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As fontes seminais da literatura ocidental: Antigüidade clássica greco-romana e idade média.

Texto I

Poética – Manuel Bandeira Estou farto do lirismo comedido

do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

[manifestações de apreço ao Sr. diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo

[de um vocábulo. Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos1 universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador Político

Raquítico Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos [de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns2 de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

1 Barbarismos – designação dada pelos gramáticos a qualquer “vício de linguagem”, ou seja, a erros

na pronúncia, grafia, forma gramatical ou significação das palavras (como, por exemplo, escrever rúbrica, em vez de rubrica, ou a champanha, em lugar de o champanha).

2 Clown – expressão inglesa que significa, literalmente, “palhaço”, ou, ainda, “rústico, caipira”.

bandeira a emprega em alusão às figuras cômicas dos textos do célebre poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616).



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manuel bandeira compôs, com “poética”, um texto bastante emblemático para a sua época. escrito por volta de 1925 e publicado em 1930, no segundo livro do autor (Libertinagem), ele na verdade vem a ser um autêntico “poema-manifesto”, cuja preocupação central é apresentar uma nova proposta estética (uma “poética”) ao leitor e, de quebra, condenar os movimentos literários que o antecederam, desde aqueles mais “puristas” e “bem-comportados” até os mais “namoradores” ou, mes- mo, os “sifilíticos”.

como um dos maiores expoentes da “geração modernista de 1922”, cujo mo- vimento surge com a Semana de Arte Moderna, em São paulo, bandeira faz da sua poesia não apenas mera expressão de sentimentos e impressões sobre o mundo, mas também um instrumento de reflexão crítica sobre a própria arte. Ao longo do século xx, à medida que os campos intelectuais ocupam espaço próprio na superestrutura social e a arte se torna independente das demais esferas do conhecimento (demar- cando a autonomia do estético em relação a outros discursos, como o político ou o científico), quase todos os grupos e correntes artísticas lançam manifestos próprios, enunciando as diretrizes do seu “movimento”.3 da poesia ao cinema, do modernismo

ao pós-modernismo, será comum que, antes mesmo que uma obra seja produzida, sua “carta de princípios” já seja de domínio público, a exemplo das consignas que marcarão para sempre cada geração, como o famoso bordão do Cinema Novo de glauber rocha, nelson pereira dos Santos e outros grandes cineastas brasileiros: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”...

As referências de manuel bandeira eram bastante explícitas. em primeiro lu- gar, ao defender que o lirismo assuma “todas as palavras” e “todas as construções”, inclusive os “barbarismos” que os puristas rejeitavam ou as “sintaxes de exceção” (o mais das vezes, usos do português coloquial do brasil rechaçados pelos gramáticos mais conservadores), ele se contrapõe diretamente à estética parnasiana, que havia concebido a poesia como o ofício de um joalheiro, alienada das questões sociais e muito mais preocupada com a forma do que com o seu conteúdo. Além de combater o lirismo “comedido” e burocrático de poetas como olavo bilac, raimundo correia e Alberto de oliveira (os preferidos das elites ao final do século xix), cujo ideário estético se expressara sob a consigna da “arte pela arte”, o escritor modernista também impugnava a poesia melosa e passional do romântico. este seria argüido por sua clara adesão a um programa ideológico que, em última instância, punha o lirismo a

3 o Manifesto Futurista do poeta italiano marinetti data de 1909: ele reclama a incorporação do

tecnicismo moderno na poesia e uma atitude antiindividualista e anti-subjetiva na criação poética. o Manifesto Dada, do escritor francês tristan tzara, surge em 1918, ao final da ii guerra mundial. o Primeiro Manifesto do Surrealismo, de André breton, foi lançado em 1924, repleto de notas e comentários auto-reflexivos, assim como o Segundo Manifesto, de 1930. no brasil, inspirados pelas vanguardas européias, os modernistas também lançam suas proclamas, como o artigo “o espírito moderno” (1924), de graça Aranha, o “prefácio interessantíssimo” de Paulicéia Desvairada (1922), em que mário de Andrade difunde o “desvairismo”, ou até mesmo o célebre Manifesto Antropófago (1928), de oswald de Andrade, Alcântara machado e raul bopp.



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serviço de outros discursos, como ocorre com o nacionalismo ufanista4 de gonçalves

dias (1823-1864) e outras vozes do Indianismo (que, após a pseudo-independência do país, elegem o ameríndio o nosso herói literário, ignorando o papel do negro africano na construção da nacionalidade, fato que só castro Alves viria a abordar):

Canção do Exílio – Gonçalves Dias Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores. [...]

Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

um breve confronto entre esse fragmento do poema de gonçalves dias e o “ma- nifesto poético” de manuel bandeira já nos permite identificar sensíveis diferenças de estilo entre os dois autores, evidenciadas não apenas na linguagem e recursos formais por eles empregados, como também na escolha do tema e, até mesmo, na própria concepção que cada um possui acerca da arte poética. o nosso modernista6

é um artista iconoclasta (“destruidor de ídolos”), que crê na autonomia da arte e se serve livremente de todo o material que o passado literário lhe oferece, parodiando

4 Ufanista (adj.) e ufanismo (subst.) –os termos se inspiram na obra Por que me ufano do meu país, do

conde Afonso celso: referem-se à qualidade, atitude ou sentimento de quem se vangloria exage- radamente das riquezas e belezas naturais do brasil.

5 diAS, Antônio gonçalves. “canção do exílio”. in: Poemas. ediouro, rio de Janeiro, [s/d]. 6 o termo modernista, entre nós, quando se refere às artes, possui um sentido inteiramente diverso

daquele que lhe é atribuído pelos críticos e historiadores europeus e hispano-americanos, para quem o Modernismo é a renovação que se promove nas letras ao final do século xix, época em que assistimos à eclosão do Parnasianismo e do Simbolismo na literatura brasileira. por sua vez, a arte dita modernista no brasil corresponde, na europa e na América hispânica, aos vários grupos vanguardistas que surgem nas décadas de 1910 e 1920, revolucionando a poesia e a plástica, como os surrealistas (o poeta francês André breton, o cineasta espanhol luis buñuel e o pintor Salvador dalí), os futuristas (o poeta russo maiakovski e o italiano marinetti), os cubistas (o pintor espanhol pablo picasso) e os dadaístas (o poeta francês tristan tzara).

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e estilizando os ícones de outras gerações. A liberdade formal que ele postula se evidencia de imediato na ausência de rima e de metro fixo (os versos de “poética” possuem nº de sílabas aleatório, ao passo que a “canção do exílio” é toda composta de redondilhas maiores), além de um ritmo bastante original, que se estrutura sobre os tópicos do seu “manifesto” e não a partir de rimas e versos metrificados, como era comum aos românticos da primeira geração, com sua cadência bastante musical.