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ANÁLIA FRANCO, AMÁLIA RODRIGUES E AMÁLIA DOMINGO Y SOLER

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?

1.8. ANÁLIA FRANCO, AMÁLIA RODRIGUES E AMÁLIA DOMINGO Y SOLER

Estas três personalidades femininas, espíritas e jornalistas se destacaram no movimento espírita mundial, mas não obstante escreverem artigos para revistas femininas, alguns destes bem críticos e politizados, seus escritos não trouxeram para o interior do movimento uma significativa mudança em relação às representações de gênero espíritas.

Registro aqui um pouco da biografia destas três lideranças femininas para afirmar a existência de vozes dissonantes, em relação às representações de gênero, dentro do Espiritismo, ainda no início do século XX.

Anália Franco (185674-1919), nascida da cidade de Rezende-RJ, mas foi em São Paulo que fez toda sua atuação e militância. Foi professora nomalista, jornalista, escritora e filantropa brasileira.

Ela sempre foi muito discreta em relação a sua adesão (simpatia?) ao Espiritismo, pois “em seus manuais e periódicos não há nenhuma citação direta de Anália ser adepta do

Espiritismo”75 (CHRISTO e LODI, 2012, p. 241).

A biografia de Anália Franco aparenta ser76 muito semelhante à de Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues (1861-1926) nascida em Santo Amaro da Purificação-BA. Ambas professavam ideias feministas e mantinham publicações em revistas femininas, mas não- espíritas.

Augusta do Sacramento Rodrigues, para nós espíritas Amélia Rodrigues. Baiana de Santo Amaro é considerada a precursora do movimento feminista naquele estado, professora, escritora, poetisa, teatróloga, militante na defesa da igualdade de

direitos percorria as cidades alertando sobre a situação das mulheres na sociedade. Estimulava-as a se reunir em grupos para atuar coletivamente, sendo a fundadora

da revista “A Paladina”, primeira publicação feminista do estado da Bahia, que

defendia o direito às mulheres de uma educação formal e também ao voto.

Inspiradas por ela foram criadas associações que recebiam moças vindas do interior, de famílias pobres, para que encontrassem apoio, trabalho e dignidade em Salvador.

(TEODORO, 2014, s.p.) [Grifos meus].

Anália Franco tinha uma “visão inspirada e futurista”77 que buscava atender “a

necessidade mulher alfabetizar-se e profissionalizar-se para sair da pobreza ou, por opção,

74 Sobre o ano do seu nascimento, há documentos que indicam ser 1853, como o batistério.

75 Monteiro (1992, p. 78) assim justifica a atitude reservada de Anália Franco, em relação à sua convicção religiosa

por ela “ser espírita e não a Associação por ela criada [...] Não que negasse sua fé espírita, mas é que Anália

fazia questão de separar as atividades espíritas das educacionais para não prejudicar estas últimas [semelhante

ao que fizera o pedagogo Rivail, criando o pseudônimo Kardec para as obras espíritas], já que no começo do século

era muito forte a influência da Igreja na sociedade e deveras considerável o preconceito contra os espíritas [...]

Continua Monteiro (1992, p. 192) “Conquanto procurasse se preservar dos comentários e discussões religiosas

da época, na intimidade de suas cartas e na convivência com seus alunos, Anália não perdia a oportunidade de incentivar o estudo e a prática da Doutrina Espírita. Nesta carta à sua discípula Augusta Ormiéres, ela registra todo o apego que tinha pelo Espiritismo: [...] Peço-lhe encarecidamente que nunca deixe de estudar os santos Evangelhos de Kardec, seguindo sempre essa bela e santa doutrina que tanto nos fala à alma e ao coração [...] Anália Franco”.

76 Como não era objeto desta pesquisa investigar biografias, não aprofundei o estudo biográfico de Amélia

Rodrigues, me restringindo a poucas pesquisas na Internet. De sua formação e atuação em obras sociais católicas, suponho que em vida não tenha conhecido ou aderido ao Espiritismo. Entretanto, “No Plano Espiritual, continuou

seu trabalho esclarecedor e educativo, baseado no Evangelho de Jesus, fonte inspiradora de suas obras quando encarnada. Encontrou na Espiritualidade – seara infinita da imortalidade – maior expansão para seu espírito sequioso de conhecimento e faminto de amor, dando vazão aos anseios mais nobres. Aprofundou-se na mensagem de Jesus e, na atualidade, participa da falange de Joanna de Angelis, mentora de Divaldo Pereira Franco.” Fonte:

http://www.espiritismobrasil.com/biografias-de-icones-do-espiritismo/amelia-rodrigues-biografia/. Acesso em: 15 nov. 2014.

77 Para o visionário espírita Leon Denis (1987, p. 142) um programa de ação do socialismo espiritualista poderia

“dissipar os prejuízos de castas, de raças, de cores, de religiões e fazer nascer um sentimento profundo de

fraternidade única”. Repare que a discriminação sexual não está clara para o autor espírita. Para ele, entre outras

ações, o programa deveria: “Proteger a mulher contra as fraquezas mórbidas e as seduções funestas,

desgarrar-se da tutela do homem” (MONTEIRO, 1992, p. 71), e também favorecendo ao

“contingente feminino pobre de complementar o orçamento doméstico trabalhando fora , com

a tranquilidade de saber que suas crianças estariam seguras e bem cuidadas numa instituição asilar [...] [onde] as crianças entravam às 6hs da manhã e se retiravam às 19:35 hs”

(MONTEIRO, 1992, p. 86).

Anália pensava uma escola que incluísse e desse acesso indiscriminado a crianças, independente da sua condição social, [sexo,] cor e credo. Partilhava do ideal de que

a mulher alcançasse sua independência, por esforço próprio, por isso colaborou, por meio de ações educativas e pela imprensa feminina, com a promoção da educação da mulher. (CHRISTO e LODI, 2012, p. 19)

Christo e Lodi (2012, p. 207) explicam que Anália Franco também recebera as influências de algumas ideias de feminismo, como as de John Stuart Mill, que estavam em voga78 no final do século XIX e início do século XX.

As autoras explicam o livro “A sujeição das mulheres” de Mill, publicado no ano de falecimento de Kardec (1869), já defendia a ideia de que a mulher era intelectualmente apta a qualquer tipo de trabalho. Elas, as autoras, afirmam que Anália Franco publicou na edição de nº 5 de “A Voz Maternal”, notícias sobre o feminismo desenvolvido na Austrália. E concluem as autoras: “Por suas constantes publicações em defesa da emancipação da mulher, conclui-se

que Anália Franco tinha alguma relação com princípios feministas” (CHRISTO e LODI 2012,

p. 207).

Outra semelhança entre estas jornalistas feministas, Anália e Amélia, é o caráter filantropo de suas obras sociais, Amélia Rodrigues depois de aposentada fundou o “Instituto Maternal Maria Auxiliadora”, que mais tarde assume a direção da “Casa dos Expostos” e, Anália Franco fundou a “Associação Feminina Beneficente e Instrutiva,” com inúmeras escolas profissionalizantes e asilos-creche.

Amália Domingo y Soler (1835 - 1909) esta, sim, expoente do jornalismo feminino e espírita, diferente das anteriores. Foi médium e escritora, pertencente ao movimento espírita espanhol. Dirigiu o periódico “La Luz del Porvenir”, revista dedicada exclusivamente à mulher espírita e onde só escreviam mulheres (BOGO, 1974, p. 93).

dos filhos.” Com este pensamento, Denis antecipa alguns direitos trabalhistas de proteção à maternidade, porém

não responsabiliza os homens pela educação dos filhos...

78 De fato as ideias de Stuart Mill estavam em voga e também chegaram ao conhecimento de Allan Kardec, o qual

publicou na Revista Espírita (junho de 1867) algumas ideias feministas de Stuart Mill, em um artigo intitulado de

O periódico foi denunciado79 à polícia-de-imprensa de Alfonso XII (BOGO, 1974, p. 97) e teve a sua publicação suspensa por 42 semanas, logo após a publicação do terceiro número, por ordem das autoridades eclesiásticas, que nesse tempo exerciam o papel de policiamento das publicações religiosas.

Estas escritoras, Amália Rodrigues e Anália Franco, à semelhança de Amália Domingo tinham “audácia, valentia e virilidade intelectual” (BOGO 1974, p. 182). Elas mantiveram um comportamento em flagrante contradição com a representação feminina da época. Elas desafiaram o fechado gueto masculino da imprensa. Principalmente, Anália Franco, que em suas escolas profissionalizantes, educara e profissionalizara mulheres pobres e com pouca instrução no ofício de tipografia80.

E finalizo este primeiro capítulo histórico e introdutório para a compreensão das representações de gênero no Espiritismo, tratando da biografia do principal médium brasileiro, Chico Xavier, cujo exemplo de vida e sua produção literária reafirmam as representações contidas nos textos de Allan Kardec – como já afirmei anteriormente.

1.9. CHICO XAVIER, A MATRIFOCALIDADE E REFERENCIAIS MASCULINOS

Bernardo Lewgoy (2001), Sandra Stoll (2004), Marcel Souto Maior (1994), entre outros biógrafos espíritas, traçaram a biografia de Chico buscando compreender a relevância que este e sua obra literária tiveram no movimento espírita.

Tal relevância, consubstanciada por uma “aura de credibilidade que contribuiu para

consolidar sua liderança religiosa” (STOLL, 1999, p. 154), a qual conforme Fábio Luiz da

Silva (2005) foi:

Garantida pelos muitos livros e pela santificação de sua imagem, confere ao discurso que estamos analisando uma autoridade quase incontestável dentro do movimento espírita. O “capital simbólico” vinculado a Chico Xavier garante, para a maioria dos espíritas, a veracidade do conteúdo de suas obras, o que representa, ao mesmo tempo, um ganho de autoridade para aqueles que as publicam, no caso, a FEB.

(SILVA, 2005, p. 80)

79 Parece-me que vários fatores somaram-se nesta denúncia, entre eles a violência de gênero, por ser mulher num

campo masculino (a imprensa) e por não ter formação própria para a função – tal como reclama Amália Domingo: “que títulos tenho eu para dirigir um periódico” (BOGO, 1974, p. 96), principalmente porque instrução feminina oferecida era limitada – e por fim, por defender uma doutrina religiosa contrária à região oficial do país (Espanha).

80 No relatório de 1905, da “Associação Feminina Beneficente e Instrutiva”, Anália Franco retrata,

empolgadamente, que as tiragens de “A Voz Maternal” e “Manual Educativo”, ambos órgãos da Associação, estavam “a cargo das alunas tipógrafas que apresentem mais vocação e gosto para essa arte”. Nesta oficina profissionalizante achavam-se empregadas, além de 12 asiladas, uma vigilante e dois empregados subalternos. Retirando os professores auxiliares de Tipografia, os quais eram todos homens (Monteiro, 1992, p. 134), chama a atenção a ocupação feminina de ofícios tipicamente masculinos.

Chico Xavier, nasceu em 2 de abril de 1910, na cidade de Pedro Leopoldo, era filho do vendedor de loteria João Cândido Xavier e de uma mãe muito católica, Maria João de Deus.

A analise da família do médium Chico Xavier (na sua infância) remete ao modos

vivendi de uma família tipicamente católica, interiorana (mineira) do início do século XX. Onde

os comportamentos de cada elemento da família eram condicionados pelas representações de gênero do jeito católico de ser81.

Segundo Heleieth Saffioti (2013, p. 145), as relações de gênero que se engendram na hierarquia do “grupo familial” católico82 se fazem “segundo o preceito bíblico de que o homem é a cabeça, e a mulher o coração”83, cabendo assim, ao homem buscar o sustento da família e

seu governo, e quanto à mulher, “a Igreja católica insiste em colocá-la ao lado das crianças e

confiná-la aos trabalhos domésticos sempre que possível” (SAFFIOTI, 2013, p. 144).

Chico, aos quatro anos de idade, viveu o drama da ineficiência deste modelo de família, onde homens e mulheres são seres complementares84, onde há rígido controle por parte da

sociedade e de suas instituições sobre a manutenção e o cumprimento dos papéis sexuais diferenciados.

E para compreender o drama de infância de Chico é preciso que se entenda que neste modelo de família a divisão sexual do trabalho mutila não só “várias dimensões da

personalidade feminina” como “existem também condutas impostas aos homens, que limitam extraordinariamente seu desenvolvimento” (SAFFIOTI, 1987, p. 27).

Os homens “são, pois, obrigados a castrarem certas qualidades”, como cuidados e proteção à prole ou gestão (democrática) da economia doméstica, “por serem estas

consideradas femininas, por conseguinte, negativas para um homem”, assim para que estes

81 Chico Xavier, oriundo de família católica, “Amoldou-se à comunidade católica, obedecia às obrigações ditadas

pelo catolicismo, confessava-se, comungava, comparecia pontualmente à missa e acompanhava as procissões”

(AGUIAR, 2006, p. 17). Em 1927 ajudou a fundar o Centro Espírita Luís Gonzaga, uma referência ao santo católico, como descreve Souto Maior (1994, p. 16) seria uma homenagem ao “rei da França e não São Luiz

Gonzaga. De qualquer forma, o batismo do centro não foi tão despropositado assim. O monarca francês tinha protegido Allan Kardec, o codificador da doutrina espírita, no século passado e, portanto, merecia algum respeito”.

82 Estas representações de gênero parecem não diferir muito do “grupo familial” espírita do entresséculos em

questão.

83 Este preceito paulino (I Corintios 11:3), que norteou as representações de gênero do cristianismo, foi também

usado por Kardec (2004 [1858], p. 513) para reforçar esta tradicional divisão sexual do trabalho nas famílias espíritas: “Homens, [...], sereis a cabeça e as mulheres serão o coração”. Posteriormente, o espírito Emmanuel prescreveu algo semelhante: “O homem e a mulher, no instituto conjugal, são como o cérebro e o coração do

organismo doméstico.” (EMMANUEL [Espírito]; XAVIER [médium] 1945 [1940], p. 30)

84 A ideia de complementaridade dos sexos é central para as representações de gênero no Espiritismo. A diferença

anatômica dos sexos é projetada também para espaços, funções (papéis sociais) e padrões comportamentais distintos. E é na família que se dá esta complementaridade, diz Kardec (2004 [1858], p. 513) que sendo distintos os sexos “formareis então um todo” e prescreve “Uni-vos, pois, não só pelo amor, mas ainda pelo bem que

cumpram “adequadamente o papel do macho” os homens devem “inibir sua sensibilidade” (SAFFIOTI, 1987, p. 25).

Para Heleieth Saffioti (1987, p. 23) a manutenção de um modelo de família androcêntrico, “o machismo do trabalhador” – e não só da classe trabalhadora, mas também da burguesia, como apresentei anteriormente, o caso das dificuldades financeiras do professor Kardec que poderia ser diferente se Amélie Gabrielle Boudet continuasse sua carreira profissional, de escritora e professora após o casamento – volta-se contra o próprio chefe de família, por dois motivos: primeiro porque cobra-se dele “um preço excessivamente alto para

mandar na mulher” e segundo, porque “a supremacia masculina” impede o sucesso da própria

família, como tal.

Feitas estas necessárias exposições sobre as representações de gênero católicas, retomo o drama vivido pelo menino Chico, como retratado por Marcel Souto Maior:

Maria João de Deus foi embora cedo demais e, ao se despedir, deixou em casa um garoto ao mesmo tempo magoado e impressionado.

Pouco antes de morrer, ela pediu ao marido que distribuísse os nove filhos pelas casas de amigos e parentes. Só assim João Cândido, vendedor de bilhetes de loteria, conseguiria viajar pelas cidades vizinhas em busca de dinheiro.

No pé da cama onde a mãe agonizava, atormentada por crises de angina, Chico cobrou:

- Por que a senhora está dando seus filhos para os outros? Não quer mais a gente, é isso? (MAIOR, 1994, p. 12)

Em atitude desesperada e desesperançada, a mãe de Chico, Maria João de Deus pediu ao marido repartir os/as filhos/as, pois sabia da incapacitação (cultural) dos homens em administrar o trabalho doméstico e conciliar este com um trabalho remunerado.

A crença de que os homens só se realizam, com sucesso, no espaço externo ao lar impediu que o pai de Chico, João Cândido Xavier, mantivesse a coesão familiar – contando, inclusive, com a ajuda dos/as filhos/as para a composição do orçamento doméstico – e encontrar uma solução simples, como aquela implementada uns dois anos depois, pela segunda esposa, Cidália Batista que

Pediu a ajuda de Chico. Plantaria uma horta, e ele venderia os legumes.

O menino abriu um sorriso e arregaçou as mangas. Sempre descalço, carregou baldes com água, encheu balaios com esterco colhido no campo e, em poucas semanas, já percorria as ruas da cidade com um cesto de verduras a tiracolo. Cada maço de couve ou cada repolho valia um tostão. Até dezembro de 1918, de tostão em tostão, eles conseguiram juntar 32 mil-réis. Em janeiro, Chico já estava matriculado no Grupo Escolar São José. (MAIOR, 1994, p. 16).

Segundo Lewgoy (2001), a infância e a adolescência de Chico Xavier são marcadas por influências decisivas da figura materna ou de suas substitutas.

Consequentemente, a obra de Chico ficou marcada por personalidades femininas que orbitam as representações de gênero da mulher-mãe. Para Lewgoy:

A ênfase na mãe [...] nunca deixará de povoar desde as manifestações públicas de Chico Xavier até os seus textos psicografados. É justamente esse destaque atribuído à “mãe” como formadora moral, influência decisiva no âmbito familiar e intercessora privilegiada junto ao plano espiritual, que é afirmada nessa trajetória de juventude.(LEWGOY, 2001, p. 62)

E agora, realizado o esforço de contar uma “her-story” espírita, destacando o papel das mulheres na história do Espiritismo, no próximo capítulo, passo a descrever, em perspectiva de gênero, a participação de homens e mulheres nas instituições espíritas. Embora o enfoque desta pesquisa seja relacional, ainda precisei destacar o papel feminino no Espiritismo, para poder visualizar as relações de gênero através de uma pesquisa bibliográfica, pois textos acadêmicos e também espíritas pouco, ou quase nada, tratam destas relações. E quando o fazem, destacam só o papel (“função”) social das mulheres no interior dos lares.

A grande maioria dos textos utiliza-se do termo genérico masculino “o homem” para referir-se a pessoa humana, o que esconde relações desiguais de gênero no interior do movimento. Por isso, ainda, nos próximos capítulos, continuarei a dar destaque à participação feminina nos centros espíritas (capítulo 2) e às representações de mulher (capítulo 3) na produção lítero-doutrinária espírita.

CAPÍTULO 2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO ESPIRITISMO

Como procurei demonstrar, no capítulo anterior, ao longo dos quase 150 anos de história do Espiritismo, na França, no Brasil e provavelmente pelo resto do mundo, as relações e representações de gênero foram sendo constituídas com base no entrechoque deste com o Catolicismo e com a classe médico-psiquiátrica, e bem como, estas se constituíram sob a influência da filosofia positivista, dos ideais dos socialistas utópicos e da classe militar.

Se no capítulo anterior o enfoque foi histórico, neste capítulo, busquei estabelecer no processo dialético das representações de gênero, contidas na literatura espírita85, e da práxis espírita – registrada em pesquisas de campo de pesquisadores/as brasileiros/as (SILVA, 2006; LEWGOY, 2000; RODRIGUES, 2012; FERNANDES, 2008; ALMEIDA, 2004; CAVALCANTI, 2008) e em minha experiência pessoal – possíveis explicações para a divisão sexual do trabalho nas instituições espíritas.

A intenção foi buscar contextualizar, dentro das limitações de uma pesquisa bibliográfica, as representações de gênero espíritas em seu lócus – o centro espírita, espaço privilegiado da produção e reprodução do ethos espírita – e assim embasar o próximo capítulo que consiste em “investigar a compreensão dos indivíduos no contexto cultural em que são

produzidas as informações ou, enfim, verificar a influência desse contexto no estilo, na forma e no conteúdo da comunicação” (FONTELES, 2007, p. 8).

2.1. “SER ESPÍRITA É UMA FORMA DE SER INTELECTUAL”86

Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo. No

Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além-túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: “Irmãos! nada perece. Jesus-Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade.” – O Espírito de Verdade. Paris, 1860. (KARDEC, 2010 [1864], p.134) [Grifos meus.]

Tratando-se, agora, especificamente do Brasil, o Espiritismo, ao ser transplantado para cá, ainda na segunda metade do século XIX, constituiu-se, majoritariamente, como uma alternativa religiosa típica de camadas médias urbanas (CAMARGO, 1973; AUBRÉE e

85 Embora não faça parte do objeto de estudo desta pesquisa, aqui apresentarei uma pequena síntese de como outros

autores da academia trataram as questões de gênero nos romances espíritas, e bem como no artigo apresentado na ABHR-Sudeste (BRADBURY, 2013-b) onde fiz uma pequena análise de gênero, do texto e das imagens, na literatura espírita infantil para termos um certo paralelo com a produção lítero-doutrinária, a qual é o foco desta pesquisa.

86 Expressão de Parke Renshaw que se encontra em: A Sociological Analysis of Spiritism in Brazil (mimeog.).

Dissertation presented to the Graduate Council of The University of Florida, University of Florida, 1969, citada por M. L. V. C. Cavalcanti (2008, p. 17).

LAPLANTINE, 2009; ARRIBAS, 2008; STOLL, 2002 e IBGE, 2000; 2010).

E como tanto as camadas médias urbanas quanto o contingente de espíritas e simpatizantes apresentam como característica comum certo domínio do “saber letrado e a

formação erudita”, em decorrência disto, a práxis espírita tem se caracterizado por intensa

valorização das práticas de estudo e leitura (LEWGOY, 2000; 2004).

Em decorrência disto, entre o Espiritismo e seu público de classe média87 existe uma “afinidade eletiva” determinada pela racionalização da fé88 – ou “racionalização do sagrado”

(DIAS, 2011, p. 11) – e pelo espírito metódico e crítico89 – muito próximo de modelos científicos e pedagógicos – prova disto é como o Espiritismo, numa época marcada pelo

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