• Nenhum resultado encontrado

Download/Open

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Download/Open"

Copied!
165
0
0

Texto

(1)UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO - FAHUD PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. ROGER BRADBURY. “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: A literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2015.

(2) ROGER BRADBURY. “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: A literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.. Dissertação apresentada à Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para a obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura.. Orientadora: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2015.

(3) FICHA CATALOGRÁFICA. B727h. Bradbury, Roger “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero/ Roger Bradbury – São Bernardo do Campo, 2015. 165 fl. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Bibliografia. Orientação de: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza 1. Espiritismo. 2. Representações sociais. 3. Gênero (Religião). CDD 291.21.

(4) A dissertação de mestrado sob o título “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero, elaborada por Roger Bradbury foi defendida e aprovada em 23 de fevereiro de 2015, perante banca examinadora composta por: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (Presidenta/UMESP), Profa. Dra. Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos (UMESP), Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (Universidade Presbiteriana Mackenzie).. __________________________________________ Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza Orientadora e Presidenta da Banca Examinadora. __________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-Graduação. Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais.

(5) Dedico este trabalho à causa espírita da Emancipação Feminina, iniciada com Allan Kardec e que urge ser encampada por todos e todas nós, espíritas e simpatizantes. Militantes ou simples consumidores da literatura espírita, das telenovelas e dos filmes de temáticas ligadas à cosmovisão espírita..

(6) AGRADECIMENTOS. À Jesus e à Espiritualidade Maior, pela criação da vida em nosso orbe terrestre e pela cooperação em nossas missões particulares e, igualmente, nas coletivas... À minha orientadora, Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, pela orientação acadêmica e militante, e pela valiosa e produtiva parceria no Grupo de Pesquisa Mandrágora-NETMAL, e, também, em alguns congressos e eventos acadêmicos. À minha esposa, Rosa, e meus filhos, Erick e Bryan, pelo apoio e incentivo. À Seara Espírita Chico Xavier, por ter suprido minha ausência no trabalho religioso junto à comunidade de Barcarena-PA, durante a realização desta pesquisa. Às editoras e sites espíritas, pela colaboração à pesquisa. À agência de fomento à pesquisa CAPES, pela bolsa de estudos que viabilizou financeiramente esta vultuosa empreitada. À Universidade Metodista de São Paulo, pela valiosa oportunidade de conviver em constante diálogo interreligioso, anteriormente, no lato sensu e agora, no stricto sensu..

(7) Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; já não é uma concessão da força à fraqueza, mas um direito fundado nas próprias leis da Natureza. Dando a conhecer essas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade. Allan Kardec, in Revista Espírita, 1866. O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado [...] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas [...] Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. Allan Kardec, in A Gênese, 1868..

(8) BRADBURY, Roger. “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero. 2015. 165 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) — Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.. “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.. RESUMO Os resultados da pesquisa bibliográfica corroboram o que na prática religiosa já havia notado, a existência de certo sincretismo intencional de apreensão e revisão de conteúdos religiosos, ou seja, de cosmovisões de matriz judaico-cristã impregnadas de valores e modelos de comportamento que marcaram as novas representações de gênero do Espiritismo, ainda na França, e posteriormente, no Brasil. Constatou-se que tanto na literatura espírita quanto no ethos espírita sempre houve uma oscilação entre uma divisão sexual do trabalho mais tradicional e androcêntrica com a supervalorização das mulheres como mães, e dos homens como provedores – e como consequência disto ocorre a limitação do desenvolvimento das habilidades e competências de ambos os sexos nas várias instituições sociais (família, mercado de trabalho, etc.), inclusive nas instituições espíritas, de um lado, e; por outro lado, uma pretensa postura de defesa da progressiva liberação (emancipação) dos direitos da mulher. A presente pesquisa objetivou analisar as representações de gênero nas produções lítero-doutrinárias do Espiritismo brasileiro contemporâneo, a partir de um levantamento do contexto histórico que teria influenciado a elaboração das representações de gênero espíritas, desde uma fase anterior à institucionalização do Espiritismo, na França e no Brasil, aos dias de hoje e como tais representações de gênero estruturam a organização interna do Espiritismo, no que tange a divisão sexual do trabalho. Além de pesquisa bibliográfica foi realizada análise da literatura doutrinária espírita. Conceitos-chave: Espiritismo. Literatura doutrinária. Representações de gênero..

(9) BRADBURY, Roger. "The man builds the world, the woman takes care of the house": the contemporary Spiritism’s doctrinal literature on gender perspective. 2015. 165 p. Dissertation (Master of Science in Religion) —Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.. "The man builds the world, the woman takes care of the house": the contemporary Spiritism’s doctrinal literature on gender perspective.. ABSTRACT The results of the literature search corroborate what in religious practice I had already noted, the existence of certain intentional syncretism of apprehension and religious content review, in other words, the matrix Judeo-Christian worldviews impregnated with values and role models that marked the new Spiritualism gender representations, still in France, and later in Brazil. It was found that both in literature and in the spiritist ethos has always been an oscillation between a sexual division of more traditional androcentric with the overvaluation of women as mothers, and men work as providers - and as a consequence the limitation on skills development occurs and competencies of both sexes in the various social institutions (family, work, etc.), including the spiritist institutions on the one hand, and; On the other hand, an alleged defense posture of the progressive liberation (emancipation) of women's rights. This research aimed to analyze the representations of gender in literary-doctrinal productions of contemporary Brazilian Spiritism, from a survey of the historical context that would have influenced the development of the spirit gender representations from a stage prior to the institutionalization of Spiritism, in France and in Brazil, to the present day and how such representations of gender structure the internal organization of Spiritualism, regarding the sexual division of labor. In addition to literature search was performed analysis of the Spiritism’s doctrinal literature. Key concepts: Spiritism. Doctrinal Literature. Representations of gender..

(10) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12 1. SOBRE O TÍTULO .......................................................................................... 12 2. POR QUE ESTUDAR AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DO ESPIRITISMO? ................................................................................................... 13 3. ESPIRITISMO OU “ESPIRITISMOS”? POR QUE KARDECISMO, NÃO? ............... 18 4. PSICOGRAFIA: AUTORIA DO/A MÉDIUM OU DO/A AUTOR/A ESPIRITUAL? ............. 24 5. PROJEÇÃO DA DISSERTAÇÃO ...................................................................... 26 CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?.................... 28 1.1. UMA INTRODUÇÃO AOS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO ...................... 32 1.2. AS MENINAS-MÉDIUNS DA FAMÍLIA FOX ................................................ 36 1.3. UM DESENVOLVIMENTO ANORMAL? MAGIA CIÊNCIA RELIGIÃO... ..... 41 1.4. KARDEC, UM HOMEM DE SEU TEMPO? .................................................... 45 1.5. AMÉLIE GABRIELLE BOUDET, A MME. KARDEC .................................... 47 1.6. AS MÉDIUNS E O CODIFICADOR ................................................................ 49 1.7. O TRANSLADO PARA O BRASIL: SINCRETISMO E/OU TRAMPOLINAGEM? ...... 52 1.8. ANÁLIA FRANCO, AMÁLIA RODRIGUES E AMÁLIA DOMINGO Y SOLER 61 1.9. CHICO XAVIER, A MATRIFOCALIDADE E REFERENCIAIS MASCULINOS 64 CAPÍTULO 2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO ESPIRITISMO ............. 68 2.1. “SER ESPÍRITA É UMA FORMA DE SER INTELECTUAL” .......................... 68 2.2. O LEITORADO ESPÍRITA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO ..................... 76 2.3. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ETHOS E DE LOCI SEXUALMENTE DISTINTOS.......................................................................................................... 82 2.4. A OCUPAÇÃO DE CARGOS ENCONTRADA NA BIBLIOGRAFIA ACADÊMICA ...................................................................................................... 91 2.5. A ASSIMETRIA SEXUAL NAS REUNIÕES MEDIÚNICAS........................... 95 2.5.1. Dirigente, Doutrinador ou Médium Esclarecedor ............................................................................. 96 2.5.2. Médium de Incorporação ................................................................................................................. 103. 2. 6. UMA DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA DA DIVISÃO DO TRABALHO ESPÍRITA .......................................................................................................... 105 CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO ................. 113 3.1.. SOBRE A APLICAÇÃO DO MÉTODO: ANÁLISE DE CONTEÚDO ......... 113. 3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO .............................................. 116 3.2.1. O “SEXO DOS ANJOS”: DA TEORIA METAFÍSICA ÀS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO 117 3.2.2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NA PERSPECTIVA ESPÍRITA, UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA .............................................................................................................. 121 3.2.2.1. A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas ................................................................ 122 3.2.2.2. A mulher-mãe e o pai-provedor .................................................................................................... 130 3.2.2.3. Feminismo e a inversão de papéis sexuais ................................................................................... 133 3.2.2.4. Direitos iguais, sim, funções (papéis sexuais), não. ...................................................................... 136 3.2.2.5. Um duplo modelo mariano: Kardec ou Roustaing ........................................................................ 139.

(11) 3.2.2.6. A maternidade de Eva e as dores de parto .................................................................................... 141. CONCLUSÃO ........................................................................................................ 146 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 151 ANEXO A – RELAÇÃO DE CURSOS (RINO CURTI)........................................... 164 ANEXO B - RELAÇÃO DE CURSOS (FEESP) ...................................................... 165.

(12) 12. INTRODUÇÃO. 1. SOBRE O TÍTULO “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar” é uma citação dos versos da autoria espiritual de Antonieta Saldanha, psicografados1por Francisco Cândido Xavier (2012 [1973], p. 177) 2. A escolha desta citação para intitular a presente pesquisa de mestrado deve-se ao fato dela bem representar as várias dimensões em que o objeto de pesquisa é desdobrado. Nesta máxima, pode-se reconhecer claramente que em grande parte da literatura espírita há: Primeiro, um dualismo das representações de gênero – que oscilam entre concepções mais conservadoras e outras mais progressistas – contido nas obras espíritas mediúnicas3 ou não4, impressas ou em versão digital disponíveis na Internet, que legitimam ou questionam as propostas de divisão sexual do trabalho, vigentes nas religiões e na sociedade mais ampla. Segundo, uma dupla repercussão das representações de gênero, a qual devido à função de exemplaridade (STOLL, 2003, p. 102) resulta, por vezes, em uma formação diferenciada entre os sexos, e tende a resultar em ethos e loci diferenciados no movimento espírita5 (SILVA, 2006, p. 160-161).. O termo “psicografia” etimologicamente deriva do grego Psique = Alma e graphe = escrita, caracteriza-se pela escrita mediúnica, ou seja, aquela escrita produzida pela mão de um/a “médium” a partir da mensagem de um emissor (espírito comunicante) e tem como receptor final desta o/a consumidor/a da literatura espírita. 2 Para facilitar o acesso ao ano da primeira edição de cada texto e assim compreender a evolução do pensamento dos autores e, bem como, melhor situar cada texto ao panorama histórico em que foi escrito, optei em usar uma dupla referência: ano da publicação usada nesta pesquisa seguido do ano da primeira edição entre colchetes como elemento complementar (NBR 6023:2002), de modo a permitir melhor caracterização dos documentos. Justifico ainda esta opção pelo fato da edição usada da “Revista Espírita” ser toda de 2004, e pelas muitas citações de diferentes anos desta Revista que faço, obrigaria o/a leitor/a remeter-se ao fim da dissertação (Referências Bibliográficas) muitas vezes para buscar o espaço temporal em que fora escrito cada artigo, uma vez que não uso notas de rodapé para este fim. 3 Mediunidade ou medianimidade é o estado ou qualidade da pessoa considerada médium, ou seja, aquela que apresenta a faculdade de intermediar mensagens entre desencarnados e encarnados. 4 Na compreensão espírita sempre há a intervenção espiritual na produção literária, quer na forma da psicografia, onde a autoria é espiritual e o médium pouco influencia no texto final; quer no texto inspirado, onde é o espírito quem pouco influencia no texto, e, por vezes, de forma anônima e desapercebida do/a autor/a encarnado/a, daí não registrar a autoria espiritual. 5 Considera-se aqui como movimento espírita, o conjunto de associações religiosas, mais ou menos institucionalizada. Este conjunto apresenta-se, no Brasil, bastante heterogêneo, embora todas as associações que o integram dizem seguir, à sua maneira, os princípios propalados por Kardec. Para Cavalcanti (2008, p. 19) “O Movimento Espírita abrange desde os lares e centros até institutos culturais, laboratórios de pesquisa, associações profissionais, federações nacional e regionais, hospitais, asilos, orfanatos, imprensa e editoras. Essas atuações podem a princípio privilegiar um dos aspectos acima mencionados ou combiná-los de variadas maneiras.” 1.

(13) 13. Por último, o caráter transnacional (LEWGOY, 2008; STOLL, 2004) destas representações de gênero, que surgiram na França, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 1857, por Allan Kardec (pseudônimo do pedagogo H. L. D. Rivail6, 1804-1869), e pouco tempo depois foram incorporadas na literatura mediúnica do médium brasileiro Francisco Candido Xavier7 (mais conhecido como Chico Xavier, 1910-2002); e ambas produções, de Kardec e de Chico, têm sido traduzidas para várias línguas, daí seu alcance mundial, presente desde o surgimento do Espiritismo até os dias atuais. Esclareço, ainda, que embora estas tradicionais representações de gênero apresentem-se como consenso entre os/as autores/as espíritas não obstante, mais recentemente, têm aparecido perspectivas mais críticas e mais igualitárias, na literatura espírita impressa (FRANCO, 1994; SOUZA, 2007; INCONTRI, 2012; BASTOS, 2012) e em artigos da Internet (RÉGIS, 2001; ZELESCO, 2013; RODRIGUES, 2011).. 2. POR QUE ESTUDAR AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DO ESPIRITISMO? Primeiramente, porque em relação a este objeto de pesquisa, eu sou um “nativo” da religião, ou seja, sou um pesquisador espírita8. Desde a licenciatura em Pedagogia (1990-1995) na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) venho, progressivamente, me dedicando ao estudo acadêmico do Espiritismo. Foi também na FEUSP onde tive o primeiro contato com a categoria de gênero, em uma das disciplinas eletivas do curso. Em 2008, objetivando a retomada da minha carreira acadêmica, e consolidar a carreia de magistério no ensino superior, ingressei na Especialização em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), cuja pesquisa bibliográfica do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) versou sobre a cosmologia espírita: “QUEDA DO PARAÍSO OU EXÍLIO DE CAPELLA? Um Ensaio Exegético na Perspectiva Espírita”. Daí em diante, minhas pesquisas acadêmicas versaram sempre sobre o Espiritismo.. 6. Doravante, nesta pesquisa, denominarei o pedagogo H. L. D. Rivail apenas pelo seu pseudônimo Allan Kardec – exceto nas referências bibliográficas. 7 Informo ao/ à leitor/a que a frase é da psicografia de Chico Xavier, mas é de idêntico sentido àquela que figura na obra fundante do Espiritismo: “que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão” (KARDEC, 1995, [1857], p. 381), a qual centrarei o foco de minha análise de gênero. 8 Escrevo esta dissertação em 1ª pessoa, demarcando bem minhas falas enquanto pesquisador, diferenciando por vezes de outras falas da academia, e bem como apresentando meu posicionamento enquanto “nativo” espírita sem necessariamente partilhar das mesmas crenças e valores presente no Espiritismo..

(14) 14. Como “nativo” espírita, tenho alguns privilégios em relação a outros pesquisadores “out siders”, mas, como pesquisador, estou ciente de que devo manter o devido distanciamento exigido pelo método científico. Neste sentido, compartilho do pensamento de Leonildo S. Campos (1997) que afirma: Em se tratando de análise de fenômenos religiosos, esse procedimento [de comentar como se deu a reconstrução do objeto, referindo-se a valores, objetivos, paradigmas, metodologia e dificuldades] ideal para todas as ciências, se torna obrigatório especialmente quando o pesquisador reconhece manter com seu objeto, duplos laços de amor ou de ódio. (CAMPOS, 1997, p. 29).. Entretanto, certamente, a justificativa principal desta pesquisa não se restringe a este aspecto, mas está relacionada à importância e à relevância social que o Espiritismo representa no “panorama religioso do Brasil”, como já destacava, em 1973, Cândido Procópio Ferreira de Camargo (p. 159), o Espiritismo, junto às “religiões mediúnicas no Brasil”, apresentava “acentuado ritmo de crescimento, notadamente nas zonas que apresentam urbanização mais intensa”. Conforme os dados do censo (IBGE, 2010), no Brasil, o Espiritismo é a terceira maior instituição religiosa declarada9. Entretanto o alcance da cosmovisão espírita – veiculada pela enorme produção editorial – “extrapola de longe suas fronteiras institucionais” (STOLL, 2004, p. 181): Algumas pesquisas de opinião pública corroboram essa conclusão, em especial quando se trata do tema da representação da vida pós-morte: uma delas, realizada em 1998 pelo Instituto Gallup, constatou que 45,9%, ou seja, quase metade dos católicos que dizem frequentar semanalmente serviços religiosos afirma “acreditar na reencarnação”. Embora se trate de tema proscrito pela tradição cristã, o mesmo constatou o Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) numa pesquisa realizada em 2000 em cinco metrópoles brasileiras: 55,7% dos entrevistados disseram “acreditar em vida após a morte”, sendo que 35,8% destes afirmaram crer na “reencarnação dos mortos”. (STOLL, 2004, p. 182). O Espiritismo, assim, justifica sua importância acadêmica devido ao volume de adeptos e simpatizantes espíritas no Brasil e no mundo, dado que a bibliografia espírita brasileira é também transnacional (LEWGOY, 2008), pois conforme Sandra Jaqueline Stoll (2004, p. 181), o Brasil vem “sinalizando, de um lado, a posição por este assumida no contexto internacional como polo de irradiação da doutrina e, de outro, a importância conquistada pelo Espiritismo no cenário religioso nacional”. No mercado interno, os livros espíritas, há algum tempo, deixaram de ser vendidos apenas no círculo de adeptos/as, eles podem ser encontrados até em bancas de jornal,. 9. O Espiritismo com 3.848.876 de adeptos declarados, segundo o Censo 2010, perde em número de adeptos apenas para a Igreja Católica Apostólica Romana (123.280.172) e para a Igreja Assembleia de Deus (12.314.410). Fonte: http://www.ibge.gov.br..

(15) 15. hipermercados, farmácias e em catálogos da Avon e similares. Provavelmente, esta seja uma das causas da discrepância entre o número de adeptos/as espíritas declarados/as no censo IBGE 2000 – 2,2 milhões (apenas 1,3% da população brasileira) – e os 7 milhões de livros espíritas comercializados no Brasil apenas em 2002, sendo que somente o médium Chico Xavier teve, nos últimos anos, cerca de 25 milhões de livros vendidos (DALGALARRONDO, 2005, p. 183184). Mas, além da boa aceitação da literatura espírita, o Espiritismo deixou seu passado de clandestinidade, perseguição e rejeição, nos tempos de intolerância religiosa, e ganhou o gosto popular, passando a ser tema de superproduções de massa, tanto em novelas da rede Globo10, quanto no cinema nacional e internacional. Em relação ao tema “Espiritismo e gênero”, o Censo 2000 (IBGE, 2000) indicou ser espírita a maior porcentagem de mulheres de todas as categorias religiosas declaradas 11, liderança e percentagem que se mantiveram com o novo Censo 2010 (IBGE, 2010), sendo a seguinte distribuição por sexo: Total de espíritas: 3.848.876 = 2,2% do total do universo da pesquisa: Homens 1.581.701 = 41% e Mulheres 2.267.176 = 59%. Em outras palavras, é bastante significativa a adesão feminina ao Espiritismo, como consumidoras e produtoras de bens e serviços religiosos, caritativos ou de assistência social (RODRIGUES, 2011, DAMAZIO, 1994), grandes consumidoras da literatura espírita (LEWGOY, 2000; STOLL, 2004) e, entretanto, pergunto o que faz com que estas mulheres desapareçam dos cargos mais elevados da administração e divulgação doutrinária dos centros espíritas? (LARA, 2001; ZELESCO, 2013); Quais fatores interferem na ascensão feminina de uma condição passiva de consumidora para uma participação mais ativa como trabalhadora e/ou como líder? (SOUSA, 2013; SILVA, 2006); Seriam as condições socioeconômicas ou a escolaridade? (CAVALCANTI, 2008; SILVA, 2006); Ou as fortes representações de gênero seriam uma herança sociocultural? (BRADBURY, 2013-b).. 10. Um exemplo disto é a novela "Alto Astral", em exibição na Rede Globo de televisão, cuja temática central é a reencarnação e a mediunidade, que inicialmente estava prevista para 2011, mas a trama teve que entrar na fila porque outras novelas com temas espíritas, como "Escrito nas Estrelas" e "Amor à Vida", já estavam programadas pela emissora. Fonte: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/11/03/publico-vai-se-identificar-comalto-astral-e-tema-espirita-diz-diretor.htm. Acesso em: 05 jan. 2015. 11 A porcentagem de mulheres no universo da pesquisa do Censo IBGE, em 2000, foi de 50,7%; de mulheres evangélicas em geral: 56,2%; de mulheres na Igreja Assembleia de Deus: 54,8%; na Igreja Evangélica Metodista: 57,1%; na Igreja Católica Apostólica Romana: 50,4%. Assim, como confirma Maria das Dores Campos Machado (2005, p. 387-388) “os evangélicos encontram-se entre os grupos religiosos que apresentam as maiores taxas de fiéis do sexo feminino em suas fileiras. [...] e só perde para os espíritas, onde as mulheres representam 59,7% dos recenseados”..

(16) 16. Estes são os questionamentos que motivaram esta pesquisa e mereceram – e ainda merecem mais pesquisas – portanto, um estudo mais detalhado a respeito das relações de gênero nos centros espíritas. Como pesquisa aplicada, esta pretendeu dar contribuição positiva para uma maior valorização e participação da mulher nos centros espíritas, colocando em prática as palavras de Kardec: Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado sobre as próprias leis da Natureza. Fazendo reconhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade. (KARDEC, 2004 [1866], p. 18). Afinal o Espiritismo, em princípio, se coloca bastante aberto a corrigir-se a partir das contribuições acadêmicas, pois seu codificador (KARDEC, 2003 [1868], p. 40) prescreveu para as novas gerações que a Doutrina Espírita deveria sempre acompanhar pari passu a evolução de todos os ramos da ciência, incluindo as ciências sociais, aperfeiçoando e adequando seus conhecimentos nos pontos que se fizerem necessários. Esta pesquisa, resumindo, justifica-se por sua dupla relevância: 1) Social: dado o volume de adeptos e simpatizantes espíritas no Brasil e no mundo; a possibilidade de favorecer a desconstrução de discursos tradicionais e, por fim, possibilitar a revisão de práticas e discursos sexistas contidos na vasta bibliografia, ajustando-os à contemporaneidade, e assim desfazendo-se de suas ambiguidades; 2) Acadêmica: em minha revisão bibliográfica encontrei certo vazio bibliográfico acadêmico sobre “Espiritismo e Gênero”, pois alguns temas são comum e deliberadamente silenciados pela História (BRITO, 2013), e marginalizados pela academia em geral (SOUZA, 2011). Em relação a esta marginalização, que pode ser entendida através da pressão de uma sociedade conservadora, que guarda alguns costumes e princípios morais vitorianos (FOUCAULT, 1988), sobre uma academia de ciências que ainda guarda ranços de uma laicidade à francesa que interditava o estudo das religiões. Ao buscar retratar as contribuições das mulheres espíritas para a consolidação do movimento espírita, percebi que estas marginalidades eram agravadas, pois os vazios ou os “silêncios da história” na produção acadêmica e também na produção doutrinária12 a respeito do Espiritismo conotam certa interdição ou desinteresse proposital.. 12. De certa forma, também é pouca a produção lítero-doutrinária espírita sobre a temática gênero se comparada ao enorme o volume do conjunto de toda a produção literária espírita..

(17) 17. A prova disto está em não ter encontrado mais que quatro artigos científicos (BUENO, 2009; BRITO, 2013; VILELA e MESSIAS, 2011; SILVA e SGARBI, 2007) que relacionavam as temáticas gênero e Espiritismo, os quais se ocuparam apenas superficialmente das representações de gênero espíritas, constituindo-se em análises “românticas” ou pouco críticas. Sobre o pouco interesse da academia em pesquisar o Espiritismo, Flamarion da Costa compara: No Brasil, o interesse pela manifestação de religiosidade de caráter mediúnicas, especialmente a UMBANDA e o CANDOMBLÉ, provocou diversos estudos de cunho sociológicos e antropológicos, diferente do ESPIRITISMO KARDECISTA OU CRISTÃO cujo interesse é mais recente. Apesar de os estudiosos centralizarem suas pesquisas nos ritos e no crescimento das religiões, a produção literária sobre a UMBANDA E O CANDOMBLÉ, se comparada ao Espiritismo kardecista, ainda é muito pequena. (COSTA, 2001, p. 2). Assim, completando o exposto por Costa, o desafio deste trabalho foi, basicamente, buscar mapear, em perspectiva de gênero, o trajeto das mulheres espíritas em um campo vasto e quase virgem de análises” acadêmicas e onde “os estudos acadêmicos sobre ele [o Espiritismo] no Brasil tendem a explicitar pouco, melhor dizendo, a contemplar de forma insatisfatória uma análise relacional entre os agentes envolvidos na produção e reprodução desse contingente religioso. (ARRIBAS, 2008, p. 11) [Grifos meus].. Quanto ao recorte temporal de nosso objeto de pesquisa, este vai de 1857 até data da defesa desta pesquisa. Centrarei a análise de conteúdo em perspectiva de gênero nas obras: KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, 1857 [Edição original em Francês]13. KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos, 1858, 1865, 1866, 1867-a, 1867-b, 1869 [Edições originais em Francês]. KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 [Edição original em Francês]. DENIS, Léon. O Espiritismo e a Mulher, 1903 [Edição original em Francês]. XAVIER, Francisco C. [médium]; EMMANUEL [espírito]. O Consolador, 1940; XAVIER, F. C. Mãe - Antologia mediúnica, 1971. XAVIER, F. C.; J. Herculano Pires [médiuns]; Espíritos Diversos. Sobre o Feminismo, 1973. CALLIGARIS, Rodolfo. A Igualdade de Direitos do Homem e da Mulher, 1967. CALLIGARIS, R. A vida em família, 1973.. 13. Todas as obras estrangeiras (inglesas ou francesas) consultadas nesta pesquisa foram traduções em português, disponíveis ao grande público espírita..

(18) 18. 3. ESPIRITISMO OU “ESPIRITISMOS”14? Por que Kardecismo, não? A história de como o termo “Espiritismo” foi apropriado pelo senso comum e também pela academia é bastante longa, complexa15 e bem como equivocada. Constituindo-se em verdadeiro desafio tratar de forma sucinta, como se exige de uma introdução, embora mantendo a complexidade que o tema impõe. Na fase de implantação do Espiritismo no Brasil, o termo “Espiritismo” foi apropriado por muitas formas populares de religiosidade e magia16 – pois este rótulo se mostrara interessante a grupos minoritários e oprimidos por estar imbuído de cientificidade e de credibilidade, devido a sua origem francesa17 – primeiro, como forma de agregar valor aos serviços mágico-religiosos prestados, e, segundo, como forma de fugir à perseguição policial a qual eram submetidos seus/suas praticantes (ALMEIDA, 2007; GOMES, 2013; GIUMBELLI, 1997-b). Compreendo esta apropriação como a prática sincrética de “trampolinagem”, ou seja, como Michel de Certeau (1998, p. 79) afirma, não é simplesmente a incorporação de certos aspectos da cultura do opressor, mas se manifesta por “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro”. Constitui-se de uma forma de resistência de grupos minoritários e oprimidos que. 14. Eu, enquanto pesquisador do Espiritismo, estou ciente de que este não é um bloco monolítico, muito embora todo meu esforço de delimitação deste objeto, e todo o esforço das federações espíritas na unificação do movimento espírita. O movimento espírita é plural, pois às instituições espíritas resguardam para si certa autonomia entre si e em relação às federações (e similares) dada a liberdade de aderirem ou não a esta ou aquela proposta federativa de unificação, as quais, friso, são igualmente plurais e criam certa cisão e tensão no interior do movimento espírita, ao produzirem bibliografia própria e independente com regulamentações para a práxis espírita, a partir de autores encarnados ou autorias espirituais que são muito bem aceito por uns, mas recusados por outros, como as obras de Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879) ou aquelas de Pietro Ubaldi (1886-1972), ou ainda as obras mediúnicas do espírito Ramatis. 15 Segundo Emerson Giumbelli (1997-a, p. 32) “Espiritismo” é um termo cheio de “ambiguidades, imprecisões e, sobretudo de polissemias”, pois nomeia diversas práticas de vários tipos, centradas em torno da “mediunidade”, e mobilizam instituições de várias ordens, cujas células básicas são os “centros espíritas”. 16 Ubiratan Machado (1997, p. 130) afirma que, no Brasil, o sincretismo do Espiritismo “com as crenças de origem negra e o catolicismo popular” se deu num ritmo acelerado a ponto de os “mais desavisados chegavam a confundir espiritismo com feitiçaria africana”. Entretanto sempre houve apóstolos atentos buscaram “resguardar a doutrina de abastardamentos”. Como consequência do sincretismo, “as seitas afro-brasileiras incorporavam elementos e, sobretudo, a terminologia espírita” gerando uma infinidade de “práticas espíritas” que variavam “entre espiritismo popular e das elites, entre espiritismo de terreiro e de mesa”. (MACHADO, 1997, p. 131). Ubiratan Machado (1997, p. 115-116) esclarece ainda que o “nome espiritismo passou a abarcar uma gama imensa de manifestações religiosas, algumas bem distantes da matriz kardecista”. Percebe-se que “para o povo, bastava uma tintura de maravilhoso e a evocação dos mortos, para ser enquadrado como espiritismo”. 17 Segundo Marion Aubrée e François Laplantine (2009, p. 391) no Brasil, por ser um país jovem, as “classes dominantes e as camadas médias que delas dependem estão imbuídas de positivismo e de ideologia futurista” assumiram uma postura eurocêntrica de supervalorizar personalidades (encarnadas e desencarnadas) e crenças estrangeiras como forma de compensar uma pretensa “falta de história” nacional, negligenciando as “circunstâncias históricas próprias”..

(19) 19. fazem uso de “astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais” impostos pelos dominantes. Desta feita, era e ainda é interessante18 continuar associado, de alguma forma, ao Espiritismo, pois este sempre teve em seus meio intelectuais e autoridades influentes no meio acadêmico, militar, jurídico e político, certa condição privilegiada nos embates e perseguições aos “espiritismos”. Clovis Carvalho Brito (2013) explica que desde o início o Espiritismo teve sua condição privilegiada em relação aos grupos dominantes, pois se era crime praticar o espiritismo, tornava-se complicado denunciar seus primeiros adeptos: um deputado estadual, um juiz da Comarca, a esposa do Desembargador do Tribunal da Relação, as filhas do alferes da Guarda Nacional, a esposa de um tenente-coronel, a mãe do coronel e contador da Delegacia Fiscal, dentre outros [...] (BRITO, 2013, p. 34). Emerson Giumbelli (2008) atesta que a diferença entre o Espiritismo e os “espiritismos” em termos da aceitação pública e da repressão policial ampliara-se a partir de 1949, tornandose muito mais interessante aos praticantes de magia e de cultos afro-brasileiros estarem associados ao Espiritismo francês, pois assim driblavam-se as perseguições: A aceitação social cada vez maior da crença fica evidente com a promulgação do novo Código Penal brasileiro em 1949, no governo Vargas. Persistiam artigos acerca de “charlatanismo” e “curandeirismo”, mas o termo “espiritismo” já não constava mais da lei. Na prática, os kardecistas deixaram de ser assediados pelas autoridades. O mesmo não aconteceu com os cultos afro-brasileiros, que continuaram sendo vítimas de perseguição. (GIUMBELLI, 2008, s.p.). Assim, esclarecidas, historicamente, as motivações para a apropriação pelo senso comum do termo “Espiritismo” e como se deu a origem do termo “espiritismos”, resta-me explicar como ocorreu a apropriação pela academia, e aproveito para legitimar o uso nesta pesquisa do termo “Espiritismo”19 no singular, e minha recusa em não adotar qualquer outro qualificativo diferencial para designar a Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec. Como Ary Lex (1996) descreve, o termo “espiritismo” ganhou vida própria, fugindo do controle dos espíritas ao ser incorporado no vocabulário popular e também, embora de forma. 18. É muito comum, ainda hoje, se ler anúncios nos jornais, cartazes em postes ou em panfletos oferecendo serviços de adivinhação (leitura de cartas ou das mãos), intitulando-se médium espírita. Sendo que esta prática não é prescrita pela Doutrina Espírita, quer em sua literatura, quer na práxis espírita. 19 Segundo Ary Lex (1996, p. 136) o termo “Espiritismo “surge no dia 18 de abril de 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos” de Allan Kardec, que inicia sua obra esclarecendo que “para designar coisas novas são necessárias palavras novas; assim exige a clareza de uma língua, para evitar a confusão que ocorre quando uma palavra tem múltiplo sentido” (KARDEC, 1995 [1857], p. 13). Kardec, imbuído do espírito positivista de sua época, buscou utilizar-se do método científico (BRADBURY, 2010) também para formalizar a nova doutrina. Assim, redefiniu conceitos e criou outros novos, de modo que naquele momento histórico não houvesse indesejáveis ambiguidades na nova ciência que intentava demonstrar..

(20) 20. contraditória20, nos vocabulários jornalístico, censitário21 e acadêmico, os quais se deixaram impregnar pela polissemia própria do imaginário popular: No linguajar do povo sempre houve grande confusão quanto aos termos doutrina espírita, espiritismo, mediunismo, umbanda, espiritualismo, etc. Até os jornalistas e os recenseadores teimam em apresentar as práticas de umbanda como espíritas. (LEX, 1996, p. 136). O “Culto Espírita”, de forma genérica - pois abarcava uma infinidade de práticas mágico-religiosas, entre elas o Espiritismo – é reconhecido como tradição religiosa pelas estatísticas governamentais e entra como registro, nos Anuários Estatísticos do Brasil (AEB), a partir do ano de 1955. Somente, a partir de 1967 é que o “Culto Espírita” desdobrado em kardecista e umbandista, reconhecendo-se as especificidades dessas duas religiões, porém continuam as mesmas as variáveis medidas para esses dois casos. (LANDIM, 2006, s.p.) No instrumental censitário do ano de 1973 encontram-se as seguintes orientações: DESTINA-SE este questionário a coletar elementos que permitam sejam conhecidos o movimento e a organização do Culto Espírita, estando, assim, sujeitos ao preenchimento do mesmo todos os Centros, Tendas, Uniões, Núcleos, Federações, etc. que se destinem a reunir adeptos para a difusão ou prática do espiritismo. [...] NÃO SE INCLUEM entre as entidades sujeitas ao preenchimento deste questionário as que não tenham estatuto, nem sejam registradas nos Cartórios de Pessoas Jurídicas ou de Registro de Títulos e Documentos, e bem como as que se dedicam à prática do chamado "baixo espiritismo" ou "magia negra", geralmente conhecidas como "terreiro", "macumba", "quimbanda", etc. (IBGE, 1973). Nestas orientações, percebe-se que os prédios religiosos ostentavam fachadas e/ou estatutos que pouco definiam as práticas realizadas em seu interior. É notória a clandestinidade que viviam certas práticas afro-brasileiras e certo desconforto de uma instituição pública de pesquisa (IBGE) em mapear aqueles cultos religiosos que as autoridades médicas, políticas e policiais entendiam como ilegais, ou seja, os grupos marginalizados que incutiam curas por. 20. Pois o rigor científico e de certa forma também o jornalístico exige a utilização de termos precisos e sem ambiguidades, evitando assim indesejáveis confusões. 21 Para se ter uma ideia da impropriedade do uso do termo “espiritismos”, às vésperas da realização do Censo IBGE/2010, postou um internauta informando que: “Rolou pela Internet (e fora dela) um burburinho sobre a questão do credo religioso que aparecerá nas pesquisas do CENSO 2010 realizadas pelo IBGE. Fala-se por aí que quem responder Espírita na pesquisa, não será enquadrado como Espírita, mas como Umbandista ou Candomblecista, apesar de o termo estar tomado errado, tanto pelos religiosos das correntes citadas, quanto pelo IBGE.” O internauta, preocupado com a fidelização dos dados do Censo, que segundo ele “o IBGE papou mosca na hora de definir a terminologia correta” - e suspeita “que foi mesmo proposital” – em colocar “muitas outras religiões, além de alguns exotéricos [sic.]” no mesmo balaio de gatos pardos, por se autodenominarem-se “Espíritas sem de fato o serem, apenas acreditados que se pensam como nós acerca da reencarnação e da comunicação mediúnica” crendo que por isto “têm o direito de classificarem-se Espíritas”, propõe a seguinte trégua: “Como o objetivo aqui não é ficar preso às terminologias, nem fazer juízo se devem ou não usar a terminologia, o ideal é que todos os Espiritistas saibam que na hora de responderem à pergunta sobre a sua religião, respondam Kardecista, embora este termo esteja genuinamente errado. A ideia não é assumirmos tal terminologia, mas apenas que contribuamos para a contagem correta a respeito dos Espíritas no Brasil.” Fonte: http://www.pensamentoshumanistas.com/2010/08/ibge-censo-2010-espiritas-ou.html..

(21) 21. procedimentos mágicos – diferentes daqueles oferecidos pela religião hegemônica – daí a acusação de charlatanismo. Arribas (2008) confirma o uso generalizado do termo “espiritismo”, desde o senso comum à academia, passando pelas instituições de pesquisa, e assim descreve seu processo classificatório: É frequente encontrarmos na literatura acadêmica a utilização do termo espiritismo para indicar mais de um segmento religioso. Nesses escritos, a distinção entre os diferentes segmentos religiosos fica a cargo somente de adjetivos ou de partículas de mesma função que os especificam. Assim, aparecem as designações espiritismo kardecista ou espiritismo de mesa branca, ou ainda alto espiritismo para designar a teoria espírita criada originalmente por Allan Kardec; e espiritismo umbandista ou espiritismo de umbanda ou baixo espiritismo para se referir à religião nascida no Brasil em meados da década de 1920. (ARRIBAS, 2008, p. 11). É importante destacar que não só a nomenclatura, mas também o critério de classificação utilizado, em determinado momento da academia, revelam-se equivocados22, ao definir, na época, a Umbanda como um dos “extremos do gradiente”, por falta de definição de nomenclatura23 dos cultos intermediários mais ou menos sincréticos com os extremos: A análise desta realidade religiosa dinâmica pode ser realizada por intermédio de um gradiente (CAMARGO:1961) em cujos polos extremos se localizam o Kardecismo e a Umbanda, encontrando-se nos pontos intermediários toda uma gama de formas religiosas mediúnicas resultantes do processo interativo entre os dois extremos do gradiente. O grau de simbiose doutrinária e ritualística identifica, ao longo do gradiente, estas diversas alternativas mediúnicas. (CAMARGO, 1973, p. 159). Da afirmação acima é preciso se questionar entre outras coisas: pode-se traçar um gradiente igualmente entre o Espiritismo e o Catolicismo (ou o Orientalismo), uma vez que houve “processo interativo” entre estes extremos também? Daí poder-se-ia denominar de Espiritismo-católico ou Catolicismo-kardecista? Realmente houve uma “simbiose doutrinária e ritualística” que justificasse tal gradiente, sendo que em tese os extremos estariam fora do gradiente, por não terem assimilado, em absoluto, nada do extremo oposto? Qual a relação possível entre a doutrina dos espíritos (KARDEC, 1995 [1857]) e a mitologia dos Orixás? Qual a simbiose ritualística entre a psicografia – onde o médium em silêncio, sentado em frente a uma mesa, daí a denominação de “mesa branca” – e o ritual de “gira” – onde os médiuns (“cavalos”) ao som da música ritmada por tambores dançam em roda, e por vezes, para facilitar 22. É preciso lembrar que o texto organizado por Candido Procópio de Camargo (1973) é um texto clássico escrito por autores/as consagrados/as, na academia, como Reginaldo Prandi, entretanto como lembra Arribas (2008, p. 118) “a diferenciação em relação ao candomblé só seria trabalhada pelos intelectuais religiosos a partir dos anos 1960-70, momento de consolidação dessa religião no campo religioso brasileiro”, assim na falta de nomenclaturas específicas, todos os cultos afro-brasileiros eram denominados de Umbanda, ou seja, o que provavelmente estes autores estavam denominando de “extremo do gradiente”, a Umbanda, era na verdade o Candomblé. 23 Os termos que denominavam estas manifestações afro-brasileiras eram bem pejorativos e provavelmente não provinham da academia, mas sim da apropriação do senso comum, como “baixo espiritismo” e “alto espiritismo”, “espiritismo de mesa branca”, “espiritismo de terreiro”..

(22) 22. a incorporação dos guias nas primeiras vezes dos médiuns iniciantes, o fazem “girar” sobre seu próprio eixo – próprio das religiões de matriz africana? O uso de “espiritismos” para designar um “gradiente mediúnico” envolve problemas éticos e antropológicos de classificação os quais depõe contra seus usuários, quer religiosos, quer acadêmicos. Primeiro, porque ordenar religiões conforme uma escala de valores é um retorno a práticas etnocêntricas hoje abolidas (ou abominadas) pelas ciências sociais que hierarquizam sociedades conforme escalas que iam do selvagem ao civilizado, do paganismo ao cristianismo... não é diferente a tentativa de estabelecer um gradiente mediúnico entre as religiões de matriz africana e o Espiritismo de origem francesa, qualquer critério de classificação e hierarquização será falho por desconsiderar a heterogeneidade de cada religião e tendencioso (etnocêntrico) por valorizar determinados aspectos socialmente aceitos em detrimento de outros aspectos que são de fundamental importância no interior do grupo, mas depreciados pela sociedade em geral. Segundo, o fenômeno mediúnico constitui traço fundamental comum a muitas religiões, inclusive do pentecostalismo, e neste caso o êxtase religioso pelo incorporar do espírito santo, profetizar e falar em línguas, dialogar com demônios (exus) incorporados em fiéis, impor as mãos e curar enfermos pelos dons do espírito santo, que o caracteriza, mesmo assim não nos autoriza englobá-lo como Espiritismo. Conforme o mesmo critério de classificação - fenômeno mediúnico proposto por Camargo (1973) - ficariam de fora dissidências espíritas como a Religião de Deus – ligada à Legião da Boa Vontade (LBV) - e o Racionalismo Cristão – que inicialmente denominava-se Espiritismo Racional e Científico Cristão – os quais necessariamente deveriam ser englobados como “espiritismo” devido a repartir a mesma cosmovisão (doutrina espírita), mas ficariam de fora, por não apresentar o fenômeno mediúnico como traço fundamental, nem em sua doutrina, nem em seu ritual. Assim também muitos centros espíritas e federações espíritas que aboliram as práticas mediúnicas ficariam igualmente de fora. Este posicionamento da academia de tudo englobar como “espiritismos” (CAMARGO, 1973), acaba sendo um desserviço para a própria academia ao deixar de considerar o contexto histórico que cada terminologia está imbricada, ou seja, ao desconsiderar a existência de tensões políticas e teológicas de distintos grupos sociais24 e em conflito. Arribas (2008) explica esta equivocada incorporação por parte da academia:. 24. Importante ressaltar a existência de grupos em desacordo dentro do próprio movimento espírita, e bem como a existência de grupos sociais de diferentes origens – grupos religiosos de diferentes denominações; os grupos acadêmicos, como a classe médica e aqueles das ciências sociais; os grupos políticos republicanos ou monarquistas.

(23) 23. os trabalhos da academia, sem o saber (ou pelo menos sem dizer explicitamente), acabaram por empregar em suas análises os termos utilizados pelos próprios agentes sob exame, termos que se referem aos móveis em disputa e que servem para (des)classificar os agentes e/ou grupos no e em jogo. São, portanto, apropriações sem reflexões de uma linguagem êmica — linguagem que dá corpo a uma disputa em cuja dinâmica interna tem como princípio a busca incessante de distinção frente aos demais participantes. Em outras palavras, os pesquisadores, isto é, os sujeitos da objetivação apropriam-se da linguagem dos agentes analisados sem perceberem que a própria linguagem é ela mesma um fator importante a ser levado em conta na especificação do objeto a que se estuda, já que o que está em jogo é o poder legítimo, porque reconhecido, de ditar e de (des)classificar, [...]. (ARRIBAS, 2008, p. 11). Paulo César Fernandes (2008) sintetiza bem não só este posicionamento, como toda a discussão sobre o uso do termo “espiritismos”: Cria-se assim o ambiente confuso que vai até os dias de hoje, o que levou alguns autores a se perguntarem se existiriam vários "espiritismos" em nosso país. Para o meio e instituições "oficiais" do espiritismo, a resposta é categórica e simples: não. Não existem vários espiritismos, existe um apenas, o que foi codificado por Allan Kardec. O que se convencionou chamar de "espiritismo popular" seria apenas uma apropriação nossa dessa doutrina francesa, que funcionava como mais uma arma para lidar com o ambiente de insegurança social que tinha se agravado com a Guerra do Paraguai e os conflitos sociais do século XIX. Mudou-se alguns nomes e títulos, leu-se Kardec para ele aparecer como figura de retórica, mas poucos sinais de um comprometimento com a doutrina e com vários aspectos basilares de seus princípios. Por isso, apesar de sabermos da existência de cultos que recebem nomes como "espiritismo kardecista", "espiritismo de mesa branca", "espiritismo umbandista", etc., devemos colocar em questão até onde vai o nível de envolvimento dessas crenças com o que o espiritismo diz de si. Naturalmente, qualquer indivíduo ou agrupamento de indivíduos teria a liberdade de ter e nomear um credo. Todavia, apropriações podem gerar confusões que se apresentam com demasiada força quando estamos no esforço por entender melhor uma doutrina, no caso, o espiritismo. Aliado a isso, os meios espíritas "oficiais" sempre resistiram (com muito empenho, devemos dizer) a essas tentativas, o que demonstra que essa busca por uma "pureza" pode conter algo mais do que simples apego doutrinário. (FERNANDES, 2008, p. 94). Como, na atualidade, já não se faz tão necessário ou interessante a apropriação de termos correlatos ao Espiritismo por parte, ao menos, das religiões afro-brasileiras, pois o tempo de perseguição médico-jurídico-policial já passou. Assim, para fugir ao uso da classificação “Espiritismo kardecista” ou só “Kardecismo”, também levo em consideração o exposto por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2008): Os grupos religiosos com que entrei em contato definem-se como espíritas. Adotando como referência doutrinária básica as obras codificadas por Allan Kardec, esses grupos veem o Espiritismo como distinto de "outras formas de Espiritualismo". Se a maioria dos estudiosos do assunto enfatiza a relação ou continuidade entre Espiritismo e Umbanda, os grupos que pesquisei, definidos pela frequência a determinadas instituições e pelo partilhar da mesma crença, estão pelo contrário extremamente preocupados em demarcar as fronteiras de sua religião com relação às demais e, em especial, a Umbanda. (CAVALCANTI, 2008, p. 9). – que disputavam o direito de uso da terminologia em questão, ora de forma pejorativa e depreciativa, ora de forma a “agregar valor” e autoridade à sua crença..

(24) 24. Assim, concluo que o uso do termo “kardecista” para qualificar o Espiritismo de origem francesa, embora o diferencie de outras religiões que se apropriaram dos termos “espírita” e “espiritismo”, corrompe o objeto de pesquisa ao associar a este concepções que os espíritas desde o princípio combatem, como a divinização de Kardec e a adoração aos médiuns – pois a Doutrina Espírita é resultado do ensino dos espíritos, como creem a maioria dos espíritas, daí o termo “Espiritismo”, e não do ensino de Kardec (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44)25, para ser denominado de “Kardecismo” – entre outras questões. É preferível evitar.. 4. PSICOGRAFIA: Autoria do/a médium ou do/a autor/a espiritual? Ao contrário da produção dos intelectuais espíritas, produto de homens, as obras psicografadas são produtos espirituais. (CAVALCANTI, 2008, p. 111). Ressalto que o presente texto pretende-se acadêmico e de cunho antropológico, ou seja, não tem pretensão de ser doutrinário, nem tampouco apologético. Aqui, tal como fez Maria Laura Viveiros de Castro (1988, p. 7), “O Espiritismo será analisado como um fato sociológico”. E como o objeto de pesquisa envolve textos psicografados e outros de autoria do/a próprio/a autor/a encarnado/a26, não é minha intensão afirmar ou rejeitar a possibilidade de autoria espiritual dos textos aqui analisados. Orientando-me no exemplo de Alexander Moreira de Almeida (2004), a respeito da fenomenologia das experiências mediúnicas, também não almejo “investigar a veracidade ontológica das vivências mediúnicas” (2004, p. 14). E, também, como Almeida (2004, p. 14), tomei como estilo dissertativo a utilização do presente do indicativo, na maior parte das vezes quando são descritas as teorias espíritas, “para evitar o uso excessivo e cansativo do futuro do pretérito e de expressões como ‘suposto’ ou ‘hipotético’”. Assim, aqui, a “mediunidade de psicografia” é entendida como um fenômeno ou experiência religiosa e subjetiva, e buscando como pesquisador, um distanciamento proposital,. “O Livro dos Espíritos, 500 páginas [...] é um trabalho de classificação e de síntese, uma sistematização realizada a partir de uma vasta quantidade de mensagens transmitidas por Espíritos a um grupo de médiuns [...] Não se trata de uma obra de Kardec, que sempre negou ter elaborado uma doutrina, mas de uma obra coletiva ‘codificada’ por ele e ‘corrigida’ por ‘Espíritos Superiores’ [...]” (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44) [Grifos meus]. 26 Termo do vocabulário espírita que designa aquele espírito que se encarnou ou reencarnou em um corpo carnal humano, no ato de seu nascimento; diferente do espírito desencarnado que pertence ao mundo espiritual por ter passado pela morte de seu corpo físico. 25.

(25) 25. não as considero como falsas ou patológicas, mas como “Experiência Anômala (EA)”27, e assim pode ser compreendida como questão religiosa ou espiritual e não necessariamente se constitui em loucura28 ou alucinação (MOREIRA-ALMEIDA; CARDEÑA, 2011, p. 22). Para Weber (1982, p. 340) o que importava no domínio carismático não era a veracidade ou falsidade dos conteúdos religiosos, mas sim na competência do/a líder carismático/a em promover o bem-estar dos/as adeptos/as, daí a eficácia de suas mensagens29. Assim, para esta pesquisa socioantropológica, não importa a autoria da mensagem (se espiritual ou anímica30) – embora seja interessante distingui-las – nem se existem espíritos ou a possibilidade destes se comunicarem com os/as médiuns. Para a análise são fundamentais não só os conteúdos veiculados (impregnados de representações de gênero), mas principalmente entender o grau de legitimação e autoridade de quem fala, pois é através do carisma deste que são assimilados ou não, tais conteúdos (crenças, práticas e valores). Neste sentido, esta pesquisa converge com o pensamento de Durkheim (1989, p. 30) quando este afirmava que fazer história ou etnografia religiosa não era fazer guerra contra a religião. Pois, para ele “esse não poderia ser o ponto de vista de um sociólogo”. E, bem como não cabe refutar a possibilidade de uma autoria espiritual, mas ter segurança de que tais experiências anômalas (ou mediúnicas), como propõe Durkheim (1989, p. 30), “se prendem no real e o exprimem” para aquele/a que crê (o/a leitor/a e sua comunidade), não importando se as razões que usa para justificá-las sejam errôneas ou equivocadas. Alerta Durkheim que tais razões são sempre reais e verdadeiras e cabe ao pesquisador analisá-las31. “Experiência anômala (EA) é um termo que tem sido proposto para nomear, sem assumir implicações psicopatológicas, vivencias incomuns ou que se acredita serem diferentes do habitual ou das explicações usualmente aceitas como realidade: alucinações, sinestesia e vivencias interpretadas como telepáticas etc. Essas EA podem ser investigadas sem que se compartilhe das crenças que as envolvem, podendo ser pesquisadas como experiências subjetivas.” (MENEZES JR. et al., 2012, p. 203) 28 O Código Internacional de Doenças (CID-10), no item 44.3, são classificadas as psicopatologias de Estados de transe e de possessão, são “Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito.” [Grifos meus]. Disponível em:<http://cid10.bancodesaude.com.br/cid-10f/f443/estados-de-transe-e-de-possessao>. Acesso em: 24 maio 2014. 29 “A fonte dessas crenças e a ‘prova’ das qualidades carismáticas através de milagres, de vitórias e outros êxitos, ou seja, através do bem-estar dos governados. [...] O domínio carismático não é controlado segundo as normas gerais, tradicionais ou racionais, mas, em princípio, de acordo com revelações e inspirações concretas, e, nesse sentido, a autoridade carismática é ‘irracional’. É ‘revolucionaria’ no sentido de não estar presa a ordem existente: ‘Está escrito... mas eu vos digo...!’ ” (Weber, 1982, p. 340) 30 Diz-se “anímico” quando a mensagem é proveniente da própria consciência ou subconsciência do/a próprio/a médium. 31 “As religiões, com efeito, são consideradas como tendo valor e uma dignidade desiguais; diz-se, geralmente, que elas não possuem a mesma parte de verdade. [...] Não é nossa tarefa investigar aqui se realmente houve estudiosos que mereceram esta censura e que fizeram da história e da etnografia religiosa uma máquina de guerra contra a religião. Se como for, esse não poderia ser o ponto de vista de um sociólogo. [...] Na verdade, postulado essencial da sociologia é que uma instituição humana não poderia repousar sobre o erro e sobre a mentira: sem 27.

(26) 26. No entanto, para a análise deste objeto de pesquisa, em perspectiva de gênero, além de considerar a possibilidade da autoria espiritual, faz-se necessário distinguir a personalidade do/a médium e as personalidades dos espíritos que se comunicam através da psicografia, as quais têm biografias e características próprias e distintas entre si. É possível entender, por exemplo, o pensamento do médium Chico Xavier (Francisco de Paula Cândido Xavier) contido em suas entrevistas e depoimentos quando relaciono este aos acontecimentos ocorridos em sua biografia. Assim como é possível identificar os traços psicológicos e ideológicos dos/as autores/as espirituais quando associo às personalidades indicadas pelo movimento espírita como sendo a real autoria da mensagem psicografada. Assim, os depoimentos de Chico Xavier diferem do perfil psicológico da mensagem dos espíritos comunicantes Emmanuel, André Luiz, Humberto de Campos (identificados como personalidades masculinas) e Meimei, Maria Dolores, ou Maria João de Deus – espírito de sua mãe – (identificadas como personalidades femininas). Neste sentido, Bernardo Lewgoy (2000) destaca que a produção literária de Chico Xavier tem como característica fundamental uma “espécie de polivalência mediúnica”, construída a partir de uma “divisão do trabalho dos espíritos-autores” que se comunicam por meio dele: Emmanuel é o espírito de luz, doutrinador por excelência, ligado à moralidade e à religião; André Luiz é o médico e cientista que descreve o mundo espiritual, profundamente conectado às letras, às ciências, à perspectiva de evolução dos seres humanos; Meimei é o espírito feminino, bondosa e ligada ao lar, etc. (LEWGOY, 2000, p. 139). 5. PROJEÇÃO DA DISSERTAÇÃO. No primeiro capítulo, meu objetivo foi descrever a história do Espiritismo e seu estabelecimento no Brasil, e assim levantar as relações e as representações de gênero que se constituíram no caldo cultural onde a literatura doutrinária espírita foi produzida. No segundo capítulo, com base em algumas pesquisas de campo de autores/as que estudaram o Espiritismo pelo viés socioantropológico (CAVALCANTI, 2008; LEWGOY,. isso ela não poderia durar. Se não estivesse por base a natureza das coisas, encontraria nas coisas resistência que não poderia vencer. Portanto, quando enfrentamos o estudo das religiões primitivas já temos a certeza de que elas se prendem no real e o exprimem; [...] As razões que o fiel dá a si próprio para justificá-las podem ser, e são realmente, no mais das vezes, falsas; as razões verdadeiras existem, não obstante; cabe à ciência descobri-las. [...] Não há, pois, no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira: todas respondem, ainda que de maneira diferentes, determinadas condições da vida humana.” (DURKHEIM, 1989, p. 30-31)..

(27) 27. 2000; SILVA, 2006), apresento e discuto a organização interna do Espiritismo no que tange a divisão sexual do trabalho. No último capítulo, analiso a produção lítero-doutrinária espírita em perspectiva de gênero, utilizando o método da análise de conteúdo..

Referências

Documentos relacionados

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa

A abertura de inscrições para o Processo Seletivo de provas e títulos para contratação e/ou formação de cadastro de reserva para PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR

Codificação semelhante a essa pode ser observada no fenô- meno conhecido como new journalism, que teve nos Estados Unidos o ponto inicial de sua elaboração: um estilo de reportar