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mário de Andrade: de Jeca a macunaíma, o enigma da identidade nacional

Vivendo em São paulo desde o final do século xix até a metade do séc. xx, mário de Andrade foi uma testemunha privilegiada da transição lenta e gradual que a burguesia paulista sofreu ao longo da Belle Époque e da chamada “república Velha”. nas páginas de Amar, verbo intransitivo ele nos relata a história da família Sousa costa, cujo patriarca é um rico pecuarista que deixa a casa da fazenda para morar em uma mansão no bairro mais tradicional de São paulo: higienópolis. em seguida, ele con- trata uma preceptora para seu filho primogênito, uma professora alemã de origem

18 Sarapantar = assustar, espantar.

19 outro uso estabelecido pela singular convenção ortográfica do escritor: a conjunção se, cuja tonicidade é bem

mais acentuada do que o pronome homógrafo, será sempre grafada com i.

20 paxiúba = palmeira típica dos igapós, que mede entre 10 e 15 m de altura.

21 guaimum = forma variante de guaiamum: espécie de caranguejo que habita a costa brasileira. 22 cunhatã = forma variante de cunhantã: termo tupi que designa a mulher adolescente, moça. 23 macuru = espécie de balanço, formado por talos, em que as crianças sobem sem perigo.

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prussiana, paradigma perfeito de educação para as classes dominantes tupiniquins. Fräulein elza, porém, não deveria apenas ministrar aulas de latim clássico ou de música: ela estava encarregada de dirigir a iniciação sexual do impetuoso carlos, porque o pai não o via como um adolescente, mas sim como um touro de raça que não pode degenerar suas crias.

os valores rurais povoam as pautas de vida ditadas pelo pater familiae. o uni- verso agrário mantém-se vivo em um imaginário que parece reduzir tudo e todos a meras refrações do poder fundiário. curiosamente, o romance apresenta uma linguagem moderna, com referências constantes aos novos padrões estéticos e às novidades vindas do exterior (o cinema de hollywood, os meios de comunicação de massa, etc.). mário se vale de uma sintaxe telegráfica e muito brasileira, modifica a ortografia das palavras (“milhor” / “si”, em lugar da conjunção se”) e adota outros procedimentos de vanguarda. no entanto, ele o faz com certa moderação, porque sabe que a fórmula da “mezcla” – já concretizada em buenos Aires – é algo ainda impossível no brasil.

Macunaíma, por sua vez, é uma obra capital para que compreendamos a pró-

pria essência de nossa experiência periférica de modernidade. o “herói sem nenhum caráter”, descrito desde o i capítulo com as tintas de ser preguiçoso, oportunista,

perverso e libidinoso, tem sido interpretado pelo ‘senso comum’ como um símbolo do próprio povo brasileiro, quando, em realidade, seus traços o situam muito mais próximo das elites tupiniquins. é claro que, para desgosto de alguns modernistas, sua letargia e indolência podem associar-se ao marasmo de um Jeca Tatu, o caboclo pobre e atrasado que pasmava à porta de sua choupana, conforme esclarece com rara pertinência a pesquisadora Vasda bonafini landers.24 Alguns aspectos, porém,

o associam também ao adolescente Carlos de Amar, verbo intransitivo, sobretudo a sensualidade inata do jovem, acentuada no indígena, e a perspicácia intuitiva de quem prefere adivinhar a aprender com rigor e disciplina, traço genético do ‘herói sem nenhum caráter’.

não seria exagero, aliás, considerá-lo um neto extraviado de Brás Cubas, o “de- funto-autor” de machado de Assis que, ao fazer-se de morto, relata cousas e causos admiráveis do mundo dos vivos. como o avô cínico e maligno, Macunaíma também preza judiar das criaturas inferiores e não ignora o valor do dinheiro ou dos bens materiais. diante de tais atributos, com quem de fato se parece este malandro das nossas letras? é um retrato do nosso povo ou uma caricatura burlesca dos velhos

coronéis? Algumas décadas mais tarde, ao escrever A ópera do malandro, chico buarque nos ajudaria a reinterpretar, com seus versos memoráveis, o significado ambíguo e

24 os dois são renitentes preguiçosos, impenetráveis ao progresso e se encontram em “estado natural”, primitivo,

“não civilizado”. por meio deles, tanto lobato quanto mário “falavam metaforicamente sobre as circunstâncias socioeconômicas que atingiam o homem do brasil levando-o à total alienação”. cf.: lAnderS, Vasda bonafini.

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cáustico da malandragem tupiniquim, que sempre esteve associada ao ritmo singular de expansão do regime capitalista em nosso país.25

A verdade, afinal, é que mário estava consciente de que, à diferença dos vizinhos portenhos e da vigorosa “cultura de mezcla” construída às margens do prata, ainda não se dispunha de uma síntese da nacionalidade no brasil dos anos 20-30. destituí- dos de “identidade” própria, não podíamos conceber uma mitologia ou idealizar a cidade, como fizera J. l. borges com buenos Aires, ao inventar as orillas (um espaço fictício nos arredores da metrópole, povoado de figuras heróicas e legendárias); nem tampouco conjugar o urbano e o agrário em uma única instância, como coube a ricardo güiraldes quando escreveu Don Segundo Sombra (1926), elegendo o gauchismo como um estratagema perfeito para reafirmar a identidade nacional sem esquecer as marcas do mundo rural.

por outro lado, após a lição de machado de Assis em Brás Cubas, a preocupação estética do modernista já não é mais a mímesis (ou seja, a reinvenção pela ficção das contradições do real), mas sim a paródia. escrito por puro prazer, quase de “brinca- deira”, durante as férias do autor em Araraquara, Macunaíma reverencia ou expurga eventos capitais da literatura brasileira, desde a poesia satírica de gregório de matos (eco imortal do barroco em nossas letras) e os relatos dos primeiros cronistas e via- jantes (caminha, Anchieta, Saint-hilaire) até o formalismo decadente dos últimos parnasianos (coelho neto, ruy barbosa). polêmica no plano ideológico, a história (ou “rapsódia”) contada por mário também representa um desafio notável à crítica literária, já que ela é, por um lado, uma recopilação das lendas indígenas que o naturalista alemão Koch-grünberg recolhera entre roraima e o orinoco (reunidas a mitos africanos e a canções ibéricas e brasileiras) e, por outro, uma mistura de estilos narrativos onde se destaca um tom épico-lírico de lenda, uma veia cômica de crônica e a sedutora paródia.26 por fim, o ‘rap’ do herói sem nenhum caráter brinca

com os ritmos da “língua brasileira” falada e debocha da língua portuguesa escrita, o que salta aos olhos na célebre “carta às icamiabas”, plágio assumido de textos dos cronistas coloniais e discursos do baiano ruy barbosa.

tamanha complexidade e pioneirismo literários não poderiam, por certo, ser plenamente reconhecidos à época de sua publicação (1928). por isso, é até compreen- sível que Macunaíma só fosse redescoberto em 1969, quando Joaquim pedro de An- drade o transpôs para o cinema, em produção estrelada por grande otelo e paulo José (o herói na infância e adulto), com a participação luminosa de dina Sfat (a

25 Sem espaço no “brasil-grande” da ditadura militar, o ‘malandro pra valer’ sucumbiu aos novos tempos: “aposentou a navalha”, casou-se e, “dizem as más línguas”, passou a trabalhar, “mora lá longe e chacoalha num trem da Central”, ao passo que, à sombra do novo regime, prospera o “malandro com aparato de malandro oficial, malandro candidato

a malandro federal” e, sobretudo, o “malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.” mais uma vez, indagamos: quem é o malandro, afinal? cf. holAndA, chico buarque de. “homenagem ao malandro.” in: Ópera do malandro. lp philipS 6349.400/401, rio de Janeiro, 1979.

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guerrilheira ci) e Jardel Filho (o gigante pietro pietra). Fato análogo ocorreria com a peça O rei da vela, de oswald de Andrade, escrita em 1933, mas proibida durante trinta anos e só montada em 1967, já em plena ditadura militar, graças à corajosa iniciativa de José celso martinez corrêa e do teatro Oficina (Sp). de certa maneira, a derrota dos paulistas para a ampla frente oligárquica que getúlio articula em 30 contribui para o aparente ‘ostracismo’ dessas obras no cenário estético nacional. A nova década assistirá, pois, ao auge do romance regionalista e à vigorosa projeção dos valores rurais no imaginário coletivo nacional, prova cabal de que, no brasil, qualquer semelhança entre política e ficção jamais terá sido mera coincidência...

Texto V

Vidas secas – Graciliano Ramos

Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear nas vazantes uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito. Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se. Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De repente estourava:

– Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa.

Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.

Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.

Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.

Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia

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o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.

O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.

[...]

o ciclo regionalista de 30: a força das vidas