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geração romântica: em busca da “cor local” e da identidade nacional

esta “canção do exílio”, escrita em 1843 por Gonçalves Dias15 em coimbra,

portugal, onde o poeta realizava seus estudos de direito, é decerto o poema mais recitado pelos estudantes nos bancos escolares. não faltam motivos, de forma e conteúdo, para tamanha popularidade. em primeiro lugar, a acentuada musicalidade de seus versos (todos eles heptassílabos, isto é, redondilhas maiores, uma medida bem ao gosto da tradição oral do brasileiro), aliada à simplicidade de suas rimas (quase

12 tacape = arma ofensiva, espécie de maça contundente usada na guerra e nos sacrifícios. A etimologia desta palavra

indica que os índios os endureciam ao fogo, como costumam fazer aos seus arcos. Tatá-pe quer dizer “no fogo”. (nota do próprio gonçalves dias)

13 estrugir = vibrar fortemente, produzir som agudo.

14 boré = instrumento musical de guerra; dá apenas algumas notas, porém mais ásperas e talvez mais fortes que as da

trompa. (nota do poeta)

15 Antônio Gonçalves Dias nasceu em caxias, no maranhão, em 1823, e morreu, ironicamente, em um naufrágio,

nas costas de sua terra natal, em 1864, quando regressava de mais uma viagem a portugal. escreveu obras teatrais e estudos de etnografia e lingüística, mas destacou-se sobretudo pela poesia lírica e a indianista, com forte matiz épico, as quais reúnem títulos como Primeiros cantos (1847), Segundos cantos (1848), Últimos cantos (1851) e Os

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todas construídas com a vogal tônica /á/), facilita em muito a memorização do texto. Além disso, a presença simultânea de alguns dos mais representativos traços da estética romântica em cada estrofe, como o nacionalismo ufanista do eu-lírico, o

subjetivismo e a identificação afetiva com a natureza, ou, ainda, a nostalgia e a religiosidade, comovem profundamente o público brasileiro, que se identifica em larga medida com o ufanismo e o sentimentalismo exacerbado do poeta. Aliás, não só os leitores, como também os próprios escritores reconhecem a singularidade desses versos, já parodiados por diversos autores modernistas, desde o antropofágico oswald de Andrade (“Minha terra tem palmares / Onde gorjeia o mar / Os passarinhos daqui / Não

cantam como os de lá.”16), até o cósmico e onírico murilo mendes (“Minha terra tem

macieiras da Califórnia / onde cantam gaturamos de Veneza”17) ou o prosaico e anti-

retórico carlos drummond de Andrade (“Um sabiá / na palmeira, longe. / Estas aves

cantam / um outro canto.”18).

Ao lado de José de Alencar19, gonçalves dias inscreve-se como o mais impor-

tante dos nossos autores indianistas. é claro que o Indianismo romântico adquire um significado especial em nossas letras, nas quais o indígena já figurava desde os textos de Anchieta e Vieira (este, inclusive, inteiramente envolvido com os conflitos suscitados pela turbulenta convivência das missões jesuítas com os colonos portu- gueses no norte do país) até a poesia épica do Arcadismo, conforme consignamos no capítulo anterior. Afinal de contas, a personagem aparece em gonçalves de magalhães estilizada pela apropriação que os franceses haviam feito do nosso nativo, introduzido no imaginário europeu pela célebre descrição que montaigne faz dos “canibais” em seus Ensaios (1580) e filtrado literariamente por meio de chateau- briand. buscava-se, como tantos críticos já apontaram, refundar um passado mítico para a jovem nação, que não conhecera a idade média e, portanto, não poderia buscar no cavaleiro medieval um ícone válido do heroísmo pátrio, se bem que, no caso da reinvenção proposta pelo poeta maranhense, notava-se “a necessidade de uma recuperação ancestral até mesmo fora dos esquemas impostos de maneira contingente por uma moda literária”.20

16 cf. “canto de regresso à pátria”. in: AndrAde, oswald de. Pau-brasil. [Obras completas.] 2ª ed. globo /

Secretaria de estado de cultura de São paulo, São paulo, 1990, p. 139.

17 V. “carta de pero Vaz”. in: mendeS, murilo. História do Brasil. nova Fronteira, rio, 1991, p. 13

18 cf. “nova canção do exílio”, poema originalmente publicado no volume A rosa do povo (1945). in: drum-

mond de AndrAde, carlos. Poesia e prosa. nova Aguilar, rio de Janeiro, 1983, p. 180.

19 José martiniano de Alencar nasceu no ceará, em 1829, e morreu no rio de Janeiro, em 1877. Foi advogado,

professor, jornalista, deputado e ministro da Justiça, porém se projetou na vida cultural brasileira como o nosso principal prosador romântico. passou a ser conhecido como escritor somente em 1856, pelas críticas acerbas que fez ao poema Confederação dos Tamoios, de gonçalves de magalhães, o primeiro poeta “romântico” do brasil. em 1857 publicou O guarani, romance indianista que precederia outros títulos de grande repercussão na literatura nacional, como a célebre Iracema, de 1865. Sua prosa de ficção também compreende um ciclo histórico, outro

regionalista e a série urbana, em que se sobressaem Lucíola (1862) e Senhora (1875).

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o indígena cantado por gonçalves dias ou descrito na ficção de Alencar revela- se, pois, um ser heróico, exemplar, sem nenhum vínculo com os dilemas concretos da formação socioespacial brasileira e totalmente pautado no código de honra que a literatura transplanta do romanceiro medieval. basta lembrar a atitude de iracema e de seu povo, ao receber o inimigo português, que, ferido pela flecha destra e ágil da bela guerreira, é acolhido com rara hospitalidade na aldeia dos tabajaras. um tipo, enfim, completamente associado aos moldes do cavaleiro ocidental, pleno de nobreza e galhardia e repleto de destrezas inigualáveis, como o guerreiro que g. dias exalta em seu poema, cujo ritmo elegíaco é marcado pelo ritmo das redondilhas

menores, que nos sugerem com sua cadência solene e grave as notas ásperas e fortes dos tambores de guerra.

Ao lado desse estereótipo de grandeza e força, impõe-se também um ícone de fragilidade e, mesmo, inferioridade, que a própria Iracema, de Alencar, per- sonificará, como uma contraface do herói másculo e valente que se eterniza em “o canto do guerreiro”, “o canto do piaga” e no famoso “i-Juca pirama” (literalmente, em tupi, “aquele que é digno de morrer”). embora dotada de uma plasticidade invejável, cuja estampa se delineia, segundo a melhor tradição romântica, por meio de diversas símiles e metáforas em estrita correspondên- cia especular com a exótica paisagem local (“Iracema, a virgem dos lábios de mel,

que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de

palmeira.”), a heroína dessa pretensa “lenda de fundação do ceará” ainda é um

ser inferiorizado perante o colonizador português, a cujos encantos não resiste: sucumbindo ao amor pelo estrangeiro, ela trairá sua missão de guardiã dos segredos da tribo e, desse modo, encontrará apenas a morte como solução para sua desilusão e infortúnio.

reinventar o indígena como um mito do passado histórico e um símbolo de nacionalidade, enquanto componente inequívoco de uma “etnia brasileira” que o colonizador branco português e o escravo negro africano não poderiam personificar, terminaria por provocar acirradas polêmicas entre nossos críticos. nélson Werneck Sodré, em especial, condenaria abertamente o total abandono a que o negro foi relegado por essa primeira geração romântica, não obstante sua decisiva participação na história socioeconômica e cultural da jovem nação em desenvolvimento. por outro lado, Sodré adverte, com enorme pertinência, que no intuito de infundir um traço de nacionalidade ao universo ficcional romântico, a geração indianista não transcendeu o quadro “litorâneo e urbano” em que “a influência externa transparece como um falso brasil”. para o crítico, merece uma atenção especial o esforço que empreendem os autores sertanistas para afirmar, “através da apresentação dos cenários e das personagens do interior, o sentido nacional de seus trabalhos”. eles teriam compreendido de imediato que o índio não possuía “todas as credenciais necessárias à expressão do que é

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nacional”, transferindo para o sertanejo, o homem do interior que trabalha a terra, “o dom de exprimir o brasil”.21

A exemplo do que ocorreria nas letras argentinas, em que a oposição entre a monumen- tal cidade-porto e o imenso território rústico e desolado das províncias interioranas serviria de pretexto para a estigmatização do indígena e do mundo rural, além da criação do terrível mote de civilização x barbárie22, o tema espacial, ainda que sistematicamente ignorado pelos

intelectuais mais subordinados aos tópicos impostos pelas metrópoles estrangeiras, também se projetaria entre nós de forma definitiva. com a prosa regionalista romântica, representada pelos romances de bernardo de guimarães, do próprio José de Alencar e alguns outros, vem à luz uma faceta incontestável de nossa formação espacial: o peso dos setores rurais no pacto agromercantil que rege a evolução capitalista do brasil ao longo do século xix e no limiar do século xx, atestado inclusive pela longevidade dos elementos agrários em nosso imaginário coletivo nacional, do que nos dá provas a prosa de ficção, desde aquela geração romântica até o ciclo regionalista dos anos 30, durante a segunda geração modernista (de graciliano ramos, Jorge Amado, José lins do rego e outros).

Texto III

Lembrança de Morrer (fragmento) – Álvares de Azevedo No more! o never more! 23

Shelley Quando em meu peito rebentar-se a fibra,

Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento.

21 o autor ainda arremata: “Submetem-se ao jugo da paisagem, e pretendem diferenciar o ambiente pelo que existe de exótico no quadro físico – pela exuberância da natureza, pelo grandioso dos cenários, pela pompa dos quadros naturais. Isto é o Brasil, pretendem dizer. E não aquilo que se passa no ambiente urbano, que copia o exemplo exterior, que se submete às influências distantes.” in: Sodré, nelson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. 6ª ed. civilização brasileira, rio de Janeiro, 1976, pp. 323-324.

22 o dístico provém de um texto canônico da literatura argentina, o ensaio Facundo: civilización y barbarie, escrito

por domingo Faustino Sarmiento, cujo protagonista é o caudilho Facundo quiroga, descrito como um “gaucho

malo” dos pampas, símbolo do despotismo, da dissolução completa da sociedade e da sobrevivência da família feudal às margens do rio da prata. o autor defende com ardor o projeto liberal, em que a capital buenos Aires se sobrepõe às províncias e a herança indígena do país cede passagem à nova feição europeizada, muito embora a história portenha viesse a registrar, por certo, inevitáveis acordos entre as frações agrárias e urbanas de sua burguesia (a qual, em realidade, se distingue desde cedo pelo caráter multifacetado de suas atividades, que vão desde a pecuária até as operações na bolsa). Ver, a respeito: leitão, luiz ricardo. “entre o porto e o deserto”. in: Leonor e a modernidade: o urbano e o agrário na experiência periférica. System three, rio de Janeiro, 1992, pp. 3-34.

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Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento caminheiro – Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Como o desterro de minh’alma errante, Onde o fogo insensato a consumia: Só levo uma saudade – e desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade – é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada Que por minha tristeza te definhas! De meu pai... de meus únicos amigos, Poucos – bem poucos – e que não zombavam Quando, em noites de febre endoudecido, Minhas pálidas crenças duvidavam. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda É pela virgem que sonhei... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! [...]

Texto IV

Meus Oito Anos (fragmento) – Casimiro de Abreu

Oh! souvenirs! printemps! aurores!2

Victor Hugo Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais!

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Como são belos os dias Do despontar da existência! – Respira a alma inocência Como perfumes a flor; O mar é – lago sereno, O céu – um manto azulado, O mundo – um sonho dourado, A vida – um hino d’amor! [...]

A ii geração: tédio e alienação egocêntrica na cena