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A maternidade de Eva e as dores de parto

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CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO

3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO

3.2.1. O “S EXO DOS A NJOS ”: DA T EORIA M ETAFÍSICA ÀS R EPRESENTAÇÕES DE

3.2.2.6. A maternidade de Eva e as dores de parto

Tua esposa mantém-se em nível inferior à tua expectativa? Lembra-te de que ela é mãe de teus filhinhos e serva de tuas necessidades. Teu esposo é ignorante e cruel? Não olvides que ele é o companheiro que Deus te concedeu... (XAVIER,

[médium]; EMMANUEL [Espírito], 1971-b, p. 190)

Em pesquisa realizada com o público pentecostal, Maria das Dores Campos Machado (2005) concluiu que diferentemente dos homens, estes mais centrados nos próprios

177 Vale dos Suicidas é uma “região do Mundo Invisível cujo desolador panorama era composto por vales

profundos, a que as sombras presidiam: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das quais uivavam, quais maltas de demônios enfurecidos, Espíritos que foram homens, dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizavam”. (PEREIRA, 1982, p. 106). p. 6)

problemas178, as mulheres buscam uma instituição religiosa para a solução de problemas familiares, materiais e espirituais. Ou seja, são elas as “guardiãs das almas de todos que

integram a família” (MACHADO, 2005, p. 389).

Com base no Censo IBGE 2000, Regina Novaes (2003, p. 11-12.) afirma que as mulheres são mais religiosas do que os homens, mesmo aquelas que são provedoras de recursos para a família, paralelamente, conseguem ser bem ativas dentro da igreja: “É a mulher que

socorre quando alguém está doente. Ela é uma medidora ativa que provê recursos simbólicos, afetivos e religiosos para a família que tem problema”179.

Com base no que apresentei até agora, a principal representação da mulher na Doutrina Espírita é a de “mãe”. Neste sentido, na literatura espírita, exacerbam-se as virtudes maternais até o limite de um amor incondicional, que “Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (I Coríntios 13:7).

Isto corrobora os dados e informações que as autoras supracitadas trazem sobre o perfil e as motivações das mulheres pela busca religiosa. As razões que conduzem a maioria das mulheres a acessar e permanecer nas casas espíritas possivelmente sejam essas as mesmas.

A pesquisa de Flamarion Laba da Costa (2001) confirma esta função social do Espiritismo ligada ao atendimento do sofrimento humano. O sofrimento físico e espiritual sempre foi a porta de entrada180 – uma via de acesso sem restrições de classe social, de etnia, de gênero ou grau de instrução – para as mulheres-mães acessarem o Espiritismo.

Entre outros bens e serviços religiosos e caritativos, as mães espíritas ou simpatizantes buscam tratamento espiritual – como a desobsessão – e uma medicina alternativa para seus entes queridos: passes; cromoterapia; preces e irradiações; água fluidificada; diagnósticos e prescrições de remédios homeopáticos e fitoterápicos proferidos por médiuns receitistas ou por médicos espíritas voluntários; cirurgias espirituais.

Conforme Clifford Geertz (2008, p. 75-76) expõe, em sua “Interpretação das Culturas”, o desafio da experiência humana é o problema do sofrimento, o qual constitui, talvez, os dois

loci principais: a doença e o luto. Estes dois principais condicionantes do sofrimento sempre

178 Segundo a autora (MACHADO, 2005, p. 389) a conversão masculina ao pentecostalismo está mais ligada a

situações que ameacem sua “identidade masculina”, como desemprego, dificuldades financeiras e problemas pessoais de saúde.

179 Para Regina Novaes (2003, p. 11) “quando as mulheres se convertem, elas ficam mais livres e saem mais de

casa. [...] após a conversão do casal as relações de gênero ficam menos opressivas [...] a religião passa a funcionar como um lugar de agregação social [...] frequentar uma igreja a pessoa passa a fazer parte de uma rede de apoio”.

180 É preciso lembrar que o Espiritismo, como apresentei no primeiro capítulo, também nasce das práticas curativas

ligadas ao mesmerismo, à homeopatia e à prática receitista desenvolvida pelas médiuns sonâmbulas e seus magnetizadores.

foram pauta do Espiritismo brasileiro, e uma das fortes motivações para adesão ao Espiritismo ainda hoje, conforme aparece na Tabela 1 da pesquisa de Rodrigues (2012, p. 287), onde participaram 770 homens (33,95%) e 1498 mulheres (66,05%), onde destaco as motivações ligadas ao sofrimento:

Tabela 1 - Motivação para se tornar espírita.

MOTIVAÇÃO PARA SE TORNAR ESPÍRITA Q % PARA ALCANÇAR CERTA PAZ INTERIOR 484 21,22% ESTAVA SOFRENDO E PROCURAVA UMA CONSOLAÇÃO 447 19,60% TINHA MEDIUNIDADE E PRECISAVA DESENVOLVER 352 15,43% ESTAVA DOENTE E ME CUREI NO ESPIRITISMO 86 3,77% COSTUMAVA TOMAR PASSE NO CENTRO ESPÍRITA 75 3,29% O ESPIRITISMO CUROU UMA PESSOA DA FAMÍLIA 40 1,75%

Fonte: RODRIGUES (2012)

E como Alice Beatriz da Silva Gordo Lang (2008) retrata sobre o imaginário espírita, muitos/as espíritas

Dizem que 90% das pessoas chegam ao espiritismo pela dor e 10% pelo amor. O caminho pela dor é configurado, por exemplo, pela perda de uma pessoa querida, por uma doença grave ou incurável. O caminho do amor passa pelo desejo de melhor conhecer o espiritismo e os caminhos por ele abertos.(LANG, 2008, p. 178)

Este último caminho, o caminho do amor, parece ser aquele trilhado por homens. Este foi o meu caso e da maioria das adesões masculinas que acompanhei ao longo de minha experiência religiosa. Homens de classe média, com nível superior de escolaridade que buscavam uma explicação mais convincente para as contradições da vida, que suas religiões de origem não lhes davam.

Neste sentido Costa (2001, p. 27) partindo do princípio weberiano, afirma ser a partir da explicação e da intermediação com o plano espiritual181 que se pode identificar a função consoladora e reconfortadora das religiões em geral, e bem como do Espiritismo.

O Espiritismo afirma ser resultado do ensino do consolador prometido por Jesus, no evangelho de João (JO 14:15 a 17 e 26). Segundo Kardec (2010 [1864], p. 132 ss.), este é o Espírito de Verdade, o consolador que o Pai enviou, há seu tempo, para relembrar todas as coisas ditas e para ensinar as coisas não ditas pelo Cristo, porque o mundo ainda não estava maduro o suficiente para compreender todo seu ensino.

Assim, o Espiritismo proporciona o que Jesus disse sobre o consolador prometido: conhecimento dos fatos, que faz com que o homem saiba de onde veio,

181 Segundo Lewgoy (2000, p. 172), a intervenção de entidades espirituais intercessoras a pedir pelos sofredores –

a exemplo da mãe desencarnada de Chico Xavier – evidencia o sincretismo de duas posições do Espiritismo no Brasil com Catolicismo brasileiro, com seus anjos e santos intercessores.

para onde vai e por que está na Terra; retorno aos verdadeiros princípios da lei de Deus, e consolação pela fé e pela esperança. (KARDEC, 2010 [1864], p. 133)

Assim, conforme Geertz (2008, p. 76), citando Malinowski, as religiões ajudam as pessoas a suportarem situações de pressão emocional abrindo fugas a tais situações e tais impasses que nenhum outro caminho empírico abriria. E, aqui, pode-se fazer uma relação com a concepção espírita que na “parte doutrinária, encontram-se as explicações sobre os

sofrimentos que, na visão espírita, são as provas pelas quais as pessoas passam, e que foram escolhidas por cada um antes de reencarnar para mais uma estada no planeta Terra, realizando assim seu papel de Consolador” (COSTA, 2001, p. 166).

Não digo que o Espiritismo, como também as religiões em geral, tenham a solução de como se evitar o sofrimento ou de extingui-lo. Não, o que as religiões fazem é ensinar como bem sofrer, elas tornam a agonia alheia algo tolerável, suportável, numa palavra, “sofrível” (GEERTZ, 2008, p. 76).

Não é diferente no Espiritismo, onde as tantas “mães de Chico”vem buscar consolo para o sofrimento pela perda de um/a filho/o através de uma mensagem psicografada e de alguma explicação para aquela perda182. Assim a práxis espírita tende a tornar o sofrimento mais racional e aceitável, ao revelar os mistérios do plano espiritual, daí passa-se a conviver com a perda e a dor de forma menos conflituosa, pois, como diz Costa (2001, p. 27), a expiação resignada é o caminho traçado pela Doutrina Espírita para a redenção humana, a reforma íntima, o progresso espiritual, o resgate de dívidas de vidas passadas e outras tantas interpretações.

Retomando o quadro apresentado por Alice B. S. G. Lang (2008, p. 178), se o caminho do amor (ao conhecimento) parece ser aquele trilhado mais pelos homens espíritas, o caminho da dor deve ser majoritariamente aquele que leva as mulheres, em especial as mães, a acessarem as instituições espíritas, como aquelas retratadas no documentário: “As mães de Chico”183.

Mas nem só de mensagens mediúnicas se pode acessar o consolo para os revezes de um “mundo de provas e expiações”, qual é o momento que estagia o planeta Terra. Ao lado das recomendações explicitas e diretas da literatura doutrinária – parte do objeto desta pesquisa – também os romances espíritas estão repletos de personagens femininas virtuosas, porém sofredoras que bem representam o modelo ideal da espiritualidade espírita (STOLL, 2003, p.

182 Geertz (2008, p. 76) exemplifica esta busca, creio, predominantemente feminina, ao citar um caso retratado

por Malinowski, um caso que muito bem se encaixa no perfil de mulheres-mães que acessavam o Chico em busca de notícias e consolo de seus “entes perdidos”: Era uma velha de uma família extensa, mas que o mal personificado em Leza, “o Assediado”, “estendera sua mão contra a família. Ele chacinara seu pai e sua mãe enquanto ela era

ainda uma criança e, no decurso dos anos, tudo em torno dela perecia” e inclusive filhos e netos foram-lhe

arrancados.

103), e cumprem sua função consoladora.

Para Sandra STOLL (2003, p. 102) a resignação destas personagens diante do sofrimento tem caráter exemplar para o movimento espírita. Tal postura diante destes fatos é encarada como instrumento de ensino, de “edificação”, ao reiterar a vida exemplar de Cristo, a qual supera a função de expiação para ressaltar a função de exemplaridade.

E também na poesia mediúnica, se reforçam as representações femininas de mulheres que mesmo sofridas devem se resignar em papéis tipicamente femininos, mães, educadoras, esposas e enfermeiras184. Na poesia abaixo temos um exemplo de como na poesia, à semelhança do que ocorre na literatura doutrinária espírita, o caráter sacrificial (somente) do papel feminino, exercido no lar ou em algumas extensões deste (o hospital, a escola, o centro espírita):

Mãe, sê o anjo do lar. Esposa, auxilia sempre.

Companheira, acende o lume da esperança. Irmã, sacrifica-te e ajuda.

Mestra, orienta o caminho.

Enfermeira, compadece-te. (MEIMEI [Espírito]; XAVIER, F. C. [médium], 1971-b, p. 118)

184 Digno de nota é afirmar que embora a grande maioria de escritores/as espíritas recomendem renúncia e

sacrifícios femininos, de forma diferente é o ponto de vista de Divaldo P. Franco ([201?]), que em uma palestra postado no site “You Tube”, assim critica o exagero destas representações de gênero femininas que legitimam o sofrimento das mulheres como única forma de evolução espiritual: “Qual é o Jesus que a doutrina espírita Jesus

nos apresenta. Não é o aquele crucificado das tradições. Este é um sadomasoquista. E que vendo sua dor nós o amamos. Que é um desequilíbrio sadista. O que nos leva a sofrer. Eu tenho que sofrer para encontrar o reino dos céus. Eu não sei onde está escrito isso. Sofrer é acidente de percurso. Só toma topada quem anda. Mas quem olha para o chão não tropeça. A proposta do espiritismo é otimista. Ame e não sofra”.

CONCLUSÃO

A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. (CHAUI,

2010, p. 111.)

Esta pesquisa surgiu de um “estranhamento” que tive após a leitura de alguns textos doutrinários, embora estes aparentemente progressistas, mas em flagrante conflito com a trajetória da mulher espírita ao longo dos últimos 150 anos de história do Espiritismo. O descompasso entre o texto doutrinário e a práxis espírita despertou-me esse desejo de conhecer mais profundamente o assunto.

Que as religiões em geral eram misóginas, eu tinha uma noção, a qual elaborei inclusive a partir da própria literatura espírita e também, do artigo de Cléria Bittar Bueno (2009). Mas o movimento espírita, fruto da dessacralização e desencantamento do mundo pela ciência positivista, não deveria acompanhar pari passu o progresso das ciências (KARDEC, 2003 [1868], p. 40) – inclusive das ciências sociais, rejeitando ideias preconceituosas (no sentido de preconcebidas ou princípios absolutos)? Contraditoriamente, o Espiritismo, no computo geral, acabou tomando de empréstimo as mesmas atitudes misóginas das religiões sempre criticou.

Agora, concluída esta pesquisa bibliográfica, fazendo uma reconstrução sintética, em uma ordenação lógica dos resultados desta, destaco, a seguir, como principais condicionantes que caracterizaram as representações de gênero que figuraram na literatura doutrinária espírita. No primeiro capítulo, onde descrevi a história do movimento espírita, em perspectiva de gênero, sobressaem dois condicionantes dentre uma enorme gama de outros micropoderes (FOUCAULT, 2007) que determinaram as relações e representações de gênero no Espiritismo: o primeiro fator deve-se à plasticidade da doutrina espírita em amoldar-se à sociedade a qual está sendo implantado, com o menor conflito social possível, assim – no tangente às questões de gênero – a Doutrina Espírita mais cedeu às pressões das instituições sociais (especialmente da Igreja, da Medicina e da Educação) do que conseguiu implementar sua proposta de “emancipação legal da mulher”; o segundo fator está relacionado à distância social, segundo os valores eurocêntricos e patriarcais vigentes no entresséculos em questão, que separavam os dois tipos ideais, homens-intelectuais e mulheres-médiuns.

Estes valores e representações androcêntricos que classificavam os sexos com naturezas distintas, supervalorizando os homens pela crença que estes eram dotados de razão, liderança e força para o trabalho extra-doméstico e desvalorizava a natureza feminina, esta entendida como um ser potencialmente enfermiço e que degradava-se moral e mentalmente caso não se casasse e nem se conformasse com a maternidade e os afazeres da vida doméstica.

Por este motivo muitas mulheres militantes da doutrina espírita, médiuns ou potenciais lideranças femininas - como as jornalistas Anália Franco e Amalia Domingo - sofreram violência de gênero ao se colocarem como oposição aos valores e à ordem vigentes na sociedade mais ampla e por não receberem o apoio do movimento espírita, expressamente androcêntrico e antifeminista, sendo que muitas destas foram silenciadas ao serem internadas como loucas (VILELA; MESSIAS, 2011) em manicômio/s público/s (CUNHA, 1989) e também espírita/s (PETERS, 2012).

A situação feminina no princípio do Espiritismo era muito degradante, além da violência física que sofriam as médiuns ao terem seus corpos amarrados a cadeiras e encarcerados em jaulas, sofriam também a constante violência moral e psíquica de terem que provar a sua idoneidade e veracidade dos fenômenos mediúnicos que produziam.

Não foi possível avaliar a resistência e a oposição/aceitação por parte das mulheres espíritas a esta violência e à discriminação de gênero por dois motivos, pela dificuldade em se encontrar textos de autoria feminina ou depoimentos femininos registrados pela lavra masculina e, porque tal avaliação fugiria ao objetivo e ao objeto delimitados nesta pesquisa.

No segundo capítulo, onde procurei descrever a práxis espírita in locu, de modo a buscar explicar o caráter conservador das relações e representações espíritas, compondo um sistema dialético de condicionantes: uma divisão sexual do trabalho das casas espíritas, onde os homens ficam a liderança e a produção doutrinária, e as mulheres ficam com as funções de médium e reprodutoras da memória do grupo junto às novas gerações, esta divisão tende a ser legitimada e legitimar as representações de gênero contidas na literatura espírita.

Busquei analisar também, em perspectiva de gênero, como os “caminhos” dos homens, que os conduzem à liderança, é mais fácil em um modelo de burocrático (LEWGOY, 2000) do que em um modelo carismático (CAVALCANTI, 2008), pois este último, em tese, privilegiaria as mulheres por estarem relacionadas ao comportamento (ethos) e ao espaço (locus) mediúnico, entendidos como mais femininos.

No terceiro capítulo, onde fiz a análise de conteúdo de textos doutrinários de dez importantes determinantes e/ou componentes das representações de gênero no Espiritismo:

1. a cosmovisão espírita que naturaliza e diviniza “o arbitrário” (BOURDIEU, 2012), uma divisão sexual do trabalho baseada na crença em uma dualidade da natureza humana (masculina e feminina), caracterizada por uma pretensa dicotomia biológica entre força física e sensibilidade;

2. esta divisão sexual, um tanto questionada pelos/as próprios/as espíritas atualmente, sustenta uma estruturação social “ideal” (os homens no espaço público, no trabalho e em

questões extra-domésticas; e as mulheres no espaço privado e em atividades correlatas ao trabalho doméstico e aos cuidados com a prole) que sempre se distanciou de uma estrutura familiar “real”, ou seja, desde Kardec (2005 [1862]) e Leon Denis (1987), já se sabia da necessidade de mulheres espíritas das camadas populares trabalharem para garantir a subsistência da família, e hoje, com a democratização do ensino, muitas mulheres espíritas da classes médias (grande lócus do público espírita) mantem certa independência econômica de seus provedores masculinos;

3. a manutenção desta divisão “ideal” precisou combater modelos antagônicos que propunham a possibilidade de papéis sexuais mais igualitários ou a inversão destes, tais quais as reivindicações do feminismo. O Espiritismo, sob influência do Positivismo comtista, centrou na maternidade sua principal representação feminina, idealizando as mulheres como mães e redentoras da nação (humanidade).

4. Esta maternidade foi defendida e proclamada – principalmente em forma de versos, como aqueles que figuram o título desta dissertação – mesmo em casos de contradição com a proposta progressista de divórcio, já presente em 1857, na questão 697, de “O Livro dos Espíritos” (KARDEC 1995 [1857], p. 335), como em textos espíritas que recomendam renúncia e resignação às mulheres-mães no sofrimento frente a companheiros violentos, de forma a resguardar a coesão familiar e a infância, justificando ser tal situação consequência de débitos de vidas anteriores (karma) que devem ser saldados o mais rápido possível...

Os resultados da presente pesquisa parecem confirmar a suspeita de Letícia da Silva Gondim e Thiago Linhares Weber (2011) de que o Espiritismo pode ter incorporado características do Ecletismo e, portanto se compreende como a Doutrina Espírita conseguiu conciliar ideias antagônicas de imenso matiz que vai do idealismo de Platão ao naturalismo de Rosseau, passando pelas ideias progressistas do socialismo utópico e do positivismo comtista, e amalgamando-se com valores conservadores do catolicismo.

Pois se, por um lado, existe a defesa de Kardec (1995 [1857], p. 381) por papéis sexuais naturalizados e uma educação feminina inferior à masculina, por outro lado, igualmente há uma proposta explícita emancipação da mulher, a qual foi referendada por Leon Denis (1988 [1903], p. 79-80), ao alegar que o Espiritismo subtrairia “a mulher ao vértice dos sentidos e ascende à

vida superior”, firmando a igualdade dos sexos, o que asseguraria a ambos sexos igualdade de

direitos nas agremiações de estudo espíritas.

Neste sentido, um espírito anônimo respondendo à pergunta: “Que influência deve ter o

igualmente as mulheres “no banquete da inteligência, abrindo-lhe de par em par todas as

portas da Ciência” (MORIN [Médium], 2004 [1867-b], p. 120).

Desta dicotomia, entre o conservador e o progressista, o resultado que encontrei, na pesquisa histórica dos 150 anos de Espiritismo, foi que poucas mulheres se destacaram no movimento espírita, quer seja como intelectuais, quer como ativistas (LARA, 2001, p. 1). Isto entra em contradição com o que é esperado de uma religião onde não há um sacerdócio exclusivamente masculino, tal como nas outras religiões, pois neste sentido o Espiritismo seria mais liberal (BUENO, 2009; INCONTRI, 2012).

Semelhante a algumas denominações pentecostais, as mulheres espíritas, quase sempre, estão situadas num plano bem subalterno, à sombra do marido (LARA, 2001, p. 1). As mulheres espíritas estão ausentes dos espaços de liderança organizacional (SILVA, 2006) sendo que seu investimento dá-se no campo da prática religiosa, na prática mediúnica, e na transmissão, como “guardiãs da memória”185, na evangelização infantil e nas atividades da juventude espírita.

A hipótese principal desta pesquisa era que as representações sociais de gênero do contexto histórico em que o Espiritismo foi gestado e também daquele contexto em que a Doutrina Espírita encontrou no Brasil, ao ser transladado para cá, teriam sido determinantes na elaboração das representações de gênero espíritas, e que por sua vez estariam produzindo uma assimetria sexual na hierarquia espírita, que se mantém, em parte, até hoje, alimentada pela vasta literatura espírita e por posturas mais conservadoras de seus líderes (SOUSA, 2013).

Pela análise de conteúdo aliada à pesquisa histórica e também à pesquisa bibliográfica, pode-se, em parte, confirmar esta hipótese, pois no embate e disputa pelo campo religioso no Brasil entre intelectuais espíritas e clérigos católicos, o Espiritismo à brasileira (STOLL, 2003) incorporou elementos (concepções e valores) católicos como forma de trampolinagem (ARRIBAS, 2008) e assim poder driblar as perseguições religiosas, políticas e acadêmicas.

Digo que em parte se confirmou a hipótese principal desta pesquisa, pois como o campo de pesquisa sobre gênero no Espiritismo ainda é quase inexistente, contendo só alguns poucos fragmentos de pesquisas etnográficas – como aqueles usados aqui: Lewgoy (2000), Stoll (2003), Silva (2006), Arribas (2008), Cavalcanti (2008) e Rodrigues (2012) – não me permitiram fazer conclusões mais seguras e universais.

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