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A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas

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CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO

3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO

3.2.1. O “S EXO DOS A NJOS ”: DA T EORIA M ETAFÍSICA ÀS R EPRESENTAÇÕES DE

3.2.2.1. A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas

“- Dei o mundo ao homem, mas confiei a vida ao teu coração [mulher]”.

(MEIMEI158 [Espírito]; XAVIER, [médium], 1971-a, p. 13).

O Espiritismo é uma doutrina teísta, e como tal, idealista por crer na pré-existência de um modelo ideal para toda a criação material. A origem deste modelo ideal é a sabedoria divina,

157 E não uma típica família da classe operária em que as mulheres vendem sua mão de obra para o sustento da

família, muito embora Kardec tenha palestrado para famílias operárias em Lyon e Brotteaux, mantinha-se o mesmo modelo burguês de família: “A mulher sinceramente espírita só poderá ser uma boa filha, boa esposa e boa mãe

de família” (Kardec, 2005 [1862], p. 41).

158 Ressalto que Bernardo Lewgoy (2001, p. 139) assim caracteriza a autora espiritual Meimei: “é o espírito

donde partem “todas as leis da Natureza”, as quais são “leis divinas, porque Deus é autor de

todas as cosias” (KARDEC, 1995 [1857], p. 306).

E em relação à dicotomia sexual da natureza humana, conforme explicam os espíritos a Kardec159, que Deus determinou funções especiais a cada sexo ao criar a dualidade sexual humana: “Ao homem, por ser o mais forte, os trabalhos rudes; à mulher, os trabalhos leves” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380)

A afirmativa, acima, de Kardec não só justifica um passado de “abuso da força” 160 e de “rudeza” (caráter truculento, bruto e desajeitado) por parte dos homens, mas igualmente legitima seu o papel sexual na família e na sociedade em geral, referendando sua posição na divisão sexual do trabalho vigente, perpetuando tais “papéis naturalizados” (GONDIM; WEBER, 2011, p. 5) ou seja, posições em uma hierarquia sexual “pré-definidas para serem

ocupadas por cada gênero” (SOUZA, 2013, p. 2).

Em relação às mulheres, a assertiva parece ser conformadora por propor uma compensação: a falta de força física é compensada pela sensibilidade e delicadeza do caráter feminino, como se lê abaixo:

Deus apropriou a organização de cada ser [sexo] às funções que deve realizar. Se deu à mulher menos força física, dotou-a, ao mesmo tempo, de uma maior sensibilidade em relação à delicadeza das funções maternais e a fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados.(KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381)

Bem analisadas, as caraterísticas femininas elencadas por Kardec são antes de origem psicomotora e psicossocial, ou seja, são mais características condicionadas ou aprendidas culturalmente, do que psicobiológicas genéticas, herdadas ou inatas. Lembrando famosa afirmação de Simone de Beauvoir (1980), as mulheres não nascem mulheres, tornam-se mulheres, assim também os homens não nascem fortes, mais racionais ou líderes natos, mas são assim condicionados.

Assim como Berger (1985, p. 48) afirma em relação às religiões em geral, o Espiritismo ao atribuir a Deus a causa da divisão sexual do trabalho legitima um fenômeno humano “em

um quadro cósmico de referência”. Parece proposital na literatura doutrinária espírita, como

retratei na unidade de análise anterior, a falta de clareza sobre até que ponto e o quanto é de origem natural ou divina esta divisão sexual do trabalho e quanto é humano, arbitrário e cultural.

159 “Obra que organiza uma coleta de dados, O Livro dos Espíritos não foi, como se afirmou, ditado pelos Espíritos

- pois Kardec nunca foi médium – mas foi elaborado em colaboração com eles; dois especialmente o ajudaram: Z, e sobretudo, o Espírito da Verdade. É o resultado de uma enquete sobre o Além, ou mais exatamente sobre o Além francês, em 1855”. (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44).

160 Para o espírito comunicante os homens estabeleceram um predomínio injusto e cruel que sobre as mulheres,

constituindo-se em “abuso da força sobre a fraqueza”, contrariando a vontade de Deus que dera aos homens a força para protegerem o lado fraco, as mulheres, e não para o escravizarem (KARDEC, 1995 [1857], p. 380).

Para o autor, a legitimação religiosa trabalha por preservar uma realidade socialmente objetivada ao “relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal

e sagrada” (BERGER, 1985, p. 48), como pode-se ler abaixo:

A religião legitima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico. As construções históricas da atividade humana são olhadas de um ponto privilegiado que, na sua própria auto definição, transcende a história e o homem. [...] Provavelmente a mais antiga forma dessa legitimação consista em conceber a ordem institucional como refletindo diretamente ou manifestando a estrutura divina do cosmos, isto é, conceber a relação entre a sociedade e o cosmos como uma relação entre o microcosmo e o macrocosmo. (BERGER, 1985, p. 46)

Assim, o Espiritismo ao supervalorizar alguns caracteres psicobiológicos inatos161, e ao silenciar em relação às “atribuições simbólicas dadas ao sexo” (GEBARA 2010, p. 18) inculcadas durante os processos de socialização e formação das novas gerações, acaba por potencializar culturalmente as diferenças socioculturais entre os sexos. E assim, o Espiritismo naturaliza e diviniza a divisão de papéis sexuais entre homens e mulheres.

Este é um ponto de convergência entre Peter Berger (1985) e Pierre Bourdieu (2012): o processo de naturalização e divinização de determinados aspectos socioculturais – a divisão sexual do trabalho, no caso em questão – é resultado de um processo de “legitimação cognoscitiva” (BERGER, 1985, p. 56) onde há a “transformação da história em natureza, do

arbitrário cultural em natural” (BOURDIEU, 2012, p. 5).

Para Clara Rodrigues Albuquerque Sousa (2013), o texto “Igualdade dos direitos do homem e da mulher” contido em “O Livro dos Espíritos” (KARDEC 1995 [1857], p. 380-381), quanto à igualdade de gênero “vai além, expressando um posicionamento altamente

discriminatório, corroborando a ideia machista de posições pré-definidas para serem ocupadas por cada gênero” (SOUSA, 2013, p. 2).

Da afirmação da autora, se depreende que o Espiritismo ao buscar justificar (legitimar) uma proposta de divisão sexual do trabalho onde as posições ou papéis sexuais estão pré- definidas por Deus, acabe corroborando na naturalização e divinização de uma “ideia

machista”, ou seja, o Espiritismo finda reforçando certo arbitrário cultural, uma lógica

androcêntrica que prioriza a força e a razão (atributos pretensamente masculinos) e, ao mesmo tempo, desvaloriza a sensibilidade e a delicadeza (considerados atributos femininos).

Saffioti afirma que é próprio do senso comum acreditar que “originariamente, o homem

tenha dominado a mulher pela força física”, e ela conclui: “Em sociedades de tecnologia

161 Sobre a força física, Saffioti (1987, p. 12) afirma: “Via de regra, esta é maior nos elementos masculinos do que

rudimentar, ser detentor de grande força física constitui, inegavelmente, uma vantagem.”

(SAFFIOTI, 1987, p. 12).

Os registros de Kardec (1995 [1857], p. 380) parecem se enquadrar nesta crença popular, pois denunciam que as diferenças sociais – assim como a ideologia que consagrava “a

inferioridade moral da mulher” – era “resultado” não só das elaborações e práticas das

instituições sociais, mas também “do abuso da força sobre a fraqueza”162.

Assim, observa o codificador que a desvalorização feminina é resultante do domínio injusto e cruel que o homem impôs sobre a mulher, chegando ao ponto de escravizá-la. Parece Kardec conceber que uma imensa desigualdade separava os sexos; demonstra estar sensível com a condição feminina e incomodado em relação a “homens pouco avançados, do ponto de

vista moral” e bem como com as sociedades que mantém práticas sexistas extremadas de

“subjugação” das mulheres, classificando-as de bárbaras, mas reconhece163que “a força faz o direito” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381).

Ao contrário das sociedades que Kardec criticava, este esperava que o Espiritismo “dando a conhecer essas leis”164, desse sua contribuição para abrir a era da emancipação legal

da mulher e bem como da igualdade e da fraternidade, a qual, conforme ele acreditava, seguiria o progresso da civilização (KARDEC, 1995 [1857], p. 380).

Neste sentido, Jaci Regis (2001, s.p.) questiona o descompasso entre o pioneirismo e inovação de Kardec e o movimento espírita que o sucedeu: “Das duas uma: ou Kardec estava

delirando, pensando num Espiritismo atuante, progressista e revolucionário ou os dirigentes espíritas não têm capacidade, disposição ou cultura para entender o que ele pretendeu para a Doutrina.”165

162 Jaci Régis (19??), sobre a origem da família, afirma ser curioso como se caracterizou, desde muito cedo na

história da humanidade, “a posição do homem e da mulher na formação da família. A divisão do trabalho

determinou posições específicas para cada um, estabelecendo a dependência da mulher em relação ao homem, devido, certamente, aos fatores da força física e do relacionamento sexual” (RÉGIS, 19??, p. 24). Aqui Régis

correlaciona a força diferencial entre os sexos e divisão sexual do trabalho, e também Marco Aurélio Dias da Silva (2000) afirma não ter dúvidas sobre o “importante papel das causa da dominação masculina: a desproporcional

diferença de porte e força física entre os gêneros e o fato de a criança humana [...] incapaz, por vários anos, de sobreviver sem a proteção e os cuidados da mãe [...] Com o início do bipedalismo, passaram as fêmeas da espécie a ter necessidade de alguém que as protegesse e fornecesse alimento suplementar a elas e aos filhos. Surgiu então o homem caçador [provedor] e protetor das mulheres.” (SILVA, 2000, p. 46-47)

163 Como na fábula de Esopo, “O Lobo e o cordeiro”, cuja moral é “contra a força, não há argumentos”.

164 Kardec se refere à cosmovisão espírita sobre a igualdade dos sexos, exposta na unidade de análise 3.2.1: O

“sexo dos anjos”: da teoria metafísica às representações de gênero.

165 Na Argentina, Manoel S. Porteiro, de forma semelhante a Jacis Régis, defendia o “Espiritismo como doutrina

revolucionária, querendo dizer com esta palavra que propõe ao homem [e à mulher] mudanças radicais na maneira de pensar e de atuar [...] Opunha-se a uma interpretação distorcida do Espiritismo, apresentando como uma religião, ou como uma ideologia conservadora, alienante [...]” (AIZPÚRUA, 1999, p. 153).

Para o autor, a proposta kardequiana de emancipação da mulher deveria ser reconhecida, necessariamente, como direito adquirido, permanente e universal, uma vez que o codificador afirmara ser a “emancipação da mulher” um sinal de progresso e civilização (REGIS, 2001, s.p.).

Tenho a forte impressão que no movimento espírita a contradição entre a emancipação feminina e a divisão sexual do trabalho, esta última sempre prevaleceu sobre a primeira. Kardec abrira, sim, a “era da emancipação legal da mulher”, buscando “a igualdade e a

fraternidade”166, excluindo o sacerdócio exclusivamente masculino e desconstruindo ideologias sexistas que ou negavam à mulher uma alma ou era uma alma de segunda classe. Entretanto, continuadores da obra kardequiana, escritores como Léon Denis e Chico Xavier e o movimento espírita em geral, de forma conservadora, se apegaram mais na divisão sexual do trabalho, deixando que a emancipação feminina fosse consequência exclusiva do “progresso

da civilização”.

Kardec (1995 [1857], p. 380) ao buscar a conciliação de duas teorias um tanto antagônicas “a igualdade imanente entre os sexos” e “a desigualdade no exercício de papéis

naturalizados no espaço público e privado” (GONDIM; WEBER, 2011, p. 5) acabou

postulando uma teoria essencialista que referendava a ordem sexista vigente, e o movimento espírita sentindo se pressionado por forças sociais (por parte da política, religião oficial e da acadêmica, em especial a medicina) não ousara no sentido da emancipação feminina tanto quanto o movimento feminista, o qual lhe era contemporâneo, mas muito pelo contrário – como apresento na unidade de análise 3.2.2.3 – quando pode criticou dura e publicamente suas proposições.

Esta contradição ou ambiguidade entre a defesa progressista da “igualdade de direitos” (daí a propositura da emancipação feminina) e a defesa conservadora de papéis sexuais (ou “funções”) naturalizados e sacralizados forjou e ainda fomenta na produção literária e no movimento espírita posturas contraditórias. Sobre tais contradições Luiza Zelesco (2013) critica:

Tá certo, Kardec defende a igualdade de direitos e a emancipação da mulher, combate a violência praticada contra ela, além de incentivar que ambos se ajudem mutuamente - uma ideia de reciprocidade e de igualdade entre os sexos. Mas e essa história de funções? Trabalhos pesados pro homem e leves para a mulher, como assim?? Existem mulheres mais fortes que certos homens... como ficam elas? E essa história de exterior pro homem e interior pra mulher, então? O homem trabalha fora e a mulher fica em casa, é isso? Mas cuidar da casa é um trabalho muito mais pesado que muito serviço de escritório, que muito trabalho burocrático... Como resolver essas contradições? (ZELESCO, 2013, s.p.)

166 Importante lembrar que Kardec vivenciara os efeitos imediatos da Revolução Francesa, em seu pais natal, pode-

Percebe-se que Kardec (1995 [1857], p. 380) não estava atento para a heterogeneidade da espécie humana em termos de biótipos (estrutura orgânica) e nem para a diversidade cultural, a qual, de formas variadas potencializa as diferenças psicobiológicas entre os sexos, com alimentação167, experiências e exercícios168 diferenciados por sexo.

Para Bourdieu (2012, p. 9), até as aparências psicobiológicas sofreram “um longo

trabalho coletivo de socialização do biológico e ideologização do social” cujas consequências,

bem reais, produziu nos corpos e nas mentes os efeitos de uma arbitrária divisão, “verdadeira

construção social naturalizada (os "gêneros" como habitus sexuados)”.

O escritor Rodolfo Calligaris é um exemplo de como o longo trabalho coletivo de “socialização do biológico e ideologização do social” produziu, não só, nos corpos e nas mentes, mas também nas relações sociais e institucionais, interna e externamente ao Espiritismo. Calligaris (2001 [1973], p. 47-48) como muitos/as espíritas, internalizaram “construção social naturalizada” de que a essência masculina é diferenciada da feminina. O autor confirma este posicionamento, ao alegar que as diferenças “não existem apenas no plano

fisiológico, mas também do ponto de vista psicológico”, o que determina uma vocação

profissional sexualmente diferenciada.

Saffioti (1987, p. 12), ao contrário dos clássicos escritores espíritas, conhecedora das armadilhas ideológicas que separa homens e mulheres em naturezas diferenciada, adverte: “há

exceções a esta regra. Variando a força em função da altura, do peso, da estrutura física da pessoa, há mulheres detentoras de maior força física que certos homens”.

Se esta heterogeneidade dinâmica, flutuante e histórica das coletividades humanas dificulta a afirmação de uma natureza humana, que dirá de duas naturezas distintas?

Para Marilena Chaui (2010, p. 223), para se afirmar que a existência de uma natureza (humana) ou que tal atributo (humano) é natural, deve antes passar pelos critérios de necessidade (necessariamente existe, ou seja, não pode deixar de existir e nem pode ser diferente do que é) e universalidade (está presente em todas as sociedades e em todos os

167 Saffioti (1987, p. 68) reclama que num contexto ideológico androcêntrico se “prescreve que os homens devem

comer bastante e, as mulheres, pouco, pois os primeiros devem ser fortes e, as segundas, frágeis [...] induz as mães a alimentarem, seja através do aleitamento ao seio, seja com outros alimentos, mais os bebês homens que os bebês mulheres”.

168 Saffioti (1987, p. 14) afirma ainda que “as maiores probabilidades de se desenvolver a inteligência de uma

pessoa que frequenta muitos ambientes, o que caracteriza a vida de homem, em relação a pessoas encerradas em casa durante grande parte do tempo, especificidade da vida de mulher. [...] Em ficando em casa todo ou quase todo o tempo, a mulher tem menor número de possibilidades de ser estimulada a desenvolver suas potencialidades. E dentre estas encontra-se a inteligência”.

tempos). E conclui: “a ideia de natureza humana como algo universal, intemporal e existente

em si e por si mesma não se sustenta [...] Porque os seres humanos são culturais e históricos”.

Os/as autores/as espíritas sempre acreditaram que esta “igualdade” não seria absoluta ou incondicional, mas seria uma igualdade relativa, pretensamente pré-determinada por uma programação divina de reencarnar alternadamente em ambos os sexos e até atingir a perfeição, ou seja, o sexo biológico, a cada nova encarnação, é que seria determinante das novas características comportamentais dos indivíduos, não se levando em desconsideração os aspectos socioculturais, ou seja, históricos.

Tendo o Espiritismo surgido no auge da Revolução Industrial, onde as máquinas (primeiro a vapor, depois movidas por energia elétrica e motores a combustão) desempenhavam os trabalhos mais pesados, não se poderia, senão ideologicamente, alegar que a relativa incapacidade de levantar pesos atribuída às mulheres e assim legitimar seu isolamento do mundo do trabalho, no recesso do lar.

E há ainda é preciso que se leve em conta a existência de condições temporárias ou permanentes, como doenças ou deficiências que podem tornar os homens mais fracos ou inaptos para certos trabalhos, e que podem bem ser substituídos por mulheres.

E bem como relegar aos homens o permanente exílio no mundo do trabalho, cada vez mais leve, cada vez mais intelectual (burocrático) do que braçal.

A pretensa menor “sensibilidade em relação à delicadeza das funções maternais” atribuída aos homens por Kardec (1995 [1857], p. 380) justificaria tal exílio das funções paternas ou do trabalho doméstico? Ou apenas reforça uma cultura machista que traz privilégios aos homens e prejuízos às mulheres?

Certamente é ideológico e, portanto sociocultural a crença de que o trabalho doméstico é mais leve do que aquele desempenhado pelos homens, em determinadas funções no comércio e na prestação de serviços por exemplo, como Luiza Zelesco (2013, s.p.) denuncia ser o cuidado com casa, um trabalho muito mais pesado que muitos ocupações burocráticas, comumente masculinas.

Para Saffioti (1987, p. 12), “a menor força física da mulher em relação ao homem não

deveria ser motivo de discriminação. Todavia, recorre-se, com frequência, a este tipo de argumento, a fim de se justificarem as discriminações praticadas contra as mulheres”. Daí o

caráter androcêntrico da naturalização dos papéis sexuais proposto pelo Espiritismo, que ao contrário do que previa Kardec (1995 [1857], p. 381): “Todo privilégio a um ou a outro [sexo]

concedido é contrário à justiça”, o movimento espírita parece haver privilegiado os homens na

Marcia Rodrigues (2011), embora ainda mantenha um pensamento dicotômico em relação a finalidades diferenciadas sexualmente, critica o posicionamento dos/as espíritas, pois segundo ela, nem sempre as mulheres são mais suaves, como nem sempre os homens são mais racionais:

podendo um executar a tarefa do outro, sem que se invertam as finalidades da vida de cada qual. [...] Que cada um faça aquilo que melhor sabe fazer, sem problema. Evidentemente isto exige evolução: esquecer os papéis sociais, tão distorcidos nesta civilização, e assumir com o coração que nem sempre o princípio feminino, mais

suave, está exatamente na fêmea... assim como nem sempre a atitude mais ativa e racional será do macho. Neste momento do planeta as coisas se misturam e só

parecem confusas devido à nossa relutância em deixar de parecer e apenas ser.

(RODRIGUES, 2011, s.p.) [Grifos meus.]

A atualização que faz Marcia Rodrigues (2011) em torno da discussão de gênero em “O Livro dos Espíritos”, é fundamental até porque este continua sendo um grande best seller, devido ser a obra fundante do Espiritismo, é largamente presenteado por espíritas a simpatizantes ou estudado sistematicamente nos centros espíritas, embora sua proposta de divisão sexual do trabalho pareça um tanto anacrônica com os valores e as práticas atuais da sociedade.

Está bastante evidente no pensamento espírita uma visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos. Assim, isto coloca o Espiritismo no bojo comum das religiões, que conforme Nunes (2005, p. 363) afirma, “definem 'a natureza humana' como

resultado de uma determinação divina intocável”.

E é “intocável” porque é uma revelação (sagrada) feita por espíritos superiores junto ao codificador e médiuns consagrados/as, e ao final de contas, foi Deus quem criou a humanidade polarizada sexualmente, não há como se opor a isto. Para alguns/mas adeptos/as não há como questionar, então toma-se essa visão antropológica como um dogma169.

São ambos um corpo só, Em doce consagração. Se o homem é a cabeça, A mulher é o coração. [...]

Se a mulher é sentimento, Se o homem é luta e ação, Devem ambos ser unidos No plano da educação.

(CASIMIRO CUNHA [Espírito]; XAVIER, [médium], 1971, p. 132-133)

169 Questionar “nos faz necessariamente heréticos aos olhares mais ortodoxos, também em relação ao Espiritismo

o mesmo ocorre, como duvidar da credibilidade nacional e internacionalmente conferida a Chico Xavier e seu mentor espiritual Emmanuel” (BRADBURY, 2010, p. 21).

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