Milena de Oliveira Guimarães
As medidas coercitivas aplicadas à execução de entregar
coisa e de pagar quantia
DOUTORADO EM DIREITO
Tese
apresentada
à
Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Direito
Processual Civil, sob a orientação do
Prof. Dr. Donaldo Armelin.
Agradeço, em primeiro lugar, a meu orientador, Dr. Donaldo Armelin, que, por não
menos de dez anos, acompanha meu crescimento intelectual. Devo-lhe muito.
A meus amigos queridos que, apesar de não compartilharem do estudo da ciência
jurídica, ainda assim participaram ativamente da conclusão deste trabalho com seu
apoio incondicional e incentivo, cujas palavras afetuosas ficarão para sempre
gravadas nas entrelinhas.
À Patrícia Rosolen, pelo auxílio na tradução dos textos estrangeiros.
A meus colegas do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, pela compreensão,
sobretudo pelo estímulo.
Em especial, ao querido Prof. Germano Aleixo Filho, da Universidade Federal de
Na leitura de uma tese, algo muito semelhante se dá quando um livro escrevemos. Não obstante o empenho desmedido com que sobre ela nos debruçamos, não foi produzida para ser palavra final em relação ao tema elegido.
Apropositado o pensar de Umberto Eco, em O nome da Rosa: “Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações”.
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo sugerir soluções compatíveis com o sistema
processual civil para a efetividade da tutela jurisdicional executiva, notadamente,
para a problemática do descumprimento das ordens judiciais. Partiu-se da
conceituação da decisão mandamental como tutela executiva, por comportar
medidas executivas como meio de compelir o recalcitrante ao cumprimento do
comando judicial contido na decisão. Nessa linha, houve a intenção de aproximar as
obrigações de entregar coisa e as de pagar quantia, agasalhando-as sobre a
proteção do comando judicial imperativo, que exorta ao cumprimento, sob risco de
sanção. Trazendo a lume as medidas coercitivas aplicáveis ao devedor renitente, no
sistema do common law, à moda do contempt of court, buscou-se ressaltar a eficácia dos provimentos executivos, com evidente superioridade em relação às parcas
medidas de apoio permitidas no processo civil brasileiro. Deve-se ter presente que
uma tutela executiva efetiva depende de uma ordem jurídica que coloca o respeito à
administração da justiça como corolário do devido processo legal. Conclui-se a
imprescindibilidade, para a efetividade da tutela executiva, do apoio das medidas
coercitivas – como a prisão civil e a multa diária – nas situações autorizadas pelo
ordenamento jurídico, no fim último de sancionar o devedor recalcitrante.
Palavras-chave: Direito Processual Civil. Execução. Efetividade. Medidas coercitivas.
ABSTRACT
The present study aimed at presenting compatible solutions to the civil procedural
system for the effectiveness of the enforcement, mainly, for the problematic
disobedience of the judgments. The process for enforcing requires coercive methods,
as civil prison or fines, compelling contemnor to enforce the order contained in the
decision. In this line, it had the intention to approach the specific performance and
the money judgments, and giving them an imperative protection from the Court order.
The contempt of court institute was mentioned, that is, a typical institute of the
common law system, whose aim is to assure the dignity of justice by imposing
coercive and punishing procedures. After comparing the both systems – civil law and
common law – the civil contempt was emphasized, a coercive procedure aiming to
force him to execute the judicial order. An effective enforcement depends on respect
to the administration of justice as corollary of due process of law.
Word-key: Civil Procedural Law. Enforcement. Effectiveness. Coercive methods.
NOTA
As citações em língua estrangeira foram traduzidas livremente, encontrando-se no
corpo do texto em forma de paráfrase e, ocasionalmente, com sua transcrição nas
notas de referência. Optou-se por essa forma visando facilitar a leitura daqueles
textos que trazem contribuições autênticas às ideias apresentadas. Buscou-se ser
mais fiel à mensagem que o autor estrangeiro pretendia transmitir do que à
literalidade do texto original. Eventualmente, isso pode ter acarretado a perda de
alguma sutil nuança contida nas entrelinhas, mas, sem dúvida, proporcionou à
Ac. - acórdão
Ag. - Agravo
art. - artigo
Ap. - apelação
Câm. - Câmara
CC - Código Civil
CF - Constituição Federal
Cf. - conforme
cit. - citado; citada
CP - Código Penal
CPR - Civil Procedure Rules
CPC - Código de Processo Civil
Des. - Desembargador
DJU - Diário Oficial da Justiça da União
DJe - Diário da Justiça Eletrônico
ed. - edição
e.g. - exempli gratia
EM - Emenda Constitucional
HC - habeas corpus
MS - mandado de segurança
n. - número; números
op. cit - opere citatum
p. - página; páginas
p. ex. - por exemplo
rel. - relator
REsp - recurso especial
RExt - recurso extraordinário
RMS - recurso em mandado de segurança
RHC - recurso em habeas corpus
RT - Revista dos Tribunais
ss. - seguintes
STJ - Superior Tribunal de Justiça
STF - Supremo Tribunal Federal
t. - tomo
T. - Turma
TJRS - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
v. - volume
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
1. A TUTELA JURISDICIONAL EXECUTIVA E AS TÉCNICAS
PROCESSUAIS DE ATUAÇÃO 17
1.1. Primeiras considerações: pretensão, tutela jurisdicional e
técnicas de atuação 17
1.2. A tutela final e antecipada, repressiva, preventiva, genérica
(pelo equivalente em dinheiro) e específica 20
1.3. Os provimentos executivos: condenatório, executivo
lato sensu e mandamental (repercussão física) 23
1.4. A tutela executiva 30
1.5. A técnica processual adequada determinada pela natureza
do direito material 33
1.6. Execução direta e indireta 35
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PROCEDIMENTO DE EXECUÇÃO 40
2.1. A relevância das origens históricas 40
2.2. A evolução da atividade executiva no direito romano 41 2.3. A execução de sentença no direito medieval (intermédio) 52 2.4. A evolução da atividade executiva após a Idade Média 55
2.5. O título executório: considerações prévias 56
2.6. A evolução histórica da ação de execução no Direito
Processual brasileiro 57
2.7. A actio iudicati romana e a execução de título judicial no
CPC de 73: traços distintivos 59
3. O TÍTULO EXECUTIVO NA ATUAL SISTEMÁTICA 62
3.1. O título executivo 63
3.1.1. As teorias sobre a natureza jurídica do título executório 66 a) O título como atestação do crédito: pensamento de Furno 66 b) O título como ordem de serviço: doutrina de Goldschmidt 67 c) Teoria da legitimação: concepção de Binder 67 d) O título como prova legal do crédito: a teoria de Carnelutti 68 e) O título como portador da sanção: a teoria de Liebman 69
f) Teoria eclética: pensamento de Andolina 70
3.1.2. A divergência nos conceitos 71
3.2. O título executivo como ficção jurídica 72
4. OS PROVIMENTOS JUDICIAIS EXECUTÁVEIS 82
4.1. Do provimento executável oriundo de contrato e oriundo
de lei 86
4.2. O conteúdo executável da tutela jurisdicional oriunda
dos arts. 461, 461-A e 475-I do CPC 92
4.3. Breves comentários acerca da obrigação de fazer e não fazer 94 4.4. Da obrigação de dar coisa distinta de dinheiro 97
4.5. Da obrigação de pagar quantia 100
4.6. Da relação intrínseca entre a obrigação de entregar coisa
e a obrigação de pagar 104
4.7. Da relação entre obrigação de entregar coisa e obrigação
de fazer 105
4.8. A impropriedade da sentença condenatória 107
4.9. O provimento judicial que determina o pagamento e a
entrega de coisa distinta de dinheiro: o problema da classificação 114
5. A (IN) EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL EXECUTIVA 119
5.1. A força das decisões judiciais – a questão da executividade
Intrínseca 119
5.2. A ordem judicial: eficácia mandamental contida nos
provimentos executivos 121
5.3. A almejada frutuosidade da tutela executiva 125
5.4. O Contempt of Court no procedimento executivo e a premente
necessidade de preservação da dignidade da justiça 127 5.5. Imprescindibilidade das medidas executivas (coercitivas
e punitivas) na busca da tutela efetiva 133
5.6. A inegável superioridade do sistema executivo do
Common Law sobre o romanístico – o papel do Contempt of Court 139
6. A EFETIVIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS NO SISTEMA
DO COMMON LAW 145
6.1. Raízes históricas 145
6.2. Equitable remedies: injunction e specific performance 151
6.2.1. Injunctions 152
6.2.2. Specific performance 157
6.3. Enforcementof a judgment 158
6.4. O instituto do Contempt of Court na execução de quantia 163
7. O CUMPRIMENTO DO COMANDO JUDICIAL EXECUTIVO
E AS MEDIDAS COERCITIVAS 173
7.2.3. A relativização do princípio da tipicidade das
medidas executivas 182
7.2.4. O princípio da lealdade processual e
o Contempt of Court 185
7.2.5. O princípio do respeito à dignidade humana e a
execução pelo meio menos gravoso para o devedor 189 7.3. As medidas coercitivas possíveis – a almejada efetividade
da tutela executiva 193
7.4. As medidas coercitivas na obrigação de dar coisa 202
7.5. As medidas coercitivas na obrigação de pagar 209
7.6. A possibilidade de alteração da medida executiva imposta
diante de sua ineficácia 218
7.7. Os poderes do juiz, a racionalidade no uso dos meios
executivos e os limites da atuação jurisdicional 221
CONCLUSÕES 232
INTRODUÇÃO
Não há o objetivo de abordar as consequências práticas da inserção
no sistema processual da Lei n. 11.232/05, mas ir além. A ideia germinal foi analisar
as transformações mais profundas, operadas nas bases teóricas do Processo Civil.
Os conceitos de sentença condenatória, de título judicial, de ação e
procedimento, antes solidificados, sofreram consideráveis abalos com a nova
alteração legislativa. Até mesmo a famigerada classificação das sentenças foi
forçada a retornar à cena, em novo contexto. Pode-se chegar ao extremo de
reconhecer que houve a transformação da natureza jurídica de determinados
institutos, como se tivessem renascido sob nova roupagem.
Mas, nessa nebulosa atmosfera, continua em pauta a questão da
efetividade da tutela executiva e as medidas de apoio que a acolitam.
A efetividade do processo não admite a resistência injustificada ao
cumprimento dos provimentos judiciais. Daí as modificações drásticas
transformadoras do sistema.
Para tanto, urge a necessidade de evidenciar a desconstrução do
processo executivo, que se deu paulatinamente, com as alterações nas regras que o
regulam, por meio das Leis n. 8.952/94, n. 10.444/02 e, recentemente, n. 11.232/05,
que fulminou com sua autonomia em relação ao processo de conhecimento.
As drásticas modificações efetuadas nas regras disciplinadoras do
chamada de condenatória e, consequentemente, no esvaziamento do conceito de
título executivo judicial.
E as velhas crenças impedem a constatação de algumas verdades
jurídicas que atualmente permeiam o sistema: a primeira delas é que não há a
distância imaginada entre o dever de entregar coisa e o dever de pagar quantia, pois
ambas as tutelas implicam a mesma “obrigação de dar”; a segunda, é que a tutela
executiva prescinde do título judicial para a produção dos efeitos pretendidos.
A nova sistemática adotada guarda a tendência de sintetizar, na
mesma tutela executiva, as várias modalidades de pretensões substanciais, cuja
satisfatividade vai depender, tão somente, do tipo de técnica processual executiva a
ser empregada.
Sem desprezo das louváveis intenções do legislador e levando em
conta a grande envergadura jurídica daqueles que participaram ativamente do
projeto, o confronto das novas regras com os costumes arraigados dos operadores
redundou em aparente retardamento dos efeitos almejados.
Na tentativa de rascunhar a equação de uma tutela executiva efetiva, e
frutífera, o legislador se esmerou em reparar a construção normativa, mas não
atentou para a grande verdade que sustenta o Direito: a lei caminha sempre atrás da
sociedade.
Evidencia-se, nesse espaço, a diferença no comportamento da
sociedade alicerçada em um direito costumeiro e daquela eminentemente positivista,
quanto ao tratamento dado ao devedor recalcitrante que, apesar da higidez
A incidência das técnicas executivas de coerção, análogas às sanções
do contempt of court dos países da common law, desde que com o devido tempero, ensejam maior efetividade à tutela executiva.
A proposta não é a simples importação desses institutos, um tanto
quanto incompatível com a sociedade típica dos países de tradição jurídica
romanística, mas, sim, analisar o comportamento das medidas repressivas que já
existem no sistema processual brasileiro e aplicá-las, com coragem e seriedade,
1 A TUTELA JURISDICIONAL EXECUTIVA E AS TÉCNICAS PROCESSUAIS DE
ATUAÇÃO
1.1 Primeiras considerações: pretensão, tutela jurisdicional e técnicas de atuação
A noção de tutela pode corresponder, amplamente, ao conjunto de
regras de conduta que formam um ordenamento jurídico (direito objetivo), ou seja, a
garantia proporcionada pelo Estado contra a lesão ou a ameaça de lesão a um
direito é chamada tutela de direitos. Contudo, pode ser necessário se recorra ao
Poder Judiciário a fim de obter, por meio da atividade jurisdicional, a tutela de
direitos; é a chamada tutela jurisdicional de direitos.
Segundo Dinamarco1, tutela jurisdicional é o amparo que o Estado
ministra a quem tem razão em uma demanda. Tutela significa ajuda, proteção. E é
jurisdicional a proteção outorgada mediante o exercício da atividade do juiz, a fim de
que o sujeito, por ela beneficiado, obtenha, no plano da realidade, uma situação
mais favorável do que aquela em que antes se encontrava.
É corrente, em doutrina, a afirmação de que a tutela jurisdicional se
presta a garantir os efeitos substanciais em favor do vencedor, ou seja, a tutela
jurisdicional é o resultado final do exercício da jurisdição em favor de quem tem
razão.2 Contudo, é preciso esclarecer que não se trata de designar por tutela
jurisdicional apenas a sentença procedente em favor do autor, pois a tutela não
1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil moderno. São Paulo: Malheiros,
2000. pp. 807ss.
reside na sentença em si enquanto ato processual, mas, sim, nos efeitos que ela
projeta para fora do processo e sobre as relações entre as pessoas.
A tutela jurisdicional se realiza em dois planos: o da fixação de
preceitos reguladores da convivência (plano do direito material) e o das atividades
destinadas à efetividade desses preceitos (meios de atuação).3
Como explica Dinamarco4, não só o litigante vitorioso recebe a tutela
através do processo, mas também outros entes ou valores que de algum modo
recebem os efeitos do exercício da jurisdição.
A pretensão, entendida sob a ótica da teoria subjetiva da ação, se
biparte em dois conceitos distintos: a pretensão processual e a pretensão
substancial.
A pretensão qualificada como processual se manifesta no interesse à
obtenção da tutela jurisdicional útil e adequada. De sua vez, a pretensão qualificada
como substancial representa, no processo, a afirmação da existência de um direito
material a ser reconhecido e realizado por meio da tutela jurisdicional.
Nesse aspecto, a pretensão processual estaria intrínseca à condição
da ação, ao passo que a pretensão substancial representaria o mérito da causa, ou
o pedido aduzido em juízo.
Tanto uma quanto outra estão a merecer o amparo judicial, pois,
dentro da sistemática atual do processo, é necessária a averiguação da existência
do direito de ação para, num passo seguinte, analisar a procedência do pedido.
Essas considerações são relevantes ao entendimento da correlação
existente entre a pretensão de direito material, a tutela jurisdicional adequada e as
técnicas processuais que possibilitam a tutela à pretensão aduzida ou, em outras
palavras, a possibilidade de conferir ao jurisdicionado aquilo que lhe satisfaz, efetivamente.
Ao aduzir o pedido, o autor indica o bem da vida almejado e o tipo de
tutela jurisdicional que julga adequada a lhe conferir esse bem da vida (pretensão
substancial).
É sobre essa dualidade que repousa a concepção acerca da mitigação
do princípio da congruência entre o pedido e a sentença.
Ademais, como bem profetizou Karl H. Schwab5, “tenemos pues que lo
decisivo es siempre la solicitud interpretada. Para interpretarla debe recurrirse aL
estado de cosas”.
Diante da possibilidade de o julgador optar por medida diversa da
pleiteada pelo demandante, por ser mais adequada a lhe propiciar o bem da vida
almejado, o pedido – especificamente o pedido imediato – rompe suas amarras
pragmáticas e admite ser “interpretado” pelo julgador que, para tutelar
adequadamente a pretensão substancial, sem extrapolar os efeitos esperados pelo
demandante, pode se utilizar de “outras” medidas cabíveis. Tal é o que ocorre nas
demandas executivas lato sensu, ex vi do art. 461, § 5º, do CPC.
Em outras palavras, a perspicácia no emprego da técnica processual,
que mais se amolda à pretensão, auxilia na efetividade da tutela jurisdicional
esperada pelo demandante.
Nessa perspectiva, fica clara a afirmação de que a tutela executiva,
para sua maior efetividade, depende do emprego das técnicas processuais
adequadas, especificamente dos meios executivos capazes de proporcionar os
efeitos pretendidos.
Tome-se, por exemplo, o contido no art. 461 do CPC. Em seu § 3º, o
dispositivo autoriza a concessão da tutela inibitória (preventiva), em sua forma
antecipada. E, em seu § 5º, o legislador deixa ao alvitre do magistrado a escolha da
medida executiva adequada a proporcionar ao jurisdicionado a satisfação de sua
pretensão substancial.
Como se vê, os conceitos de pretensão, tutela jurisdicional e técnicas
de atuação estão intrinsecamente relacionados.
1.2 A tutela final e antecipada, repressiva, preventiva, genérica (pelo equivalente
em dinheiro) e específica
A tutela plena seria a otimização do resultado do processo, a real
satisfação da pretensão da parte; ao passo que a tutela jurisdicional concedida ao
vencido seria uma tutela de menor intensidade e estaria restrita ao tratamento justo
conferido, de modo que o vencido não seja sacrificado além dos limites do razoável
para a efetividade da tutela devida ao vencedor.
Desse modo, o provimento jurisdicional deve proporcionar a eficácia
adequada à produção dos efeitos pretendidos pelo autor, e resultar na tutela da
pretensão do demandante. Por outro lado, ao vencido cabe a eficácia declaratória
negativa do pedido do autor, que seria a tutela jurisdicional conferida a ele.
O artigo 273 do CPC fala em antecipar os "efeitos" da tutela
que se antecipa é a própria tutela em si, dado que a decisão judicial não é a tutela,
mas, sim, um ato processual destinado a proporcionar a tutela a quem tenha direito.6
Portanto, a tutela é o resultado da decisão judicial. Esta, sim, possui eficácia.
Fala-se ainda em tutela específica e tutela genérica (ou pelo
equivalente em dinheiro).
A tutela específica é a obtenção, pela parte, daquilo que constitui
objeto de sua pretensão, ou seja, a realização da tutela específica implica a
satisfatividade plena, ou a restauração do idêntico interesse sacrificado pela
violação. O que não guarda relação com a satisfatividade da decisão judicial,
porquanto a sentença pode proporcionar satisfatividade, mas não a tutela específica.
Assim, em se tratando de obrigação contratual, a tutela específica poderia ser
aquela que confere ao autor o cumprimento da obrigação inadimplida, seja a
obrigação de entregar coisa, seja a de pagar soma em dinheiro, seja a de fazer ou
não fazer. E a tutela que confere ao autor o desfazimento daquilo que não deveria
ter sido feito é tutela específica da obrigação de não fazer.
A tutela pelo equivalente não resulta na outorga do bem da vida
pretendido pelo demandante; mas lhe entrega, em dinheiro, o correspondente ao
objeto litigioso. A tutela genérica se expressa pela conversão da prestação em
pecúnia.
Representa a tutela repressiva, que ainda pode ser denominada de
tutela reparatória ou sancionatória, aquela que tem por objeto uma sanção. Ou seja,
a aplicação de uma sanção, ou punição, corresponde à pretensão do demandante
nas situações em que ocorreu a lesão ou o ilícito.
Por sua vez, a tutela inibitória consiste na prevenção em si mesma;
melhor dizendo, o resultado querido é justamente que não ocorra o ilícito. A tutela
inibitória não visa punir aquele que pode praticar o ilícito, mas impede que o ilícito
seja praticado.7
É comum, ainda, a doutrina fazer referência às denominadas tutelas
diferenciadas, cuja conceituação pode ter, como referenciais, o iter procedimental em que se situa ou a qualidade do direito material objeto da lide, a pedir uma técnica
processual mais adequada a ele, para proporcionar efetividade.
Como bem adverte Donaldo Armelin8, “presentes diferenciados
objetivos a serem alcançados por uma prestação jurisdicional efetiva, não há por
que se manter um tipo unitário desta ou dos instrumentos indispensáveis à sua
corporificação. A vinculação do tipo de prestação à sua finalidade específica espelha
a atendibilidade desta; a adequação do instrumento ao seu escopo potencia o seu
tônus de efetividade”.
Ou, ainda, a tutela jurisdicional diferenciada pode ser entendida como
a garantia processual que permite a alteração de uma realidade em menor espaço
de tempo e de maneira satisfatória ao titular de um direito, outorgando o bem da vida
ou a situação jurídica desejada.9
Na definição de Ovídio Baptista da Silva, a tutela diferenciada significa
"aderência do instrumento processual às peculiaridades do direito material posto em
causa".10
7 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 39. 8 ARMELIN, Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. In:Revista de Processo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, n. 65, jan./mar.1992, p. 45.
9 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das decisões e execução provisória. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. pp. 189 e 190.
10 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
Exemplo de tutela diferenciada se encontra no art. 1.102a a 1.102c do
CPC, com as devidas alterações dadas pela Lei n. 9.079/95, que introduziu a
chamada ação monitória.
1.3 Os provimentos executivos: condenatório, executivo lato sensu e mandamental (repercussão física)
Ao abordar o tema da tutela jurisdicional, é preciso mencionar a
celeuma existente acerca de uma possível “classificação” entre as várias eficácias
que uma tutela jurisdicional pode guardar.
No entanto, não há intenção de discorrer exaustivamente sobre as
classificações de ações ou sentenças trazidas pela doutrina, tão somente pontuar as
ideias úteis ao deslinde dessa exposição, principalmente no que toca à sentença
condenatória.
Em justificativa, vale citar, a inspirada observação de Luiz Guilherme
Marinoni, ao criticar a insistência da doutrina em classificar ações:
[...] toda e qualquer classificação das sentenças tem uma visível relatividade histórica, já que os seus conceitos dependem do Estado e da legislação processual em que estão inseridas. De modo que toda classificação de sentenças é transitória, sendo desta forma equivocado imaginar que uma classificação possa se eternizar, como se as classificações devessem obrigar os juristas a ajeitar as novas realidades aos antigos conceitos. 11
11 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHAT, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: execução. São
A doutrina clássica defende a classificação das “ações”, mesmo
afirmando que ela é abstrata. A teoria da classificação tríplice das ações estabelece
a existência da ação declaratória – utilizada quando o demandante pretende a
declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica –, a ação
constitutiva – em caso de o demandante pretender a formação, a modificação ou a
extinção de uma relação jurídica – e, ainda, a ação condenatória – na situação em
que demandante pretende a formação de um título executivo judicial.
Outra parte da doutrina prefere falar em classificação de sentenças ou
espécie de provimento jurisdicional.
Moacyr Amaral Santos12 chega ao cúmulo de falar em classificação
das “ações de conhecimento”, “ações de execução” e “ações cautelares”, como se o
tipo de procedimento fosse capaz de dar contornos próprios ao direito subjetivo e
abstrato da ação. Ou, ainda, como se o procedimento – concebido como forma do
processo – pudesse também formatar a ação.
Merece destaque a classificação propagada por Pontes de Miranda,
conhecida como a classificação “segundo a eficácia preponderante da sentença”,
entendendo que uma sentença pode ser qualificada de declaratória, constitutiva,
condenatória, executiva ou mandamental.
Pontes de Miranda13 adverte que, na jurisprudência, por falta de
conhecimentos de direito processual, se encontram erros infantis quanto às
sentenças, sua natureza, sua classificação e também com relação aos seus efeitos.
E que um deles é o resultante da atitude de ignorar a diferença de “peso” das
“forças” contidas no provimento judicial
12 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 21ª ed. São Paulo: Saraiva,
1999. p. 174.
13 MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Leciona o mestre que a ação é de condenação, porque o elemento
“condenação” (à prestação) aparece mais do que nas outras classes de ações, e a
prova disso é que a ação de condenação é também declarativa, pois que a sentença
do juiz, que condena, declara a existência ou a inexistência de relação jurídica, e
aplica a lei; e ainda constitui, porque se constitui em si mesma; e manda, porque há
no juiz, ineliminável, o mandamento. 14
O entendimento de Pontes de Miranda15 é distinto do apregoado pelos
processualistas até 1939. Ele defende sua posição ao afirmar que, para que seu
entendimento fosse destruído, seria preciso se apontasse, pelo menos, uma
sentença pura de condenação, outra de declaração, outra de constituição, outra de
mandamento, outra de execução. “Não há. Nem nunca houve.”
Afirma, in verbis:
(...) a existência de elemento declarativo em todas as sentenças, estabelecendo-se doses diferentes entre elas, ainda entre as executivas e as constitutivas, afasta a possibilidade de se poder enunciar, a priori, que tal sentença, por ser constitutiva, ou executiva, não faz coisa julgada material. A distinção de classes de sentenças que produzem coisa julgada material e classes de sentenças que não a produzem é lenda entre os juristas. A eficácia depende da relevância da declaratividade na sentença, em virtude do pedido. O que há são classes que sempre têm esse efeito e classes que o têm em menor probabilidade. 16
Assevera, mais adiante:
14 MIRANDA, Comentários..., cit., p. 111. 15 Ibid., p. 111.
a) que a carga de eficácia das ações e das sentenças é constante; b) que há cinco elementos que compõem a carga, em ordem decrescente, chamando-se força ao primeiro; c) que é o preponderante que dá a classe à ação ou à sentença; d) que o segundo (eficácia imediata) e o terceiro elemento (eficácia mediata) são de importância considerável. 17
Sem subestimar a doutrina do eminente jurista sobre as sentenças
declaratórias e constitutivas, interessa mais, ao desenvolvimento do trabalho, sua
concepção em relação aos provimentos condenatório, executivo e mandamental.
Para Pontes de Miranda18, a ação de condenação tem como conteúdo
obter decisão condenatória. O efeito executivo, nessas ações, seria normal.
Contudo, a sentença não é executiva, e menos ainda a ação. Uma coisa é ser
executiva, outra coisa é ter força executiva; condenação como ação executiva peca
pela base. A sentença de condenação não executa – permite a execução; tampouco
manda que se cumpra a prestação – abre portas a que se peça a execução e o juiz
executor execute.
Em continuação, o conteúdo da ação de mandamento19 é obter
mandado do juiz, que se não confunde com o efeito executivo da sentença de
condenação. A sentença de mandamento pode conter, também, mandamento a que
17 MIRANDA, Comentários..., cit., p. 116. 18 Ibid., p. 115.
19 Pontes de Miranda reiterou, no Brasil, a teoria desenvolvida por Georg Kuttner, na sua obra
se execute a sentença. Afirma ainda que a ação de mandamento fica a meio
caminho entre o ato judicial (declarativo a forte dose) e o ato de administração. 20
Pontes de Miranda subdivide as ações executivas lato sensu em três grandes grupos:
a) ação executiva por antecipação ou adiantamento da executividade, de que são exemplo as ações de títulos extrajudiciais, mas de cognição incompleta ao tempo da eficácia executiva; b) ação executiva sem antecipação ou adiantamento da executividade, de modo que a sentença final é que é a ‘executiva’; c) ação executiva de sentença (‘execução das sentenças’), que são títulos para se iniciar execução, já sem a elaboração da cognição completa, porque a sentença exequenda deixou atrás aquela elaboração e tende a explorar a cognição completa que traz em si. 21
Na alínea “a” do exposto acima, estariam enquadradas as medidas
preventivas ou acautelatórias, já que no fundo se trata de pretensão à sentença ou à
execução, ou seja, pressupõe-se outra pretensão, ou à execução ou à sentença.
Essa pretensão somente existiria em razão de o meio normal ser inábil; e é
autônoma. Afirma, esse grande jurista, que as ações e as sentenças que então se
proferem são mandamentais, daí por que não encontra razão para a criação de uma
sexta espécie de ações. Ressalta por igual que, se elas tomam a natureza de
execução para segurança (adiantamento da execução), são ações executivas. 22
Destarte, o grande mérito de Pontes de Miranda foi deixar patente que
uma sentença jamais poderia ser pura. Contudo, com relação à afirmação de que
todas as sentenças teriam certa “carga” de todas as eficácias, parece algo
20 MIRANDA, op.cit., p. 115. 21 Ibid., p. 113.
exagerado. A exemplo disso, a afirmação de que todas as sentenças declaratórias
“constituem” porque simplesmente constituem algo novo. Ou a afirmação de que
todas as sentenças declarativas também possuem eficácia condenatória porque
“condenam” na sucumbência23, afirmação essa rebatida por Barbosa Moreira24 em
conhecido artigo doutrinário.
Não obstante, é preciso louvar a erguida construção doutrinária do
ilustre jurista, e lembrar que sua teoria tem sido muito mencionada, até mesmo
criticada, mas parece que ainda não foi estudada a fundo como deveria, isso porque
não houve quem a impugnasse à altura de Pontes de Miranda.
A sua vez, Marcelo Lima Guerra25 afirma existirem apenas três
espécies de tutela jurisdicional: a tutela declaratória, a tutela constitutiva e a tutela
executiva, devendo esta última englobar também a "tutela" executiva lato sensu e a "tutela" mandamental, que ele passa a denominar "sentenças instrumentais em
relação à tutela executiva".
Chega a afirmar, mais adiante:
[...] se pode reconhecer a possibilidade de denominar 'sentença executiva lato sensu' aquelas sentenças condenatórias proferidas em procedimentos diferenciados (que podem ser adequadamente denominadas 'ações executivas lato sensu'), que se caracterizam por ter o legislador permitido que a tutela executiva do direito reconhecido na respectiva sentença fosse prestada, sem solução de continuidade, nos próprios autos do processo em que foi proferida tal sentença. 26
23 Cf. MIRANDA, Tratado das ações, cit., pp. 156 e 57.
24 Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o
tema. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 40, out./dez.1995, p. 10.
25 GUERRA, Marcelo Lima. Execução de sentença em mandado de segurança. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim; BUENO, Cássio Scarpinella; ALVIM, Eduardo Arruda (coords.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp. 625ss.
De efeito, considerando as muitas construções teóricas acerca da
possibilidade, ou melhor, da pertinência de classificar as “ações”, importa, bem mais,
partir do estudo das várias eficácias que um provimento judicial possa trazer em seu
conteúdo, pois dessa identificação depende antever os possíveis efeitos a serem
produzidos no plano fático e jurídico.
Assentado no prognóstico desses efeitos, seria possível o emprego da
técnica processual mais adequada a conferir ao demandante a tutela jurisdicional
almejada.
Exemplo interessante aduz Guilherme Rizzo Amaral:
Tomando por exemplo a sentença proferida na ação de alimentos, nesta o que se determina é a agressão ao patrimônio de ‘terceiro genérico e indefinido”. Tradicionalmente, a técnica de tutela considerada adequada para tal situação é a condenatória. Todavia, há, em verdade, três formas de tutela, ou técnicas de tutela, que podem vir a ser utilizadas em se tratando de tutela do direito a alimentos. Pode-se condenar e submeter o réu à execução mediante requerimento do credor. Pode-se mandar que o réu pague, sob pena de prisão. Pode-se executar diretamente por meio do desconto em folha. Nas três hipóteses, não se está a passar ‘para a esfera jurídica de alguém o que nela devia estar, mas, isto sim, a ‘agredir o patrimônio de terceiro, genérico’. Ainda assim, como bem se vê, não é porque a sentença agride patrimônio de terceiro, genérico, que será sempre condenatória, modificando-se apenas a forma de cumprimento ou o meio de execução ou efetivação dessa sentença. 27
27 AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do
Noutro vértice, a constatação da eficácia do provimento judicial pode
ser decisiva para a perspectiva da satisfação da obrigação, quando essa implicar a
pretensão substancial.
Particularmente, no campo das obrigações, para cada espécie, o
sistema permite a utilização do procedimento executivo adequado, assim como as
medidas executivas cabíveis, sob a ótica da tipicidade.
Nessa direção, emana a dúvida sobre o papel, desempenhado após as
recentes reformas do sistema processual, das tutelas condenatória, executiva lato sensu e mandamental.
É inegável que o conceito de tutela condenatória está em crise, diante
da nova sistemática do processo de execução. É possível até afirmar, à luz da
efetividade dos provimentos judiciais, que houve o reconhecimento tardio da total
falta de utilidade prática de uma tutela condenatória, a considerar sua dependência
de outra demanda para que possam surtir os efeitos pretendidos.
De outra banda, a tutela executiva lato sensu e a tutela mandamental ganharam destaque e obtiveram, ao longo desses últimos anos, a preferência do
operador do direito. Por uma razão muito simples: proporcionam o mais amplo leque
de técnicas processuais possíveis (tutela específica, tutela ressarcitória, etc.) e de
medidas executivas (multa, busca e apreensão, etc.) a serviço da efetividade.
Antes da exposição da concepção de tutela executiva adotada para o
desenvolvimento do presente estudo, é preciso trazer à baila seu conceito clássico,
concretizado na doutrina autorizada.
Segundo o princípio da maior coincidência possível, a tutela executiva
deve conferir ao credor o equivalente àquilo que obteria com o adimplemento da
obrigação. Ou seja, o ideal na execução forçada é produzir os mesmos resultados
que o adimplemento teria produzido, satisfazendo inteiramente o direito subjetivo e
dando efetividade plena ao preceito concreto de direito material.28
É tradição ver na execução forçada a substitutividade da atividade jurisdicional29, que ocorre quando o Estado, através da atividade jurisdicional, invade
a esfera patrimonial do devedor e efetua a expropriação, substituindo a vontade do
particular pela vontade soberana do Estado.
Execução forçada, segundo as raízes da doutrina liebmaniana, é "uma
cadeia de atos de atuação da vontade sancionatória, ou seja, conjunto de atos
estatais através de que, com ou sem o concurso da vontade do devedor (e até
contra ela), invade-se seu patrimônio para, à custa dele, realizar-se o resultado
prático desejado concretamente pelo direito objetivo material".30
Convém esclarecer que o conceito de "vontade sancionatória" afina
com o entendimento de que o provimento condenatório é justamente classificado
como tal em virtude de mostrar-se acompanhado da sanção declarada na decisão
judicial, e que implica a agressão patrimonial conforme for concretizado por meio
das medidas executivas.
28 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 100.
29 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998, v. 1,
passim.
Assim, a execução forçada, em sua forma genérica, é verificada à
razão da impossibilidade do adimplemento da obrigação mediante a restauração ao
estado de fato anterior à violação, o que comporta necessidade da atuação da
vontade do Estado para a obtenção do resultado equivalente. São as chamadas
medidas executivas sub-rogatórias, por meio das quais o próprio Estado supre a
falta do comportamento do devedor.
O novo prisma, pelo qual deve ser olhada a tutela executiva, modifica
substancialmente a concepção engessada de que ela estaria limitada ao processo
de execução, posto que este tenha sofrido recente desestruturação.
Nessa esteira, é imperioso esclarecer que a tutela executiva não é
exclusiva do processo de execução. A tutela executiva resulta dos efeitos obtidos
através de atos executivos, ou seja, atos judiciais que têm função executiva por
guardar a eficácia executiva. É nesse sentido mais amplo que a expressão tutela
executiva será empregada doravante.
Na sequência, pode-se dizer que os atos executivos são atos materiais
tendentes a outorgar ao demandante vitorioso o bem da vida pretendido. E
tornam-se imprescindíveis para as tutelas executivas.
É possível afirmar, de igual modo, que os atos executivos são comuns
à certas eficácias que não são autosatisfativas; ou seja, aos provimentos judiciais de
eficácia preponderantemente declaratórias e constitutivas, que atendem e esgotam
integralmente a pretensão do autor, não havendo nada a acrescentar ao comando
judicial.31 Nesses casos, durante o trâmite do processo de conhecimento, é possível
a execução de uma decisão judicial interlocutória.
31 Cf. ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
Destarte, além dos atos executivos determinados pelo juiz, no
procedimento de execução, é possível ocorrer a imposição de medidas executivas
em todos os tipos de procedimento. O contrário também pode se dar, ou seja,
decisões judiciais características do processo de conhecimento serem concedidas
durante o desenlace da execução.
Não se pode negar, ainda, que algumas medidas cautelares podem
também resultar em transformação no plano fático, implicando execução, sendo
consideradas, portanto, ações executivas em sentido lato. Isso se deve, justamente,
em razão de que as sentenças proferidas em processo cautelar ora podem ser
classificadas como mandamentais, ora como executivas lato sensu, segundo sua eficácia preponderante. Exemplo interessante é a medida cautelar do artigo 885 do
CPC, que impõe ao juiz o dever de ordenar a apreensão do título, sob pena de ser
decretada a prisão do portador. É clara tutela mandamental, cuja sanção é a
imposição da prisão, configurando tutela autoexequível.
Bem por isso, é possível entender a tutela executiva como a realização
da pretensão do demandante, constitua o objeto processual ou mera medida
acautelatória, pois poderá, em tese, resultar em efeitos de repercussão física.
De outro lado, essas considerações ameaçam outro conceito arraigado
no sistema processual brasileiro: o título executivo judicial. E junto com este, o da
sentença condenatória, título executivo judicial por excelência.
Não é apropriado falar em pretensão à técnica de tutela
processualmente adequada, admitindo o alvitre do julgador na escolha dos meios
disponíveis e apropriados a produzir os efeitos queridos.
Como antes exposto, o demandante tem pretensão à tutela
jurisdicional; espera por um provimento executivo, declaratório, mandamental ou
constitutivo, capaz de lhe proporcionar satisfação da pretensão substancial.
O provimento judicial deve ser ajustado ao direito material aduzido pelo
demandante. Falando tecnicamente, o pedido inicial indica o tipo de tutela almejada.
A sentença e a decisão interlocutória constituem técnicas processuais
– já que são atos judiciais processuais – que servem à concessão da tutela
jurisdicional. Tanto as sentenças quanto as decisões interlocutórias são capazes de
produzir efeitos, pois guardam em si as várias eficácias identificadas na doutrina.
Desse modo, a escolha da espécie de provimento jurisdicional e da eficácia que ele
terá irá sempre depender dos efeitos que se espera que o provimento produza a fim
de possibilitar a plenitude na realização da pretensão material.
Considere-se que a obtenção da tutela jurisdicional efetiva, de que
espécie for, irá depender sempre do emprego da técnica processual adequada. A
própria escolha da espécie de tutela jurisdicional já implica na utilização adequada
de uma técnica processual. Mas não é só isso.
Como adverte Marinoni, as decisões judiciais, com suas várias
eficácias, refletem apenas o modo (ou a técnica processual) pelo qual o direito
processual tutela a diversidade dos conflitos concretos. Mas “os meios de execução
plano do direito material, também são técnicas para prestação da tutela
jurisdicional”. 32
Para Marinoni é preciso identificar as diversas espécies de tutela para
então pensar na técnica processual idônea para atendê-las. Esclarece que “se as
tutelas dos direitos (necessidades no plano do direito material) são diversas, as
técnicas processuais devem a elas se adaptar. O procedimento, a sentença e os
meios executivos, justamente por isso, não são neutros às tutelas (ou ao direito
material), e por esse motivo não podem ser pensados a sua distância”. 33
Sem dúvida, para que seja alcançada a efetividade da tutela
jurisdicional, importa que ocorram algumas transformações no modo de pensar o
processo.
Objetivando o emprego correto das técnicas processuais disponíveis
para efetividade da tutela executiva, por exemplo, é imperioso considerar as
eficácias executivas lato sensu e a mandamental como uma nova técnica mais eficiente. Para tanto, leva-se em conta o abrandamento do princípio da tipicidade
dos meios executivos, bem como a mitigação do princípio da congruência entre o
pedido e a sentença, princípios explorados adiante, em mais espaço.
1.6 Execução direta e indireta
Em se tratando da tutela executiva, as técnicas processuais
empregadas com o intento de proporcionar ao credor a satisfação – por meio da
32 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 146.
tutela específica ou pelo resultado prático equivalente – podem se dividir em dois
grandes grupos: as medidas coercitivas e as de sub-rogação.
As medidas sub-rogatórias se destinam a suprir a falta do
comportamento do devedor (situação de inadimplemento), proporcionando a
satisfação do credor sem nenhuma cooperação do devedor, ou seja,
independentemente da vontade dele. 34 Daí o traço característico da atuação
jurisdicional: a substitutividade, pois há a evidente substituição da vontade do
devedor pela atuação estatal, que, por si, leva à satisfação do credor. Por isso, a
execução por meio de medidas sub-rogatórias recebe a denominação de execução
direta.
A execução direta tem sido reconhecida, pela doutrina clássica, como a
única forma de execução forçada, em detrimento da execução indireta, que emprega
medidas coercitivas para compelir o devedor a cumprir o comando judicial, pois
ocorre sem que haja necessidade da atuação direta do Estado-juiz.
Ainda na metade do século XX, havia a crença de que somente os
meios de sub-rogação correspondiam propriamente à execução forçada, como
defendia Liebman35.
34 Cf. GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 25. 35 Interessante anotar passagem da obra de Liebman que ilustra bem o pensamento da época acerca
do conceito de execução forçada: “Vários autores consideram como sendo uma forma de execução a chamada execução indireta, que consiste na aplicação das chamadas medidas de coerção, tendentes a exercer pressa sobre a vontade do devedor para induzi-lo a cumprir a obrigação (multas, prisão etc.). Apesar de seu caráter coativo, essas medidas visam conseguir a satisfação do credor com a colaboração do devedor, constrangido a cumprir sua obrigação para evitar males maiores. Faltam-lhes, contudo, os caracteres próprios da execução estritamente entendida. Será verdadeira execução só a atividade eventualmente desenvolvida pelos órgãos judiciários para cobrar, por exemplo, as multas aplicadas.
Do mesmo modo, não é execução a chamada execução imprópria. Denomina-se assim a atividade desenvolvida por órgãos públicos não pertencentes ao poder judiciário e consistente na transcrição ou inscrição de um ato em registro público (registro civil, imobiliário), mesmo se ordenado pelo juiz. Escopo dessas atividades é conferir publicidade aos atos respectivos, e tem por isso caráter executivo ou não, conforme o ato seja (ex: penhora) ou não de execução.” (LIEBMAN, Enrico Túlio.
No sistema da actio iudicati, ou durante o longo período em que perdurou sua forte influência, a execução por sub-rogação teve primazia, a ponto de
se afirmar que somente a expropriação (sub-rogação) poderia constituir autêntica
execução forçada. 36
Para Salvatore Satta37, a execução específica não poderia ser incluída
no mesmo desenho legislativo que a execução por expropriação, porque seu
inadimplemento se converte no ressarcimento, como nas obrigações genéricas. O
cerne de sua construção doutrinária acerca da execução forçada reside no fato de a
execução específica corresponder à manifestação da própria obrigação, sem a
necessidade da intervenção estatal, ao passo que a expropriação pressupõe a
atuação do Estado-juiz para transferir o bem da esfera patrimonial do devedor para a
do credor.
Ou, nas palavras do mestre de Roma:
Entre execução-expropriação e a execução específica não tem afinal nenhum ponto de contato, e igualar-lhes o desenho legislativo é fruto somente de gosto escolástico e literário, inspirador em grande parte da reforma de 1942. Se as normas sobre a execução específica não fossem escritas no código civil (e como dissemos, não existem no código anterior e tudo sucedia do mesmo modo), de maneira diversa seria tudo. Em oposição à expropriação a execução específica não será senão a natural forma jurisdicional do exercício do direito; e dizemos natural, por ser claro que ninguém, nem o proprietário, pode invadir sem o ministério da justiça a esfera alheia, seja até para reaver a sua coisa. Porém isto é justo e finalmente significativo, pois se o proprietário infringir essa esfera, fa-lo-á
36 A esse respeito, LIEBMAN, Execução…, cit., p. 6.
arbitrariamente; se o credor se apropriar da coisa do devedor para satisfazer a sua obrigação, cometerá um furto. 38
A exemplo do entendimento de Satta, a execução por meio de medidas
coercitivas também não configura execução forçada para Luigi Montesano39,
constituindo apenas modo de pressão psicológica para obtenção do adimplemento
que, por ser realizado pelo próprio devedor, deixa de ser forçado.
Com a devida permissão, o entendimento de Satta parece relegar a
segundo plano a pretensão substancial do credor da obrigação, para quem pode não
interessar o ressarcimento pelo equivalente ou a conversão em perdas e danos, o
que motivaria a intervenção estatal para a realização da obrigação específica, pois
esta não tem a força, como ele afirma, de atuar à maneira de um “reflexo de direitos
absolutos (reais na acepção ampla)”. 40
As divergências passadas se tornaram irrelevantes diante da realidade
social posta na atualidade.
O desenvolvimento da dogmática em torno da execução indireta, e sua
elevação à categoria de execução forçada, se deu por meio da constatação da
incapacidade dos meios executivos diretos em proporcionar a satisfatividade, nas
diversidades do direito substancial. Sobretudo em casos à semelhança da satisfação
da tutela específica ou da obrigação de não fazer.
Sobre as formas de execução direta e indireta, Luiz Guilherme
Marinoni orienta:
38 SATTA, Direito Processual..., cit., p. 524.
39 MONTESANO, Luigi. Condanna civile e tutela esecutiva. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio
Jovene, 1965. pp. 17-19.
Trata-se, indubitavelmente, de formas de execução da tutela jurisdicional dos direitos, ainda que de formas de execução distintas, o que evidentemente recomenda a manutenção da distinção entre elas, e assim o emprego dos qualificativos direta e indireta, mas com o grifo de que ambas constituem formas de execução das tutelas jurisdicionais, especialmente daquelas imprescindíveis ao Estado constitucional, [...].41
Portanto, a técnica da execução indireta ganhou notoriedade à
proporção que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva obteve o respeito
devido.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PROCEDIMENTO DE EXECUÇÃO
2.1 Relevância das origens históricas
A tentativa de trazer mais celeridade ao procedimento executivo nas
obrigações de pagar quantia, refletida na Lei n. 11.232/2005, parece ser a
reminiscência da chamada executio per officium iudicis, procedimento executivo que vigorava durante a Idade Média, marcado pelo sincretismo das atividades cognitiva e
executiva.
Guardadas as distinções cabíveis, examinadas logo adiante, é
importante reconhecer que tanto a execução de sentença, antes da reforma, quanto
o procedimento atual se espelham em institutos que existiram há muitos séculos, e
que nada de realmente novo foi criado pelo legislador na atualidade.
O procedimento de execução de sentença por quantia, previsto no
CPC antes da última reforma, lembra a actio iudicati romana, que, semelhantemente ao ocorrido há pouco, também foi substituída, em certo momento da história, por um
procedimento mais rápido: a executio per officium iudicis.
Em recentes comentários à Lei n. 11.232/2005, o Min. Athos Gusmão
Carneiro ressalta que ela “consagra o abandono do sistema romano da actio iudicati, com o retorno ao sistema medieval pelo qual a sentença habet paratam executionem”. 42
42 CARNEIRO, Athos Gusmão. Do “cumprimento da sentença”, conforme a Lei 11.232/2005. Parcial
São as semelhanças dos fatos históricos com os últimos
acontecimentos no Direito Processual brasileiro que impõem a análise dos institutos
anteriores face ao modelo atual. Assim, o estudo das raízes históricas da actio iudicati e da executio per officium iudicis é necessário, no panorama atual.
2.2 A evolução da atividade executiva no Direito Romano
O Direito Romano pode abrigar suas fases evolutivas, classificadas por
diferentes critérios: o histórico, que leva em consideração os vários períodos –
arcaico, clássico e pós-clássico; o político, que considera as formas de governo –
régio, republicano, principado e dominato; e o religioso, que considera a mudança do
paganismo ao cristianismo. E ainda, focando exclusivamente o desenvolvimento dos
institutos processuais, pode-se ter um Direito Romano processual segmentado em
três fases: legis actiones (ações da lei), per formulas (das fórmulas escritas) e a fase
cognitio extra ordinem (do juízo oficial unificado ou processo extraordinário). 43
As fases das legis actiones e per formulas constituem, juntas, o período da ordo judiciorum privatorum (ou ordem judiciária privada), e a fase da
cognitio extra ordinem representa a publicização do processo, que deu origem aos sistemas jurídicos contemporâneos.
Historicamente, o período arcaico do Direito Romano corresponde à
fase da legis actiones, que vai da fundação de Roma (ano 753 a.C.) até o século II a.C. Quanto ao período clássico do Direito Romano, tipifica a fase do processo per
nova execução de títulos judiciais: Lei 11.232/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 3. p. 53.
43 Cf. SIDOU, J. M. Othon. Processo Civil comparado: histórico e contemporâneo. Rio de Janeiro:
formula, que vai do século II a. C. ao século III d.C. Já o período da cognitio extra ordinem, que se iniciou no século III d.C., guarda relação com a fase da justiça pública, prevalecendo nos últimos séculos do Império e culminando com
Justiniano.44
A principal fonte que narra o desenvolvimento histórico do Direito
Romano são as Institutiones, escritas pelo jurisconsulto Gaio, provavelmente, entre os anos 138 e 161 d.C. e a obra Noites Áticas, de Aulo Gélio, datada do ano 175 d.C. 45
Para adequado entendimento do desenvolvimento da execução de
sentença, é mister a análise perfunctória de alguns marcos históricos da
organização jurídica romana.
A Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), elaborada no século V a.C., precisamente no ano 450 a.C., foi a primeira importante lei escrita romana.
Tal codificação teve como motivação levar o conhecimento do Direito às classes
inferiores, já que, até então, o conhecimento das leis se fazia privilégio da classe
patrícia.46
O texto legislativo foi preparado por uma comissão constituída por dez
membros, denominados decênviros. Curiosamente, a autenticidade da Lei chegou a ser contestada por alguns historiadores porque as tábuas nunca foram
encontradas.47
44 Cf. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; e DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 22 e 23; e cf. THEODORO JR., Humberto. O cumprimento da sentença e a garantia do devido processo legal. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2006. p.98.
45 Cf. SIDOU, op. cit., pp. 25 e 29.
O procedimento, no período da legis actiones, era desenvolvido por meio de gestos, símbolos e palavras abstratas. Daí a tarefa dos decênviros, a quem
cabia positivar por escrito as ações da lei. 48
Cinco as ações da lei: a sacramentum, a iudicis postulatio, a condictio, a manus injectio e a pignoris carpio, registrando que as três primeiras tinham natureza declaratória e constitutiva de direitos e as duas últimas, executivas. 49
Inicialmente, os litigantes recorriam ao magistrado, que representava o
Poder Público. Embora não tivesse a função de julgar, cabia ao magistrado (praetor) presidir a disputa judiciária e supervisionar o comportamento das partes. Caso
houvesse necessidade de instrução e julgamento, a causa era encaminhada ao
judex, o juiz privado. 50
Na Lei das XII Tábuas, portanto, no período das legis actiones, a execução recaía sobre a pessoa do devedor pelo sistema da manus injectio. Esta, a ação da lei que implicava a execução coercitiva. O procedimento executivo era
acentuadamente privado, pois cabia ao próprio credor levar o devedor, à força, à
presença do magistrado. E, em razão da sumariedade do rito, não havia previsão de
defesa para o executado.
A Lei das XII Tábuas, em sua Tábua Terceira, Leis IV a IX, dispõe:
IV – Aquele que confessa dívida perante o magistrado ou é condenado, terá 30 dias para pagar; V – Esgotados os 30 dias e não tendo pago, que seja agarrado e lavado à presença do magistrado; VI – Se não paga e ninguém se apresenta como fiador, que o devedor seja levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso até o máximo de 15 libras; ou menos, se
48 Cf. SIDOU, op.cit., p. 25. 49 Ibid., p. 25.
assim o quiser o credor; VII – O devedor preso viverá à sua custa, se quiser; se não quiser, o credor que o mantém preso dar-lhe-á por dia uma libra de pão ou mais, a seu critério; VIII - Se não há conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias; durante os quais será conduzido em três dias de feira ao comitium, onde se proclamará, em altas vozes, o valor da dívida; IX – Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre. 51
É possível verificar que o credor tinha total disponibilidade sobre o
corpo do devedor, podendo torná-lo escravo, matá-lo, e, se houvesse mais de um
credor, cada qual poderia reclamar parte do cadáver. O inadimplente era
considerado tão indigno que sua venda, como escravo, teria que ocorrer trans Tiberium, ou seja, em terras dos etruscos. 52
A ação da manus injectio se voltava diretamente contra a pessoa do devedor, e não contra os seus bens. Como efeitos, a morte civil do devedor, já que
era reduzido à condição de escravo, e a vacância dos bens do devedor. 53
Outra ação da lei que comportava execução era a pignoris carpio, forma executiva limitada a alguns casos de direito público ou sacro. 54 Tal
procedimento não visava dispor sobre a pessoa do devedor, mas sobre seu
patrimônio. O credor procedia, de mão própria, à apreensão dos bens do devedor,
em presença de três testemunhas, sem a participação do magistrado ou mesmo do
devedor. Após, constituía-se a penhora, a fim de coagir o devedor a cumprir a
51 MEIRA, Sílvio A. B. A Lei das XII Tábuas, fonte de direito público e privado. Rio de Janeiro:
Forense, 1972, pp. 149-170, apud AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 21.
52 Cf. THEODORO JR., op.cit., p. 103. 53 Ibid., p. 105.
obrigação. Entretanto, essa penhora não resultava em direito de alienação dos bens
apreendidos para o credor, assegurando-lhe apenas a retenção ao tempo em que o
devedor não efetuasse o adimplemento. 55
Como assevera Humberto Theodoro Jr., “a pignoris carpio, diversamente do que se passava com a manus injectio, não dependia jamais de uma sentença anterior. Representava puro e simples ato de defesa privada exercida pelo
credor para coagir, extrajudicialmente, o devedor a resgatar a dívida”.56
Pouco mais tarde, ainda que no período da legis actiones, houve o abrandamento das penas para o devedor inadimplente, com o início da
humanização do procedimento. Os novos costumes dispensaram o devedor da pena
de morte ou de ser vendido como escravo. Ao contrário, o devedor passou a ter a
alternativa de pagar a dívida com o fruto do seu trabalho. Além disso, por força da lei
Poetelia, que remonta ao ano 313 a.C., houve a proibição, para o credor, de acorrentar o devedor. 57
Não obstante, o sistema da manus injectio perdurou ainda no período
per formulas, que sucedia já durante o Direito Romano clássico.
O período per formulas era caracterizado pela exigência da utilização dos termos prescritos nos litígios. Outrossim, nesse período, cresceu a participação
do magistrado, que ganhou maior importância à medida que passou a exercer poder
de inspeção, apesar de ainda imperar a atividade privada.
Como ressalta Othon Sidou58, “a fórmula escrita nada mais terá sido do
que um modus lege agendi, não significando qualquer mudança essencial com
55 THEODORO JR., op.cit., p. 106. 56 Cf. THEODORO JR., op. cit., p. 107. 57 Ibid., p. 105.