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O LEITORADO ESPÍRITA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?

2.2. O LEITORADO ESPÍRITA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO

A família espírita se distancia de qualquer gênero de autoritarismo e opressão. O machismo fica abolido, porque sabemos que, como espíritos encarnados, independentemente de sexo, devemos evoluir em dois sentidos: “Espíritas, amai-vos, eis o primeiro mandamento, e instruí-vos, eis o segundo”. O Espírito da Verdade não disse: “Mulheres, amai, e homens, instruí-vos”, como querem certos retrógrados que o homem seja o cérebro e a mulher o coração. Homens e mulheres devem ser coparticipantes no mundo e no lar. (INCONTRI, 1986, p. 14)

O Espiritismo ao se auto definir como doutrina tríplice: filosófica, científica e religiosa (CAVALCANTI, 2008) sem desconstruir ou debater suficientemente110 as representações de gênero da sociedade onde estava sendo gestado, fez continuar segregando as mulheres a funções e espaços de menor prestígio social, no movimento.

Estes três aspectos da Doutrina Espírita, a Filosofia e a Ciência, no campo secular e a Religião em sua alta hierarquia, até bem pouco tempo atrás111, foram campos altamente intelectualizados e elitizados, e portanto, foram espaços, predominantemente, masculinos, espaços determinados por certa posse de capital simbólico acumulado.

Se na época de Kardec eram poucas as mulheres pesquisadoras, livres dos afazeres domésticos e liberadas para a pesquisa, hoje, com as conquistas femininas em vários campos sociais, principalmente em relação à democratização do ensino no Brasil, muito deste quadro mudou. Mas por que uma maior escolarização feminina não correspondeu a uma maior

110 E no momento histórico em que surge o Espiritismo, o contingente de intelectuais e pesquisadores era quase

exclusivamente masculino. Embora Kardec (2004 [1866], p. 14) tenha criticado isto: “Não faz ainda muito tempo

a questão foi agitada para saber se o grau de bacharel podia ser conferido a uma mulher”, parece me que a

repercussão deste e de alguns artigos semelhantes, na Revista Espírita, não foram suficientes para desconstruir as representações de gênero contidas em “O Livro dos Espíritos” ou aquelas vigentes sociedade em geral.

111 Embora já não haja interdição, certa sequela persiste no imaginário popular de que estes espaços sejam

participação das mulheres nos cargos de liderança nas casas espíritas? (BRADBURY, 2013-b, p. 1150)

Para Gleide Silva (2006, p. 159) um dado talvez mais significativo – relacionado ao que denominei de “afinidade eletiva” entre o Espiritismo e a classe média – é a importância do domínio, por parte de seus/suas adeptos/as, de certo capital simbólico, o qual é constituído por um conjunto de performances de estudo e leitura, e pelo conhecimento da produção literária espírita, em especial a codificação kardequiana, para a divisão (sexual) do trabalho nas casas espíritas:

por tudo o quanto foi dito e caracterizado tanto para a religião quanto para as camadas médias, o do nível de leitura e conhecimento das obras basilares da religião, isto é, o pentateuco kardequiano, vemos que este parece ser mais importante para o desempenho dos papéis deste subgrupo, isto não por se apresentar enquanto um dado meramente mensurável e, portanto, traduzível em valores quantitativos, mas por, indubitavelmente, refletir-se no cotidiano dessas pessoas na instituição, que demonstram um domínio muito grande sobre os conteúdos cosmológicos e posturas seguras no centro, sendo mesmo procurados por outros para aconselhamento e orientações religiosas.(SILVA, 2006, p. 159)

A literatura espírita em geral, não só a doutrinária112 – foco desta pesquisa – está repleta de representações de gênero, masculinas e femininas, bem definidas, isto em especial nos romances mediúnicos, cujo caráter marcante é de “edificação moral” (LEWGOY, 2004) e “exemplaridade” (STOLL, 2003).

Predomina, entre os kardecistas, um leitorado feminino de camadas médias urbanas instruídas, muitas das quais com uma origem nominalmente católica, as quais combinam os traços de uma moralidade católica com o respeito ao racionalismo científico. Este público [FEMININO] encontra nos romances psicografados uma espécie de gênero-síntese das pretensões de autocultivo e edificação moral, em narrativas mediadas pela explícita presença da doutrina espírita coroando a metadiscursivamente a conclusão dos textos (LEWGOY, 2004, p. 56). [Grifos meus.]

[os] romances atribuídos a "Emmanuel", [...] Além de introduzirem os temas

doutrinários básicos do Espiritismo por meio de novos recursos literários, seus livros

sugerem ao leitor modelos de conduta exemplar, [...] Nesse sentido, a literatura

mediúnica psicografada por Chico Xavier [...] introduz novas estratégias textuais e

configura modelos exemplares de conduta [...]. (STOLL, 2003, p. 104) [Grifos

meus.]

O cruzamento dos dados que as pesquisas de campo (LEWGOY, 2000; 2004; STOLL, 2003; CAVALCANTI, 2008) com os dados do Censo IBGE 2000 e 2010 dá uma pista de como também a literatura espírita pode estar sendo consumida diferentemente entre os sexos.

Se quase 60% dos espíritas são mulheres, conforme o Censo (IBGE, 2000; 2010), e se

112 Por outra, a própria literatura espírita, tão rica em títulos e tiragens, de forma mais sutil, está fortemente marcada

por sexismos, desde a literatura infantil, com textos e imagens estereotipadas de meninos e de meninas; e de ocupações diferenciados por sexo que hoje não mais condizem com a realidade social dos centros urbanos, onde o Espiritismo tem maior adesão (BRADBURY, 2013-b, p. 1151).

como afirmam Stoll (2003, p. 89): “o romance constitui o gênero de maior apelo popular”113, e Lewgoy (2000, p. 21): “a maioria das pessoas que entra na livraria [em Porto Alegre-RS] é

de mulheres em busca dos livros [romances] de Zíbia Gasparetto e de Patrícia (espírito), especialmente por causa da linguagem, ‘mais simples e acessível’”, pode-se inferir que boa

parte do leitorado que consome romances seja constituído de mulheres.

Sendo que comparativamente o valor dado à leitura de livros doutrinários é muito maior em detrimento daquele valor conferido à leitura de romances espíritas. No computo geral, as mulheres que evitam a leitura das obras básicas de Kardec – com exceção de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, disparadamente a obra mais vendida do pentateuco kardequiano – ou os livros do espírito André Luiz, psicografados por Chico Xavier, “por considerá-lo complicado

e chato” 114 (LEWGOY, 2000, p. 21), podem ter sua ascensão aos cargos mais qualificados, no quadro de trabalhadores, prejudicada, principalmente quando seus concorrentes masculinos se dedicam mais à leitura, justamente, das obras doutrinárias.

Esta literatura doutrinária provavelmente seja mais consumida por homens espíritas115,

de forma espontânea e não porque tal obra é um livro base de determinado grupo de estudo sistematizado116, pois como todo alunado deve acompanhar o estudo pela mesma obra (livro ou

apostila), neste caso não há diferença de gênero.

Na pesquisa de campo de Maria Laura Cavalcanti (2008) percebe-se igualmente a dicotomia entre textos mais técnicos e filosóficos (doutrinários) e outros, mais de moral cristã (mensagens, poesias, crônicas e romances):

113 Nesse sentido, as observações no Diário de campo de Lewgoy (2000, p. 21) chamam a atenção para o romance

mediúnico “Violetas na Janela, [ditado por Patrícia (espírito)] best-seller de mais de meio milhão de exemplares

vendidos, está na estante da editora Petit, diferenciada das outras pelo modo de apresentação dos livros”. Trata-

se de uma narrativa curta e bem coloquial – diferente do geral das obras espíritas que usam um português arcaico e que exigem o uso constante do dicionário – da vida após a morte de uma adolescente, talvez sejam estes os motivos do grande sucesso de vendagem, principalmente pelo fato de ter poucas páginas e, portanto, ser mais barato que os volumosos romances de Chico Xavier ou de Zíbia Gasparetto.

114 Certamente não é toda a série de livros de André Luís (espírito) que apresenta rejeição espontânea do/a leitor/a,

pois o romance “Nosso Lar”, o primeiro da série, lançado em 1944, 50 anos depois teve uma edição comemorativa ao completar um milhão de exemplares. E tamanha é a aceitação deste livro que o romance teve, em 2010, sua versão cinematográfica, um feito ainda inédito, pois nenhuma obra espírita tinha ainda conseguido tal feito. E em 2012, um outro romance da série, “E a Vida Continua...”, também ganhou sua versão cinematográfica, demonstrando que a rejeição é só relativa aos livros doutrinário de André Luís.

115 Digo provavelmente, pois me faltam dados e referências científicas para afirmar categoricamente tal fenômeno,

entretanto parece-me uma hipótese bastante plausível uma vez que os homens, além de serem associados pelas representações de gênero à liderança e à razão, estes dominam numericamente os setores mais técnicos dos centros espíritas, e assim tem mais necessidade de se inteirar de forma mais profunda nas questões doutrinárias de modo a lhes respaldar a práxis espírita, e o fazem pela literatura doutrinária e não pelo romance.

116 Interessante pesquisa campo e/ou documental, em perspectiva de gênero, seria analisar as listas de matrícula e

de presença dos diferentes cursos sistematizados oferecidos nos centros espíritas, e verificar se existem diferenças de gênero na escolha dos cursos. O resultado desta pesquisa poderia favorecer a compreensão da divisão sexual do trabalho no Espiritismo, uma vez que estes cursos especializados formam diferentes tipos de trabalhadores: médiuns, divulgadores/palestrantes, passistas, etc.

Algumas pessoas individualmente podem definir-se como "mais da parte evangélica" ou "mais da parte filosófica". Segundo a avaliação do presidente do ICEB, reunindo

dez espíritas, encontram-se dois que preferem a parte filosófica e oito que dizem: "Ah! Eu prefiro o Evangelho!"

Não entendo nada do que fulano fala, que nem o sicrano que às vezes fala para um grupo muito pequeno de pessoas, a gente às vezes está cansada, procurando uma consolação e vem ouvir falar de espermatozoides, ou ainda falou, falou e não falou em Jesus Cristo. (CAVALCANTI, 2008, p. 20)

Se a maioria dos espíritas é composta de mulheres, arrisco uma hipótese de que na afirmação do presidente do ICEB117 (citado acima), os dois espíritas que preferem a parte filosófica sejam homens e dos oito que dizem: “Ah! Eu prefiro o Evangelho!”, a maioria seja de mulheres. Esta hipótese só poderá ser confirmada através de uma específica e ampla pesquisa de campo. Pois neste sentido, também, Lewgoy (2000, p. 77) afirma não ter “elementos

conclusivos para recusar ou confirmar” as teses de Christian Gate de que a formação de um

público feminino estava marcada por “formas empáticas e identificatórias da leitura feminina

[romance burguês], em oposição às predileções tipicamente masculinas”:

Se aplicadas ao nosso universo de pesquisa, suas hipóteses deveriam conduzir a um

modelo genericamente "masculino" de leitura espírita, guiado pela preferência a

obras de cunho doutrinário - ou por uma leitura mais abstrata de toda a sorte de obras - e um outro feminino, com predileção pela vertente folhetinesca e romântica das obras psicografadas - ou por uma preocupação interiorizante na leitura.

(LEWGOY, 2000, p. 77) [Grifos meus.]

Em minha experiência de quase quarenta anos de Espiritismo, percebi que há dois caminhos para se adquirir os conhecimentos doutrinários; a literatura doutrinária e o romance. As representações de gênero espíritas me induzem a crer que uma pretensa racionalidade masculina conduza os neófitos do sexo masculino a escolher o primeiro caminho, enquanto que uma pretensa sensibilidade feminina conduza as mulheres espíritas escolherem o caminho do romance.

Isto aconteceu comigo, ao solicitar uma leitura para embasamento teórico inicial e assim poder melhor participar de um grupo de estudos e prática mediúnica, algumas jovens senhoras recomendaram um duplo caminho: ler “O Livro dos Espíritos”, que segundo elas, era de difícil compreensão, ou eu poderia começar os estudos pela obra do espírito de André Luís, tal como elas fizeram. Foi este último que tomei, só anos mais tarde tomei coragem de enfrentar o mal afamado livro de Kardec, o qual depois de anos de estudos e práticas espíritas já não me pareceu de difícil compreensão.

É preciso que se faça, aqui, uma ressalva, as observações de campo citadas aqui são muito pontuais e, portanto, como Lewgoy (2000, p. 77) afirma, em relação à sua pesquisa, foi

117 Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB) é uma instituição que se define como cultural, e funciona no

uma “restrita experiência de campo”. Tais observações favorecem o levantamento de hipóteses, mas não permitem generalizações. Além do mais, não foco destas observações não era fazer análises de gênero do movimento espírita.

Entretanto, o autor explica que a presença majoritária de mulheres na religião espírita pode ser em parte explicada pelo fato de que tudo o que é valorizado no Espiritismo “pode ser

assimilado à dominância genérica de valores socialmente adscritos como ‘femininos’” em

contraposição àqueles entendidos como masculinos: a “frieza das relações na esfera pública,

dominava pela competição e pela busca de poder” (LEWGOY, 2000, p. 77).

Retomando os “modelos de conduta exemplar” feminina e certa complacência em relação ao comportamento masculino contidos nos romances espíritas (STOLL, 2003), pode-se concluir que explícita e/ou subliminarmente esteja condicionando as relações de gênero desiguais no interior das instituições e das residências (famílias) dos/as espíritas.

Para Edmund Leite (apud STOLL, 2003) tal como retratado no romance inglês do século XVIII – e também verdadeiro em relação aos romances espíritas – as representações de gênero reforçam e repassam a seus/suas leitores/as a ideia de “hierarquia de gênero”:

...lá pelo século XVIII as mulheres tornaram-se mais morais que os homens; assim

sua sexualidade era considerada mais fraca. [...] Se a noção de moralidade superior

feminina era uma ficção ou um fato, a hierarquia de gênero do século XVIII veio a ser, creio, uma libertação dos homens quanto à carga de demanda de constância

moral e a expectativa que a acompanha de que pessoas boas viverão a vida inteira

sem defeitos morais significativos. [...] A cultura "oficial" do fim do século XVIII e começo do XIX desposou essa ideia da mulher pura. [...] Os homens [...] podiam ser

menos virtuosos. [...] O valor exemplar da masculinidade não era procurado na

perfeição moral, mas na vontade de comando. (Leite apud STOLL, 2003, p. 103) [Grifos meus.]

Os romances espíritas, mediúnicos ou não (novelas de ficção)118 não só exploram os papéis sexuais distintos, tal como as representações de gênero denunciadas por Edmund Leite, mas igualmente as reforçam, quer com a vida exemplar de seus/ suas personagens e consequente sucesso daquela encarnação, quer com a vida desregrada destes e consequente reencarnações punitivas para reparar os erros do passado. Neste sentido Stoll (2003) afirma:

A desventura dessas personagens em questão não provém, contudo, exclusiva ou principalmente dessa transgressão. Embora retratadas como moralmente irrepreensíveis, essas mulheres, vítimas de intrigas, acabam sendo acusadas de adultério. Os sofrimentos decorrentes (a separação do casal, o ostracismo social e, em alguns casos, a condenação à morte) não se destinam, porém, a promover o aprimoramento moral da própria personagem, caracterizada, desde o início, como "espiritualmente elevada". Sua resignação diante das perdas afetivas, materiais, de status social etc., tem caráter exemplar; sua postura diante destes fatos é

118 Novelas de ficção com temáticas espíritas, como a comunicação com os desencarnados (mediunidade), a

reencarnação e a vida no mundo espiritual, escritas por autores consagrados como J. Herculano Pires, embora não sejam comuns na literatura espírita, constituem um gênero literário frequente das telenovelas da Rede Globo de televisão.

considerada instrumento de ensino, de "edificação", visto que reitera, a exemplo da

vida de Cristo, a ideia de que sua trajetória na Terra não tem a função de expiação,

mas de exemplaridade. (STOLL, 2003, p. 102) [Grifos meus.]

É preciso lembrar que os romances espíritas trazem histórias de vida bastante recorrentes na sociedade brasileira, mesmo sendo alguns romances históricos (novelas de época) é possível ao/ à leitor/a utilizar tais parâmetros de comportamento em sua vida, não importando o anacronismo ou o contexto socioeconômico e cultural do enredo do romance. Para Lewgoy:

Esta narrativa põe em circulação o tradicional estoque simbólico do feminino nas narrativas populares no qual as mulheres tendem a ser representadas como "ingênuas" e "manipuláveis", dicotomizadas entre a casta mulher doméstica e a ambivalente mulher pública, a prostituta, fora dos controles religiosos e familiares e onde a iniciativa da ação na trama é prerrogativa masculina. (LEWGOY, 2000, p.

293).

A citação, abaixo, de Eliane Moura da Silva (1997) corrobora com o exposto por Stoll (2003) e por Lewgoy (2000) ao afirmar que os romances, como literatura edificante, objetivam o esclarecimento espiritual, através da vida exemplar de personagens virtuosas, porém sofredoras — a quais segundo Stoll (2003, p. 103), “representam o modelo ideal da

espiritualidade espírita”:

Estes romances, já clássicos da literatura espírita, apresentam modelos de romance históricos como literatura edificante: histórias com começo, meio e fim, personagens simples sem grandes complexidades psicológicas ou sociais, uma trama organizada que tem como objetivo final o esclarecimento espiritual, uma positividade de ensinamentos que procuram levar os leitores à compreensão dos mecanismos da existência e dos objetivos da vida encarnada, da trajetória humana sobre a Terra, em constante provações e sofrimentos, através dos quais se alcança o aprimoramento espiritual. (SILVA, 1997, p. 7) [Grifos meus.]

Logo, se depreende que nas representações de gênero dominantes no Espiritismo, as mulheres quase são invariavelmente os parâmetros de moralidade – pois devem cumprir sua função de exemplaridade na família, no recesso do lar – vidas de renúncia ao desenvolvimento individual para dar oportunidade de desenvolvimento aos filhos – e não às filhas? – e ao esposos no rico palco de experiências evolutivas no mercado de trabalho e na carreira acadêmica.

Importante destacar que para Stoll (2003) nos textos romanceados de autoria espiritual de Emmanuel, mais do que nos textos doutrinários de Kardec, estão explícitos os modelos exemplares de conduta conforme uma dupla hierarquia, espiritual e de gênero:

Essa forma de concepção da exemplaridade, que sustenta a existência de duas possibilidades — a do ser e do vir-a-ser —, consignada pelo entrecruzamento da ideia da existência de uma hierarquia espiritual e de uma hierarquia de gêneros, não se encontra formulada nesses termos no corpo da doutrina espírita tal como elaborada por Allan Kardec. [...] Nesse sentido, a literatura mediúnica psicografada por Chico Xavier é inovadora, pois introduz novas estratégias textuais e configura modelos

exemplares de conduta que não se encontram explicitados na literatura que deu

origem à doutrina. (STOLL, 2003, p. 104) [Grifos meus.]

É preciso relativizar esta afirmativa de Stoll, pois no levantamento bibliográfico que fiz, os textos fora do pentateuco kardequiano (obras básicas), contidos na “Revista Espírita” e as referências que Kardec faz na obra “Viagem Espírita em 1862”, sugerem, sim, aos leitores modelos de conduta exemplar de forma bastante explícita e reforçam uma tradicional divisão sexual do trabalho, característica de uma hierarquia de gênero, tal como analisarei no próximo capítulo.

Igualmente é importante frisar que o autor espiritual Emmanuel, além dos romances, ditou uma grande quantidade de mensagens avulsas – publicadas em jornais e depois editadas em coletâneas, tal como a antologia mediúnica: “Mãe” (XAVIER, F. C. [médium]; EMMANUEL [Espírito] 1971-a; b) – que melhor explicita o pensamento de Emmanuel a respeito da “hierarquia de gênero” e padrões de comportamento ideais para cada sexo.

Neste tópico, busquei identificar as características do leitorado espírita em perspectiva de gênero. A seguir retomo a questão da escolarização diferenciada por gênero, e juntamente com a questão de um leitorado espírita sexualmente distinto, são possíveis hipóteses para se entender a assimetria sexual das funções na hierarquia espírita.

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