária), Arnold hauser não hesita em afirmar que o ambiente dos poemas homéricos ainda é “integralmente aristocrático” e só revela interesse por príncipes e nobres: “o vulgar homem do povo nunca é invocado e o soldado comum não merece referência”.1

hauser também observa que a tragédia é a criação artística mais representativa da singular democracia2 ateniense: nela se distinguem com toda clareza os principais

conflitos de sua estrutura social. o teatro-festival de Atenas não constituiu jamais um teatro do povo: o verdadeiro teatro popular daquela época era a farsa mimada, “que, não sendo subvencionada pelo estado, não tinha de receber diretivas do poder e punha, em prática, os seus princípios artísticos, atendendo apenas à experiência imediata que lhe provinha do contato com o público”.3 A farsa não oferecia ao povo

dramas de requintada estrutura artística, encenados de modo heróico-trágico por personagens nobres e sublimes, como o fazia a tragédia, mas sim episódios breves, esquemáticos, que retratavam a vida cotidiana mais trivial.

A cultura se cindia entre dois mundos, como ocorrerá também nas cortes européias da era moderna. A tragédia era expressão de uma literatura “alta” e seus autores, em última instância, eram verdadeiros negociantes de arte para o estado, que lhes remunerava as peças encenadas, mas obviamente não permitia a apresen- tação daquelas que fossem contra os interesses das classes dominantes. Já a farsa constituía uma forma bastante “popular”, cujo objetivo não era educar ou instruir, mas sim distrair o público. todavia, ela se perdeu com o decorrer do tempo: se essa produção por acaso tivesse sido preservada, a história dos gêneros literários talvez devesse ser reescrita nos manuais de literatura.

Felizmente, há sempre artistas geniais a nos demonstrar que os limites entre o

erudito e o popular são muito mais tênues do que supõe o mero preconceito das elites. no brasil, em especial, alguns músicos oriundos das classes menos abastadas já nos provaram que a arte não se resume a um gênero mais “elevado”, nem tampouco é um privilégio de classe. desde a era colonial, com o padre José maurício (um mes- tiço de vida atribulada que se tornou o maior compositor do barroco brasileiro),

1 o autor ainda acrescenta, citando o historiador A. r. burn: “Em todo Homero não há um único caso de um plebeu se elevar acima da classe em que veio ao mundo.” e, por fim, lembra que nas epopéias nunca se encontra uma crítica verdadeira aos reis ou à aristocracia. in: hAuSer, Arnold. História social da Literatura e da Arte. 2ª ed. mestre Jou, São paulo, 1972. tomo i, p. 102.

2 regime que apenas formalmente fazia jus aos princípios democráticos: as mulheres (a quem cabia cuidar da

economia doméstica) e os escravos não participavam da vida pública e eram proibidos de assistir às reuniões na ágora, a praça do mercado e das assembléias da pólis, em que apenas os homens livres deliberavam sobre o futuro da cidade-estado.

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até o século xx, com o inigualável pixinguinha (o mestre negro do chorinho, cujas criações são freqüentemente comparadas à arte do alemão Johann Sebastian bach), a riqueza musical do país, a exemplo das artes plásticas e da literatura, jamais esteve restrita aos salões palacianos.

cientes de tantas contingências históricas, vejamos agora os traços essenciais dos três gêneros “clássicos”: o épico, o lírico e o dramático.

Texto I

Os Lusíadas – Luís de Camões

Canto Primeiro

As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.

4 designação clássica da antiga ilha do ceilão, situada no oceano índico, a Sudeste da índia, onde os portugueses

aportaram em 1505. desde sua independência, em 1972, passou a chamar-se república do Sri lanka.

5 terras pagãs, ou seja, “privadas da religião cristã”.

6 o “sábio grego” é uma alusão a ulisses, cujas façanhas foram cantadas por homero em A odisséia; o troiano

refere-se a outro herói épico, enéias, protagonista da Eneida, de Virgílio.

7 “Alexandro” nomeia o famoso Alexandre magno, o grande, rei da macedônia. trajano foi um imperador

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O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A I. O ÉPICO

é o gênero das narrativas solenes, de exaltação dos feitos de um povo ou institui- ção, exteriorizando sentimentos coletivos e restaurando um passado de glórias. na abertura do poema de luís de camões, por exemplo, o autor já anuncia solenemente de que matéria tratará: as grandes conquistas empreendidas sob o impulso das armas pelas figuras ilustres (os “barões assinalados”) de portugal, disseminando o novo rei- no por terras orientais, muito além da longínqua ilha do ceilão (“taprobana”).

A exemplo de outros clássicos do gênero (Ilíada, Eneida e Odisséia), após a pro- poSição do tema o poeta procede à inVocAção das musas, para que nunca lhe falte “engenho e arte” ao cantar sua epopéia:

“E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado Foi de mim vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente”8

é oportuno destacar que, muito embora os textos de natureza narrativa costumem ser enunciados na 1ª ou 3ª pessoa pronominal (conforme a posição assumida pelo narrador, que poderá ou não participar das peripécias narradas na obra), o relato épico privilegia a 3ª pessoa, já que o narrador está distante dos feitos grandiosos que ele canta, todos eles eventos do passado. por outro lado, ele vale-se muitas vezes da 2ª p. (do singular ou, até mesmo, do plural), como atesta o tratamento dispensado pelo poeta às suas musas (“E vós, Tágides minhas, tendes em mim um novo engenho ardente”), artifício que termina por conferir maior solenidade e grandeza aos fatos narrados.

mais adiante, o poeta enuncia a dedicAtóriA àquele que, na sua visão, con- tribuiu decisivamente para o sucesso da empreitada: d. Sebastião, rei de portugal. Vê-se que o artista está consciente de que sua obra é uma sublimação da ideologia de expansão colonial ultramarina da jovem nação, ainda em formação, cujos feitos marítimos correspondem, em última instância, às vitórias da nascente burguesia, a qual se associa à monarquia a fim de assegurar o êxito da empresa mercantil:

“Vós, poderoso Rei, cujo alto império

O sol, logo em nascendo, vê primeiro;”9

8 cAmõeS, Os Lusíadas. canto primeiro, quarta estrofe. As tágides são as musas do rio tejo, principal via fluvial

portuguesa, de onde partiam as embarcações rumo às índias. “grandíloquo” é o tom solene e eloqüente que o poeta deseja conferir a seus versos.

9 cAmõeS, Os Lusíadas. canto primeiro, oitava estrofe. A imagem reiterada pelo artista é um velho ideologema

colonial: todos os impérios da era moderna pretenderam estender-se até as terras do sol nascente, ou seja, até os rincões mais orientais da ásia e oceania.

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As peripécias, enfim, têm início, condensando o conteúdo fundamental da obra. toda a ação transcorre sob a severa assistência dos deuses, que por vezes interferem diretamente no destino seguido pelas personagens. essa intervenção do maravilhoso sobre o real é uma herança visível da fórmula greco-romana, em que os deuses do olimpo favorecem ou perseguem as figuras heróicas de cada epopéia concebida. em Os Lusíadas, porém, mesclam-se elementos da mitologia grega e da religião cristã, numa nítida expressão do conflito filosófico que o renascimento instaura ao retomar os valores estéticos da Antigüidade clássica. descrevem-se, então, as desventuras da expedição comandada por Vasco da gama rumo às índias orientais, símbolo da determinação e grandeza do povo português em romper o desafio proposto pelos mares.

Os Lusíadas representam, talvez, o último dos grandes poemas épicos escritos até o início da época moderna. o advento da era burguesa ajuda a dissolver a “soleni- dade” aristocrática desse gênero, que ainda se faz representar em textos menores de autores que cultivam a tradição clássica, como é o caso, no brasil, do poemeto “Vila rica” (palco histórico da inconfidência mineira), do escritor árcade cláudio manuel da costa (1729-1789), e “o caçador de esmeraldas” (narrativa das desventuras do bandeirante Fernão dias leme), do parnasiano olavo bilac (1865-1918). há também forte influência do gênero na obra Os Sertões, de euclides da cunha (1868-1909), narrativa densa e eloqüente da luta travada pelos camponeses refugiados em canu- dos, na bahia, contra as tropas federais a soldo da “república dos coronéis”.

Ao longo do séc. xx, o épico, de certa forma, irá sobreviver em algumas nar- rativas maravilhosas cujos elementos fantásticos e a ação mais vigorosa parecem exercer forte sedução sobre o público. no cinema e na literatura, em geral, o gênero se perpetua inclusive nas obras de ficção científica, como é o caso da famosa série

Jornada nas estrelas, reinvenção cinematográfica dos velhos ingredientes da epopéia greco-romana. A exaltação dos atributos heróicos de um grupo social, personificados em um jovem personagem de sangue nobre, ou a furiosa intervenção de criaturas mitológicas no transcurso da ação também estão presentes em O senhor dos anéis, cuja transposição para o cinema se tornou um sucesso estrondoso de bilheteria nos cinco continentes.

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O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A Texto II

Meus oito anos – Casimiro de Abreu Oh! souvenirs! printemps! aurores! – Victor Hugo Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! Como são belos os dias Do despontar da existência! – Respira a alma inocência Como perfumes a flor; O mar é – lago sereno, O céu – um manto azulado, O mundo – um sonho dourado, A vida – um hino d’amor!

Texto III

Soneto XI – Dante Alighieri