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episódios significativos marcam a transição do século xix para o xx no país dos coronéis. desde a abolição da escravatura, em 1888, e a imediata proclamação da República, em 1889, até a Semana de Arte Moderna, em 1922 (mesmo ano de fundação do partido comunista no país), muitas águas rolaram no rio caudaloso da história. A despedida do império foi precedida de um monumental baile na ilha Fiscal, no rio de Janeiro, com o seu palácio iluminado por milhares de velas e os salões ornamentados com balões e lanternas venezianas. como é praxe nos momen- tos de crise, a elite instalada no poder ostentou a máxima pompa e riqueza: três mil convidados deliciaram-se até o raiar do novo dia com cascatas de camarão e fartas libações de vinho e champanha. em meio ao luxo e à fantasia, a família imperial buscava amenizar a sua derrocada, já prenunciada por graves conflitos políticos nas décadas de 1870 e 80, dentre eles a Questão Religiosa e a Questão Militar.1

como diria um belíssimo samba-enredo do g. r. e. S. império Serrano, enquanto a suntuosidade nos acenava e alegremente sorria, “algo acontecia / era o

1 A Questão Religiosa refere-se à disputa travada entre a igreja católica e a maçonaria, de 1872 a 1875, à qual se

associa a figura de d. pedro ii, acusado de manter vínculos com os maçons. o imperador puniu os bispos que não toleravam a linguagem maçônica de seus padres e isso irritou o papa pio ix, causando um desgaste desnecessário à corte. A Questão Militar estendeu-se de 1884 a 1887 e contrapôs diretamente importantes oficiais do exército

a políticos monarquistas e conservadores, que não aceitavam o posicionamento público dos militares sobre temas como a abolição da escravatura, apoiada por estes. dentre os punidos e posteriormente “perdoados” por d. pedro ii estava o marechal deodoro, figura que seria decisiva para a instituição da república.

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fim da monarquia.”2 embora não se alterasse a correlação de forças entre as elites

tupiniquins e as classes populares, ingressava-se em uma nova etapa de nossa for- mação socioespacial, a fase liberal-oligárquica da expansão capitalista no brasil, caracterizada pela expressiva exportação de capitais e a aceleração da acumulação primitiva interna. esta foi impulsionada pelas divisas obtidas com o café3 e outros

produtos agrícolas (como o algodão, o cacau e a cana-de-açúcar, já desvalorizada no mercado internacional), além do extrativismo vegetal, com o “ciclo da borracha” na Amazônia, cujos seringais propiciaram à região uma era de fausto e opulência, ainda hoje visível no esplendor do teatro municipal de manaus, suntuosa edificação que acolheu os maiores artistas da época, inclusive o célebre tenor italiano enrico caruso (1873-1921).

contudo, seria de fato a monocultura do café a maior responsável pela meta- morfose política e socioespacial ao longo dessa fase. Ainda que o advento da Repú- blica Velha viesse a contemplar as expectativas das diversas oligarquias regionais, que se distribuíam de forma horizontal ao longo do país-continente e controlavam onipotentes as estruturas de poder municipais e estaduais,4 a riqueza dos cafezais

favoreceu a diferenciação vertical da burguesia cafeeira assentada no Sudeste. des- de a segunda metade do século xix, transfigura-se a paisagem da região: criam-se ferrovias, aparelham-se os portos de Santos e do rio de Janeiro, estimula-se a imi- gração e, com o fim da escravatura, o ingresso de sucessivas levas de trabalhadores assalariados oriundos da europa (italianos, alemães e eslavos, dentre outros) e da ásia (japoneses, em particular), que se espraiarão de São paulo até o rio grande do Sul. o acúmulo de capitais permite ainda que a aristocracia do café financie o crescimento da atividade industrial, sobretudo na década de 1910, quando a crise suscitada pela i guerra mundial restringe a importação de produtos europeus. Surge, então, o operariado fabril, personagem destacada das lutas sociais que explodem no período, apesar de sua completa dissociação do movimento agrário – um mal histórico do país, cujos trabalhadores do campo e da cidade, ao contrário das classes dominantes, raramente conseguem se unir.

A aliança dos lavradores com o proletariado urbano nunca foi além dos panfletos do pcb. o bloco operário-camponês que os comunistas defenderiam na década de 1920 jamais conheceu atividade orgânica. quando a insatisfação ameaçava a

2 “os cinco bailes da história do rio”, de Silas de oliveira, Yvonne lara e bacalhau, carnaval de 1965 (ano do

iV centenário de fundação da cidade do rio de Janeiro).

3 entre 1821 e 1830, o café respondia por 18% do total de exportações brasileiras. em 1870, já era responsável

por 50% das nossas matérias-primas exportadas. A partir de 1871, colhiam-se cinco milhões de sacas do grão, cerca de metade da produção mundial. cf.: “o café”. in: História do Brasil. 2ª ed. Folha da manhã / zero hora, São paulo / porto Alegre, 1997, p. 131.

4 Alguns geógrafos estabelecem uma relação direta entre a estrutura geopolítica do país e o poder do latifúndio.

os milhares de ‘municípios’ criados no brasil são, em sua grande maioria, apenas a extensão político-adminis- trativa de um núcleo agrário sob a égide do coronel local. cf.: moreirA, rui. O movimento operário e a questão

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vertente dos dominantes, os coronéis das fazendas e os capitães da indústria logo se reconciliavam e se aliavam contra o risco de uma unidade popular. o mundo das letras, pelo visto, nunca atinou para esse dispositivo tão eficiente. Se não bastasse a natureza essencialmente urbana da narrativa moderna, sobretudo do romance (gênero surgido com a revolução industrial, a ascensão dos valores burgueses e a difusão da imprensa), os nossos “homens letrados”, fossem eles livres-pensadores ou ficcionistas, teimavam em transplantar para nossa terra os paradigmas e ideologemas do Velho mundo, macaqueando verdades alheias e promovendo, com “as idéias fora de lugar”, sucessivas derrotas da dialética no seio do movimento social e da árida batalha ideológica que então se iniciava. Ainda assim, tal limitação não inviabiliza o aparecimento de alguns escritores excepcionais, cuja prosa nos desvela, com o cinzel sutil da ficção, as tensões que movem a vida real desde o ocaso da monarquia até as primeiras décadas republicanas, em meio aos discursos eloqüentes e vazios de seus contemporâneos da Belle Époque, para os quais a literatura seria apenas o “sorriso da sociedade”.

Texto I

Memórias póstumas de brás Cubas (fragmentos) – Machado de Assis

AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS Capítulo I / Óbito do autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa5 foi outro berço; a

segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos de reis e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora

5 campa = cobertura rasa de sepultura.

6 nome dado pelos tradutores gregos aos cinco primeiros livros da bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

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a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um louvor ao nosso ilustre finado.”

[...]

Capítulo XI / O menino é pai do homem

Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de menino diabo; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo –, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um “ai, nhonhô!”, ao que eu retorquia: “– Cala a boca, besta!” Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram

também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático,8 egoísta e algo contemptor9 dos homens,

isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras.

[...]