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AMÉLIE GABRIELLE BOUDET, A MME KARDEC

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?

1.5. AMÉLIE GABRIELLE BOUDET, A MME KARDEC

Kardec nem todo tempo fora conservador, pois também quebrara a tradição machista de se casar com uma mulher mais nova, para subjugá-la65, ao casar-se com uma mulher quase dez anos mais velha, Amélie Gabrielle Boudet (1795-1832).

Esta também pertencia à pequena burguesia. Era filha única de rico proprietário e antigo tabelião, era oriundo de uma família de “renomados intelectuais”.

foi educada como todas as mulheres de sua condição econômica, provavelmente em colégio interno. Nessa época começaram a se proliferar os internatos de moças entre 15 e 18 anos, pertencentes à elite, onde eram ministradas aulas de educação moral e social, a fim de se tornarem raparigas encantadoras e aptas nos salões matrimoniais da burguesia. [...]Era, como se vê, uma mulher da elite, rica e solteirona, integrada na cultura literária dos salões parisienses. [...] Foi, desde cedo, preparada para as chamadas prendas domésticas, como qualquer mulher da burguesia.[...] Amélie fugiu

a essa regra. Mesmo tendo sido educada para ser uma matrona, daquelas grã-finas fúteis e vazias que recheavam os salões de festa de Paris, preferiu seguir outro caminho. (LARA, 2011, p. 4-5)

Gaby, como carinhosamente Kardec a tratava, era professora de 1ª classe e também de Letras e Belas Artes (WANTUIL, 1982, p. 51) e escritora de livros didáticos, tal como Kardec. A pouca biografia a respeito da esposa de Kardec não nos permite fazer grandes especulações. Mas o que teria acontecido com a brilhante carreira de Gabi, depois de casada?

Wantuil afirma que até o casamento (06/02/1832) Amélie Gabrielle escrevera três livros: Contos Primaveris (1825), Noções de Desenho (1826) e O Essencial em Belas Artes (1828). E em relação à sua carreira de magistério após o casamento, “colaborava de alguma

forma na preparação dos cursos gratuitos que haviam organizado na própria residência”

(WANTUIL, 1982, p. 51-53).

Entretanto, tendo em vista a divisão sexual do trabalho vigente na época – e que ainda tem vigência em muitas famílias – quantas mulheres, como Gabi, não encerram suas carreiras para assumir apenas o trabalho doméstico?

Num período de revoluções na França, o trabalho feminino (e o infantil) embora pouco remunerado, era possivelmente a única fonte de renda de muitas famílias. Kardec que passara por ao menos dois períodos de crise financeira, me pergunto se o trabalho remunerado de

65 Dora Incontri (2005, p. 121) sugere que a relação de Kardec “com o tema da mulher no século XIX mereceria

um estudo mais aprofundado, [relação esta que busquei nesta pesquisa] já a partir de sua atitude, pouco convencional, de se casar com uma mulher 9 anos mais velha que ele, intelectualizada escritora e envolvida com a educação”. Em relação ao casamento “pouco convencional” de Kardec esclarece Eugenio Lara (2001, p. 3) que

“Os casamentos eram de preferência endogâmicos, entre donzelas e homens maduros, com uma diferença de

idade razoavelmente grande. A união matrimonial de um casal, onde o homem fosse bem mais novo que a mulher era execrável, não era de bom-tom, um fato repreensível e evitado pela grande maioria.”

escritora e professora de Gaby não teria salvado o orçamento doméstico? Sem a necessidade de recorrer a empréstimos.

Em 1835, o casal sofreu doloroso revés. Aquele estabelecimento de ensino

[propriedade da família] foi obrigado a cerrar suas portas e a entrar em liquidação.

Possuindo, porém, esposa altamente compreensiva, resignada e corajosa, fácil lhe foi sobrepor-se a esses infaustos acontecimentos.(WANTUIL, 1982, p. 52)

Marcel Solto Maior (2014) explica que era outro homem (provedor masculino) que salvava o orçamento da família, o sogro:

Durante todo o tempo, Amélie esteve ao lado do marido e, com o suporte do pai, tabelião e próspero proprietário de terras, ajudou Rivail [Kardec] a complementar a renda mensal obtida com a venda dos livros pedagógicos – cada vez mais escassa no novo regime – e com os bicos como contador. (MAIOR, 2014, p. 66-67)

Mesmo sem filhos66, o casal desenvolve seus papéis sexuais bem distintos - tal como na

divisão sexual do trabalho que seria consagrada anos mais tarde em “O Livro dos Espíritos”: “que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão” (Kardec, 1995, p. 381).

Zêus Wantuil afirma que na hierarquia de família, Kardec era o chefe, o principal e Amélie era a “secretária”, cuja função é secundária, contribuição oculta realizada na “vida

privada”:

Tornou-se ela verdadeira secretária do esposo, secundando-o, nos novos e bem mais árduos trabalhos que agora lhes tomavam todo o tempo, estimulando-o, incentivando-o no cumprimento de sua missão.

Sem dúvida, os espíritas muito devemos a Amélie Boudet e estamos de acordo com o que acertadamente escreveu Samuel Smiles: os supremos atos da mulher geralmente permanecem ignorados, não saem à luz da admiração do mundo, porque são feitos na vida privada, longe dos olhos do público, pelo único amor ao bem. (WANTUIL,

1982, p. 55) [Grifos meus.]

Com o falecimento de Kardec, sua esposa, Amélie Gabrielle Boudet foi quem assumiu as rédeas do movimento espírita francês (MESSIAS e VILELA, 2011).

A fibra com que essa valorosa mulher enfrentou o que se convencionou chamar de Processo dos Espíritas é um grandioso exemplo de tenacidade, coragem e determinação na defesa dos princípios espíritas que professava, da memória de seu marido e do próprio Espiritismo. O zelo e carinho com que cuidou da herança doutrinária de Allan Kardec será sempre algo notável para quem procurar conhecer a sua biografia. (LARA, 2001, p. 15)

Para se ter uma ideia da personalidade de Mme. Allan Kardec, aos 80 anos, transcrevo o protesto por escrito – o qual foi incluído nos autos do Processo dos Espíritas – que fez ao

66 Lara afirma (2001, p. 16) que na virada do século 19 e o início do século 20, “Os casamentos deixam de ser

fundamentalmente voltados para a procriação, como foi o exemplo do casal Rivail e da escritora francesa e feminista George Sand e Chopin. Sand foi contemporânea de Kardec, se correspondeu com ele e tornou-se uma entusiasta do Espiritismo [...]”.

truculento Juiz Millet devido à violência recebida (assédio moral) e ao escárnio em relação ao trabalho doutrinário do marido:

“Declaro que o Senhor Presidente da Sétima Câmara Correcional não me deixou livre para bem desenvolver o meu pensamento, pois, em meu interrogatório introduziu reflexões estranhas ao debate e desejou ridicularizar o Senhor Rivail, conhecido como Allan Kardec, fazendo dele um simples compilador e negando seu título de escritor. Protesto energicamente contra essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente, porque é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo quando têm cabelos brancos. Não se deveria interromper-me e mandar-me sentar, após se terem divertido com o que considero inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo para o meu companheiro de provações, para o esposo estimado e honrado por homens do mais alto valor.” (LARA, 2001, p. 13)

Entretanto a performance da esposa e continuadora de Kardec não se pode configurar como uma mudança de paradigma, pois sua a ascensão no Espiritismo, foi temporária67 e circunstancial (emergencial?), como nos informa Fernandes que:

Depois de sua morte, instala-se um grande problema no meio espírita. Kardec era o pilar do espiritismo. Seu falecimento [...] foi determinante para os fenômenos que se seguiram. Sua mulher, Amélie Gabrielle Boudet, passou a ser a grande referência do espiritismo, mas a administração da Sociedade passou para as mãos de Pierre- Gaëtan Leymarie, socialista e um dos acompanhantes de Kardec nos estudos de espiritismo desde os primeiros tempos. (FERNANDES, 2008, p. 66)

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