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A mulher-mãe e o pai-provedor

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CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO

3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO

3.2.1. O “S EXO DOS A NJOS ”: DA T EORIA M ETAFÍSICA ÀS R EPRESENTAÇÕES DE

3.2.2.2. A mulher-mãe e o pai-provedor

Em 1981, Deolindo Amorim (p. 122) perguntava: “Estaria a Doutrina querendo

restringir o campo da ação da mulher ao âmbito exclusivamente doméstico, como se entendia antigamente?” A resposta deste autor espírita é que

Não devemos interpretar o pensamento da Doutrina no sentido terra-a-terra. A expressão cuidar das “coisas internas” não quer dizer que a mulher deva ser exclusivamente dona-de-casa, o que seria um despropósito nos dias presentes, pois os campos de atividade estão igualmente abertos ao homem e à mulher. Todavia, cabe à mulher umas tantas responsabilidades [...] pela sua condição de esposa, filha ou mãe. (AMORIM, 1981, p. 122)

Deolindo Amorim como muitos autores e autoras espíritas deixa de expor as responsabilidades dos homens como pais, esposos e filhos. A dupla jornada de trabalho, quando permitida e explicitada nos textos doutrinários, por vezes, é tão somente para elas.

Divaldo Pereira Franco, numa entrevista sobre as “Atividades Familiares, Espíritas e

Profissionais da Mulher”, respondendo à pergunta: “como conciliar a atividade profissional da mulher com os deveres de esposa, mãe e espírita?”, foge ao essencialismo das tradicionais

representações de gênero e denomina de machistas tais posicionamentos que limitam a esfera de atuação da mulher ao lar e do homem ao papel de provedor:

Estamos habituados a achar que os deveres da família são da mulher e que ela deve estar sempre presente em casa para atender os filhos. Certamente essa é uma imposição machista. Os pais são responsáveis, na mesma condição de igualdade pela educação dos filhos. [...] É necessário que o homem compreenda que, para a preservação da família, não somente a questão financeira é importante. (FRANCO,

1994, p. 39)

Parece ser Divaldo P. Franco, quem foi realmente o pioneiro da emancipação da mulher na literatura espírita – enquanto tantos autores espíritas reproduziam e reforçavam em seus textos a ordem social vigente, em relação às questões de gênero, e apenas protelavam para um futuro indefinido tal emancipação feminina – pois é o primeiro a reconhecer que a antiga divisão sexual do trabalho camuflava relações de opressão da mulher, a qual segundo ele, é “uma imposição

machista”. Assim, é também quem mais se aproxima de uma proposta de “mesma condição de igualdade” entre os sexos.

Divaldo P. Franco não se utiliza dos critérios deterministas: biológico e/ou sagrado, mas propõe outro parâmetro, o “equilíbrio”, ou seja, “Quando a mulher programa uma família com o

seu companheiro ideal, com o seu esposo” (FRANCO, 1994, p. 38), usando da conciliação e o

diálogo, busca uma divisão sexual do trabalho mais personalizada para o casal.

Em seu texto, desaparecem as estereotipias que enquadravam todos, mas deixavam muitos de fora. E que mais faziam limitar homens e mulheres no exercício e no desenvolvimento integral

do ser. Deduz-se, assim de sua proposta, que nem todas as mulheres precisam se restringir às tarefas domésticas – só aquelas que chegarem a este consenso com seus maridos – e, assim como nem todos os homens devem se restringir ao trabalho fora e ausentar-se do lar. Também desaparece o tom exagerado de que só as mulheres são as redentoras da família, de que só elas devem renunciar ao espaço externo. Divaldo P. Franco também destoa da maioria dos/as autores/as espíritas ao responsabilizar igualmente o homem pelo sucesso ou fracasso do lar, assim, já não é só a mulher a culpada.

Então vemos a mulher competindo... a competição é valiosíssima. A mulher nasceu para o lar... Quem foi que disse que a mulher nasceu para o lar? Ela nasceu para a vida. Então ficar em casa lavando roupa, quando tem lavadeiras elétricas? Joga na máquina e vai trabalhar [...] Jesus é o grande impulsionador dessa realidade que é o coração feminino. (FRANCO, [201?])170

Diferente da proposta de Divaldo P. Franco, a ambiguidade e a contradição dominam a literatura espírita, pois se por um lado, condenam todo privilégio (KARDEC, 1995[1857], p. 381) por outro lado, privilegiam distintamente os sexos com papéis diferenciados.

A manutenção de uma divisão sexual do trabalho, onde só é cobrado das mulheres as responsabilidades do lar, que se arrasta até os dias atuais, constitui-se um privilégio do elemento masculino em detrimento do elemento feminino.

Esta concepção está bem definida na expressão: “É preciso que cada um esteja no seu

devido lugar; que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão.” Kardec (1995 [1857], p. 380)

Sobre esta tradicional divisão sexual do trabalho, descreve Bourdieu:

Cabe aos homens, situados do lado do exterior, do oficial, do público, [...] realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, [...] que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, [...] veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, [...] os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes. (BOURDIEU, 2012, p. 41)

Em alguns momentos o movimento espírita foi muito conservador e juntou-se a pressões sociais da Igreja e da classe médica na manutenção da divisão sexual do trabalho. Tal como Carlos Eduardo Marotta Peters afirma:

Assim como o controle da conduta dos homens, que buscava preservar seu papel de provedor do lar, a vigilância e normalização da conduta feminina objetivava preservar a família, mantendo a mulher em sua função de reprodutora e perpetuadora. (PETERS, 2012, p. 4)

Sobre a inversão de papéis, Kardec neste sentido foi igualmente conservador ao não recomendá-la, pois afirmava que as mulheres “não podem senão perder na troca”, pois “a

mulher com maneiras muito viris”, e “que se faz homem”, para ele, abdica do “encanto que fazem o poder daquela que sabe permanecer mulher” (KARDEC, 2004 [1867] p. 4).

Mais explícito e conservador de que Kardec, Rodolfo Calligaris (2001 [1973]) considera que o sucesso do matrimônio seja o cumprimento de uma bem definida e tradicional divisão sexual do trabalho, onde

Ao marido, como chefe da família, incumbe:

1. O governo da casa, compreendido como tal a fixação de normas disciplinares [...] 2. A administração do patrimônio familial [...] 3. Apoio e proteção mulher, reconhecendo-a como igual em dignidade e direitos.

A mulher, por sua vez, cabe:

1. Cooperar com o marido e prestigiá-lo em tudo quanto diga respeito à direção e ao bem-estar da casa. 2. Criar um ambiente acolhedor, não só pelo asseio e bom gosto dos arranjos caseiros, como principalmente pela atmosfera de afetividade com que envolverá o companheiro e a futura prole. 3. Submissão e deferência ao marido, já que a família, sendo um grupo societário, não pode prescindir de uma autoridade que por ele responda, e esta pertence ao homem, naturalmente mais apto para exercê-la.

(CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 43-44)

Para o autor, cabe ainda ao marido a “manutenção condigna”, de “prover os meios por

seu trabalho”, enquanto à mulher cabe, “se não puder contribuir para o aumento da receita” –

aqui, a concepção do trabalho feminino é tão somente complementar, não podendo ser de outra forma – deverá “saber economizar na despesa, suprimindo gastos supérfluos”171 (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 44).

O trabalho feminino, aqui, não se constitui como regra, mas como simples concessão: “se esposas, conquanto continuem a ser mães e donas de casa”, daí poderão ter “uma

participação mais ativa e consciente nos acontecimentos da vida comunitária, nacional ou mesmo internacional.” (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 45)

Para Pierre Bourdieu (2012)

A divisão entre os sexos parece estar "na ordem das coisas", como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas"), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU, 2012, p. 17)

Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade, sob forma de divisória, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados segui-o essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas. (BOURDIEU, 2012, p. 20)

171 Quanto a esta função feminina (a economia doméstica), a educação das meninas dada pela sociedade por vezes

Com as contribuições de Bourdieu pode-se concluir que também as representações de gênero no Espiritismo vieram legitimar a “divisão entre os sexos” – que já existia na sociedade mais ampla, alicerçada em outras cosmovisões – a partir de outro paradigma metafísico, de que o espírito não tem sexo, que reafirmou o espaço masculino como externo (público), o macrocosmo do trabalho e circunvizinhanças, e o espaço feminino como interno (privado), o microcosmo doméstico.

Esta ideologia sexista, como construção social é “estruturada”, mas ao cumprir a função de reprodução social, torna-se “estruturante”, e como Bourdieu afirma, cria-se uma “relação

circular” (BOURDIEU, 2012, p. 20) que mutila os corpos e desperdiça potenciais (SAFFIOTI,

1987; ALTHUS-REID, 2005; FINE, 2012) ao limitar e desestimular, por exemplo, a sensibilidade nos homens e a liderança e o raciocínio matemático nas mulheres.

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