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o ciclo regionalista de 30: a força das vidas secas no ‘país do carnaval’

publicado originalmente em 1938, Vidas secas conserva, após sete décadas, uma extraordinária atualidade. A impotência e subserviência do vaqueiro diante do pa- trão e dos poderes constituídos (flagrante no capítulo em que o sertanejo se depara com o soldado amarelo na árida caatinga, mas não logra vingar-se da humilhação que o trêmulo e mirrado policial lhe infligira no povoado) correspondem hoje ao constrangimento e ao desconforto que um trabalhador assalariado experimenta no interior de uma agência bancária, quando se vê obrigado a solicitar um empréstimo para saldar os compromissos que seus baixos salários não podem honrar. é possível que muita coisa tenha mudado desde a aparição do romance: talvez os filhos das

vidas secas agora estejam freqüentando a escola, para aprender a ler e calcular, quem sabe por métodos mais modernos, um pouco distintos daquela matemática empírica mas eficaz de Sinha Vitória. Fora dos muros escolares, contudo, a aritmética dos patrões continuará a divergir da sua e, padecendo as agruras do neoliberalismo tupi- niquim, eles logo ouvirão alguma arenga similar à ‘explicação’ dada pelo fazendeiro (“a diferença era proveniente de juros.”)

o alagoano Graciliano Ramos27 é, sem sombra de dúvida, o maior nome de

uma geração que surge em nossas letras com a publicação de A bagaceira, do pa- raibano José Américo de Almeida (1887-1980), em 1928, curiosamente o mesmo ano em que mário de Andrade publica o seu intrépido Macunaíma. o romance de José Américo tem seus méritos, inegavelmente, sobretudo por reavaliar os eixos de interpretação da situação nordestina (o social passa a prevalecer sobre o fisiográfico,

27 Graciliano Ramos nasceu em quebrângulo (Alagoas) em 1892 e veio a falecer no rio de Janeiro em 1953.

realizou estudos secundários em maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. prefeito de palmeiras dos índios (Al) entre 1928 e 1930, redigiu um informe oficial de raro talento literário, fato que atraiu a atenção de José lins do rego e outros escritores sobre a sua figura. dirigiu ainda, de 1930 a 1936, a imprensa e a instrução do estado, travando contato com os principais narradores do ciclo regionalista, dentre eles Jorge Amado e raquel de queirós. às vésperas do estado novo, em 36, foi preso pela polícia de getúlio Vargas, acusado de participação no levante de 35, experiência que ele registra nas páginas magistrais de Memórias do cárcere. coerente com suas posições políticas, filia-se ao pcb em 1945 e visita os países socialistas da europa, anotando suas impressões no volume Viagem (1953). escreveu algumas obras-primas da nossa ficção (São Bernardo, Vidas secas, Angústia) e é considerado, ao lado de machado de Assis e guimarães rosa, um dos três maiores romancistas da literatura brasileira.

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há uma denúncia contundente da oposição entre o brejo e o sertão e da injusta ordem socioeconômica vigente na região) e perceber o peso do legado agrário no curso da evolução nacional, mas sua escrita ainda acusa traços da narrativa naturalista do final do século xix, como o determinismo e fatalismo com que se caracterizam as personagens, em particular o velho mote da ressonância de culturas e ritos “primi- tivos” sobre o espírito do ser “civilizado”. por isso, sua aparição ao lado da rapsódia do “herói sem nenhum caráter”, é um marco emblemático dos rumos que seguirá nossa modernidade. conforme já foi dito mais acima, a modernização sem ruptura entre nós possui dois pólos (um mais urbano e cosmopolita, outro mais telúrico e ‘regional’), que pressupõem dois projetos narrativos (um mais afeito ao experi- mentalismo das vanguardas européias, outro mais vinculado à tradição romanesca do autêntico realismo) e defendem distintas feições de sociedade. A surda disputa entre eles sinaliza mudanças na trajetória espacial do país: a ordem molecular (fase de dominação formal do capital) da república Velha torna-se o espaço monopolista (etapa de dominação real do capital, agora industrial) dos anos 30-50, cujo agente oficial da modernização é o estado.

A literatura também almejava interferir no curso desse processo. A audaciosa proposta de renovação poética e narrativa postulada pela primeira geração moder- nista (1922-1930), integrada por mário, oswald e seus pares, havia atingido elevado grau com os exercícios de intertextualidade e paródia empregados em Macunaíma. era, para muitos, uma concepção paulista de modernidade. contudo, a produção literária difundida no restante do país, em particular a ficção nordestina da segunda geração modernista (1930-1945), termina por impor-se no imaginário coletivo nacional. Além da notável produção de Graciliano Ramos, os romances do baiano Jorge Amado,28 do paraibano José Lins do Rego29 e da cearense Rachel de Queirós,30 em

28 Jorge Amado de Faria nasceu em itabuna (bahia), em 1912, e morreu em Salvador, capital baiana, em 2001.

cresceu na fazenda de seu pai, ouvindo desde menino as histórias das pretas velhas, o que decerto estimulou sua notável imaginação fabuladora. Fez o curso primário em ilhéus (bA) e depois estudou em Salvador e no rio de Janeiro, onde conhece alguns escritores que o animam a publicar seu primeiro romance, O país do carnaval, em 1931. Sua primeira fase literária possui nítida influência das idéias socialistas, que o farão inclusive engajar- se na oposição ao estado novo e eleger-se deputado pelo pcb em 1946. A partir de 1958, distancia-se da vida partidária, abranda o tom político-ideológico e escreve romances mais “pitorescos”, de grande apelo popular (e enorme sucesso nas adaptações para o cinema e a tv), como Gabriela, cravo e canela (1958), Dona Flor e seus dois

maridos (1966) e Tieta do agreste (1976).

29 José Lins do Rego nasceu em pilar, na paraíba, em 1901, e morreu no rio de Janeiro, em 1957. Viveu a infância

no engenho do avô materno, que retratou em Menino de engenho (1932), fez o ensino médio em João pessoa e cursou direito em recife, onde conheceu os mentores do grupo modernista do nordeste, como J. Américo

de Almeida e gilberto Freyre. em 1935, vai para o rio, mas sua ficção, como a obra-prima Fogo morto (1943), abordará sempre temas da região natal.

30 Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, no ceará, em 1910, e morreu no rio de Janeiro, em 2003, onde ocupava

uma cadeira na Abl. Sua prosa expressa a trajetória ideológica da escritora: a etapa inicial inclui obras de forte conteúdo político-social, como O Quinze (1930) e Caminho de pedra (1937), que atestam a simpatia da escritora pelos ideais socialistas durante uma época de agudo conflito ideológico no brasil e na europa (estado novo, ii guerra mundial, etc.); a etapa final, porém, é bem conservadora, como as crônicas escritas para a grande imprensa do país.

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especial, constituem até hoje leitura obrigatória nas escolas de ensino médio, sendo reconhecidos, ao lado da ampla e variada obra do gaúcho Érico Veríssimo,31 como

a máxima expressão da literatura brasileira na década de 1930.

Vanguardas x regionalismo: ainda as