Faculdade de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
Nilma Paula Combas da Silva
O Tempo da Religião no Espaço Escolar.
A História do Ensino Religioso no Colégio Santa Cruz.
Mestrado em Ciência da Religião
São Paulo
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC/SP Faculdade de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
Nilma Paula Combas da Silva
O Tempo da Religião no Espaço Escolar.
A História do Ensino Religioso no Colégio Santa Cruz.
Mestrado em Ciência da Religião
São Paulo 2017
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciência da Religião, sob a orientação do Prof. Dr. João Décio Passos.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC/SP Faculdade de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
Banca Examinadora
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“Ensinar é um exercício de imortalidade.
De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre jamais...”
Rubem Alves
In Memoriam
Essa é uma homenagem ao meu querido orientador Prof. Afonso Maria Ligorio Soares, a quem eu devo minha iniciação à Ciência da Religião, e o meu interesse e entusiasmo pelos estudos nessa área.
Conheci o Prof. Afonso em 2014, no Colégio Santa Cruz, eu era professora de Ensino Religioso e ele estava fazendo uma assessoria sobre o modelo da Ciência da Religião.
Ele era um professor que gostava do que fazia, portanto, fazia-nos, naturalmente, gostar também. Sua fala tranquila, e ao mesmo tempo cheia de energia e vibração, nos fazia ficar atentos e querendo saber mais. Foi assim que logo me vi fascinada por tudo aquilo, e não esperei para me inscrever no mestrado e ser orientada por ele.
Conversávamos muito sobre que caminhos eu poderia seguir, já que a minha proposta de trabalho, como ele dizia, “era um projeto de vida”, e por isso, teríamos que escolher um “pedaço” para pesquisar!
Com o seu jeito humilde, gentil, alegre e dinâmico, estava sempre a disposição dos alunos e sempre pronto a lançar algum desafio de reflexão, que nos deixava dias pensando. Não mais somente “naquilo”, mas em muitas outras coisas, sobre nós, sobre o mundo, sobre as relações e as não relações, e como tudo está conectado. Como um beija-flor que voa livre, “bebericando” em várias flores, só para provar diferentes sabores do mesmo néctar.
Ele era, e ainda é assim, referência na área da Ciência da Religião, do Ensino Religioso, da Teologia, das Ciências Humanas, superando todas as indiferenças e diferenças. Seu trabalho intelectual está registrado em seus muitos escritos, livros e artigos, prontos para serem lidos e apreendidos.
Da religião, da religiosidade, da espiritualidade, do sagrado, da fé, dos rituais, dos sacramentos, das festas, das palavras, dos cânticos, dos sincretismos, de tudo ele sabia. Nós não sabíamos, mas ele nos incitava a querer saber.
Ele era do axé, do amém, do namastê, da gratidão.
Obrigada por tudo! À meu mestre, com carinho!
O Melhor da Vida
“O que vale nessa vida Tem um pouco do seu jeito Jeito do seu corpo, jeito do seu pensamento Jeito de gostar dos outros cada vez gostando mais Do seu jeito de falar tranquilo Como quem promete e faz O que vale nessa vida é ver como você aproveita Desde a hora que levanta até a hora que deita Quando escolhe a coisa certa é tudo sem receita Quando perto de você a própria confusão se ajeita bem E me vem que a vida vale mil Mil vezes sou nós dois Mil meses de amor Antes de ter prorrogação Se a vida é por um fio Valeu pra quem já viu Seu jeito de tocar no coração E nas noites que o tempo para e você me abraça Sinto que o melhor da vida sempre vem de graça Sinto que o melhor momento é aquele que não quer passar E que dura toda a eternidade E isso é só pra começar O que vale nessa vida, vale como um bom presente Cai do céu, um bem que a gente sente Vem como você vem antes de eu me preparar E me diz: Vai ficar aqui, pois aqui é seu lugar E me vem que a vida vale mil Mil vezes sou nós dois Mil meses de amor Antes de ter prorrogação Se a vida é por um fio Valeu pra quem já viu Seu jeito de tocar no coração E me vem que a vida vale mil Mil vezes sou nós dois Mil meses de amor Antes de ter prorrogação Se a vida é por um fio Valeu pra quem já viu Seu jeito de tocar o coração”
Compositores: Luiz Augusto / Marcelo Jeneci
Dedicatória
“Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos, juntos desde a roupa às raízes, juntos de outono, de água, de quadris, até ser só tu, só eu juntos.”
Pablo Neruda
Dedico essa dissertação a você, Rogério Farias, meu namorado, meu companheiro, meu amigo, meu professor, meu amor!
Obrigada pelo apoio incondicional, por me ouvir em todos os momentos de dúvidas e incertezas, e por me dar forças para seguir em frente.
Obrigada pelas conversas, pelas leituras de todos os temas, pela procura, pelos achados, pelas reflexões e aprendizados.
Obrigada por me acompanhar nesse caminho, juntos.
Obrigada por todo o tempo dedicado, pela compreensão e paciência com as minhas ausências, pelas comidinhas e chazinhos, pelas louças lavadas (muitas, né?!!), pelo carinho, pelo incentivo, pelo entusiasmo, pelo acompanhar, pelo seu abraço, por suas palavras, pelo seu olhar e pela sua presença (incansável, acolhedora, tranquila, e cheia de luz!!).
Obrigada pelos seus "pitacos", adoráveis, nos meus escritos, que são como "pitadas de sal" que realçam meus pensamentos, meu agir, minhas palavras, minha vida...
Walter Benjamin disse: “Em um amor a maioria procura o eterno lar.
Outros, muito poucos, porém, o eterno viajar”. E, Vygotsky, que: “nós nos tornamos nós mesmos através dos outros”. Que felicidade a minha, poder fazer essa e outras tantas viagens com você, o meu lar! E, me tornar eu mesma através de você!
Obrigada por tudo! Essa conquista é nossa!
Este trabalho foi realizado com o apoio financeiro da Capes/Taxa e com o apoio da FUNDASP.
Agradecimentos
Ao meu pai, Arnaldo (in memoriam), que me traz muitas saudades, e a lembrança de alguém que me ensinou a viver com intensidade e paixão, a sonhar, a olhar tudo com as cores das artes e dos céus, com alegria e com muito bom humor (sempre!!!), que tinha doçura e era um grande amigo, sempre presente. “Parabéns hoje, felicidades sempre!”, é o que ele teria me dito hoje...
Repito a palavra “sempre” porque ele era assim, sempre estava lá! E, as lágrimas que escorrem são de tristeza por ele ter ido viver o mundo de sonho dele tão cedo, e de felicidade, por ter tido a oportunidade de encontrá-lo e tê-lo por perto nessa vida. Obrigada pelo seu amor!
À minha mãe Cirila, que com sua alma de artista, mãos talentosas e olhar para o outro, sempre foi exemplo de força, de luta, de amizade, de respeito, de compaixão, de trabalho, de perseverança e de criatividade. Que me apoiou e disse que eu seguisse os meus caminhos, com independência e autonomia, mas sempre com carinho, beleza e gentileza. Que bom encontrá-la e tê-la por perto nessa vida, para aprender, dar risada, conversar e beber uma cervejinha!
Obrigada pelo seu amor!
Ao meu irmão Petrus, por estar sempre por perto, me apoiando e sendo exemplo, de garra, de inteligência e de retidão. Pela sua amizade e pelo seu amor. Pessoa alegre, de bom humor, de bom coração e sorriso lindo. Amo você!
Às minhas cunhadas Inca e Lorena, à minha sogra Dona Bê, ao meu enteado Guilherme, aos meus sobrinhos Gael, Arthur e Murilo, minhas queridas e meus queridos, obrigada pelo apoio, pelo carinho, por compreenderem a minha ausência, de corpo, mas não de coração e pensamento. Vou abraçar todos vocês!
Ao Prof. Dr. João Décio Passos por me acolher num momento tão difícil para ambos, por me orientar com novos passos, e me “levar” para além mar em busca da história antes da história, e assim permitir que meu aprendizado se ampliasse e chegasse completo ao fim dessa história. Começo de muitas outras que virão. Obrigada pela confiança, pela oportunidade de parceria, pelo seu tempo e por sua atenção.
Ao Prof. Dr. Frank Usarski pelo apoio e busca de “estradas” que pudessem me manter na direção certa e continuar minha “viagem”. Acabei fazendo várias, e, agora, poderei continuar a escrever e viajar, muito mais.
Ao Prof. Dr. Ênio José Brito e ao Prof. Dr. Wagner Lopes Sanchez, por terem participado da minha Banca de Qualificação, indicando ajustes, compartilhando seus conhecimentos, suas ideias e sugestões, e por terem contribuído para o enriquecimento desse trabalho.
À Andreia Bisuli de Souza, Assistente de Coordenação, muito obrigada pela sua disponibilidade incansável, pela sua atenção, pelo seu cuidado e carinho, pela sua calma. Suas palavras de incentivo sempre me deram força e esperança de que tudo ia dar certo. E aqui estamos! Obrigada!
Aos professores do Departamento de Ciência da Religião, por suas aulas e ensinamentos, por possibilitarem o meu “mergulho” nesses estudos e compartilharem comigo suas experiências e todo o seu conhecimento.
Aos colegas de mestrado, pela amizade, pelas vivências e troca de experiências, pelos ensinamentos e força para seguirmos em frente, pela alegria e companheirismo nos momentos de estudo.
Ao Colégio Santa Cruz, em nome do Prof. Fábio Luiz Marinho Aidar Jr., Diretor Geral, pela gentileza de “abraçar” a ideia de ter o colégio como estudo de caso na minha dissertação, além de todo o apoio institucional para que eu pudesse realizá-la. Aos funcionários, e especialmente, Aildo Carlos Oliveira Santos (o “Pé de Pano”), Fredson Ribeiro de Sousa (o Fred), Mônica Barberini Ferreira, Neusa Toshico Nakamura, Fabiana de Moura Silva, Livia Fraga dos Santos, que acolheram meus pedidos com prontidão, carinho, alegria e colaboração. Ao Prof. Fábio Aidar pelo apoio irrestrito, ao Prof. Cláudio Rondello, ex-Coordenador da Pastoral, pelas conversas sobre Espirituladidade e práticas do Ensino Religioso e Ação Comunitária, à Profa Renata Cataldi Usarski, Coordenadora da Pastoral Social, por ter me apresentado ao Prof. Afonso Maria Ligorio Soares e pelas conversas sobre as mudanças no Ensino Religioso. Ao Padre José de Almeida Prado, Orientador Espiritual, pelas conversas sobre a história do Colégio e sua Educação Religiosa “moderna”. Ao Padre Lourenço, pelas conversas sobre o Marco Referencial da Educação Religiosa e o seu resgate. Ao Padre Roberto Grandmaison, pelas conversas sobre o Colégio Saint-Laurent, seus professores e livros, e sua amizade.
À Profa Sônia Maria B. C. Pereira Barretto, Diretora do Ensino Fundamental 1, Soninha, como a chamamos carinhosamente, meu agradecimento especial, pela confiança, pela alegria, pelo incentivo, pelo carinho e atenção, pela oportunidade de trabalho que me trouxe a possibilidade de voltar à academia para estudar, aprender, ingressar nesse mestrado e (re)conhecer novos caminhos, interessantes e fascinantes.
À Congregação de Santa Cruz, em nome do Irmão Nilto Neres de Oliveira, Superior Distrital no Brasil, pela atenção e acolhimento do meu interesse pela história da congregação, indicando lugares, pessoas e livros para a pesquisa.
Ao Colégio Notre Dame, de Campinas, em nome do Prof. Lorenço Jungklaus, Diretor Pedagógico, que me recebeu atenciosamente e disponibilizou
a biblioteca do colégio para que eu pudesse pesquisar;; de onde emprestei livros essenciais para o meu trabalho.
Ao Padre John De Riso C.S.C., Reitor do Santuário Padre Basile Moreau, em Le Mans, França, por ter me recebido, pela sua atenção e por ter compartilhado o seu precioso tempo. Me senti honrada.
Ao José Carlos Sant’Anna Aranha, ou Zé, corretor de textos do Ensino Médio no Colégio Santa Cruz, que dispôs do seu precioso tempo para ler e revisar o meu trabalho.
Aos colegas de trabalho e aos professores parceiros do Ensino Religioso que me incentivaram e estiveram do meu lado durante todo esse processo. Em especial à Profa Ana Silvia do Livramento Barreto, que me perguntava sempre como estava o andamento da minha pesquisa, se mostrando entusiasmada com minhas descobertas e curiosa para saber como se concluiria o meu trabalho. Em breve você poderá ler, e será muito bacana poder compartilhar com todos também!
Aos amigos queridos que souberam compreender minha ausência, em aniversários, encontros de finais de semana, almoços, cafezinhos... Estou ansiosa para revê-los! Me aguardem, estou chegando!
“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar.”
Manoel de Barros
“Seja a mudança que você deseja ver no mundo”.
Mahatma Gandhi
Resumo
A dissertação apresenta uma pesquisa sobre o histórico do Ensino Religioso/Educação Religiosa do Colégio Santa Cruz, católico, particular e pluralista, localizado no Alto de Pinheiros em São Paulo, como estudo de caso.
Colégio esse mantido pela Congregação de Santa Cruz, que teve sua origem na França, e foi fundado por padres da Congregação estabelecida no Canadá.
Com esse objetivo, faz-se um levantamento de documentos históricos e bibliografia sobre o tema, para investigar o processo de desenvolvimento da disciplina de Ensino Religioso. Passando pela fundação da Congregação, o seu fundador e o contexto histórico que isso acontece, a chegada dos padres canadenses no Brasil e a fundação do Colégio. Há uma contextualização também do Ensino Religioso mais amplo no Brasil e como se deu no Colégio.
Há a sugestão de Fases desse Ensino Religioso, e a descrição do Modelo atual, que se baseia epistemologicamente na Ciência da Religião. Como deu-se a origem e as diretrizes de encaminhamento do mesmo. Que vai de encontro com a filosofia humanista e pluralista que o Colégio segue desde sua fundação.
Para que haja a formação integral do ser humano.
Palavras-chave: Ensino Religioso, Educação, Ciência, Religião, Congregação.
E-mail para contato: nilmapaula@gmail.com
Abstract
The dissertation presents a research on the history of Religious Education of the Santa Cruz College, catholic, private and pluralist, located in Alto de Pinheiros in São Paulo, as a case study. This College was maintained by the Congregation of the Holy Cross, which originated in France, and was founded by priests of the Congregation established in Canada.
With this aim, a survey of historical documents and bibliography on the subject is done, to investigate the process of development of the discipline of Religious Education. Passing on the foundation of the Congregation, its founder and the historical context that this happens, the arrival of the Canadian priests in Brazil and the foundation of the College. There is also a contextualization of the wider Religious Education in Brazil and as it happened in the College.
There is the suggestion of Phases of this Religious Education, and the description of the current Model, which is epistemologically based on the Science of Religion. How was the origin and the routing guidelines of the same. That goes against the humanist and pluralist philosophy that the College has followed since its foundation. So that there is the integral formation of the human being.
Key-words: Religious Education, Education, Science, Religion, Congregation.
Contact: nilmapaula@gmail.com
Sumário
Resumo 14
Abstract 15
Introdução 18
Capítulo I. História do Colégio Santa Cruz 23
1. Origem da Congregação de Santa Cruz 23
1.1. O fundador da Congregação de Santa Cruz: Beato Basile Antoine Marie Moreau (1799 – 1873) 30
2. O Carisma da Congregação de Santa Cruz 40
3. A "Educação Cristã", na visão do Padre Basile Moreau 44
4. Os Valores de Missão das Escolas de Santa Cruz 48
5. Chegada ao Brasil 50
6. O Colégio Santa Cruz 52
Capítulo II. O Ensino Religioso no Colégio Santa Cruz: aspectos históricos 60
1. O Ensino Religioso no Brasil e no Colégio Santa Cruz 60
1.1. Os Modelos de Ensino Religioso: na Constituição, em Pesquisas Teóricas e no Colégio Santa Cruz 70
2. Projeto Educacional do Colégio Santa Cruz: linhas básicas 73
3. O Ensino Religioso do Colégio Santa Cruz a partir dos Planos Diretores 83
3.1. Os Planos Diretores 83
3.2. Fases da Educação Religiosa do Colégio Santa Cruz 83
Capítulo III. O Modelo atual de Ensino Religioso do Colégio Santa Cruz 104
1. O Marco Referencial da Educação Religiosa no Curso de 1o Grau do Colégio Santa Cruz 104
2. O Modelo atual 111
2.1. Origem 111
2.2. Documento do Ensino Religioso do Colégio Santa Cruz 115
3. A Ciência da Religião como matriz 125
4. Um confronto representativo 131
Considerações Finais 140
Bibliografia 143
ANEXOS 148
ANEXO 1 – PLANOS DIRETORES DO COLÉGIO SANTA CRUZ 149
ANEXO 2 – DOCUMENTO: O MARCO REFERENCIAL DA EDUCAÇÃO RELIGIOSA NO CURSO DE 1O GRAU DO COLÉGIO SANTA CRUZ 162
ANEXO 3 – LIVROS DO PADRE CHARBONNEAU: UMA ILUSTRAÇÃO 195
Introdução
Desde a colonização do Brasil, em 1500, ensina-se sobre religião, inicialmente, com a intenção de catequisar, para uma educação cristã católica.
Religião que desembarcou com os portugueses.
No decorrer dos anos, a educação passa para o Estado, que define o Ensino Religioso, chamado assim até hoje, como o ensino da religião católica, disciplinador e evangelizador dos índios, escravos, e do povo em geral. Mas como no dia a dia o Ensino Religioso era mais de caráter doméstico do que institucional, em que cada família era responsável por ensinar a sua religião, houve uma separação entre educação e religião.
No país, muitas discussões foram levantadas sobre essa questão. Num momento, em 1824, Rui Barbosa, jurista, político e escritor, diz que nas escolas não se poderia impor uma crença. Na chegada da República, em 1889, as chamadas tendências secularizantes, ou seja, o processo de mudança de um Estado baseado nas religiões (nesse caso, a Católica) para um Estado laico, separado do “mundo religioso” e mais próximo do Direito Civil, ajudam na defesa de uma escola leiga, gratuita, obrigatória e pública. Em 1934, admite-se o Ensino Religioso como disciplina nas escolas públicas, mas de caráter facultativo e de acordo com a crença do aluno.
Dessa maneira, inicia-se um processo de busca por um objeto do Ensino Religioso, ou seja, de uma identidade. Pois não havia clareza quanto ao seu papel no âmbito escolar.
Desde 1974, Encontros Nacionais de Ensino Religioso (ENER) têm sido realizados para reflexões sobre esse papel. Além de se pensar nos conteúdos disciplinares específicos, no como ensinar e quem estaria habilitado a ensinar.
As ideias sobre pluralismo, diversidade, construção de uma sociedade justa e democrática através de aprendizados que estimulem a atuação transformadora dos cidadãos, estão sempre presentes. Juntamente com a compreensão do fenômeno religioso e o conhecimento de manifestações em diferentes denominações religiosas.
Em 1995, persistentes neste ideal, os participantes da 29a Assembleia Ordinária do Conselho de Igrejas para o Ensino Religioso – CIER, que no ato comemorava seus 25 anos de experiência ecumênica, mais entidades religiosas e educacionais, professores e pesquisadores presentes, propõem a instalação do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso – FONAPER.
Joana Zylberstajn (2012), em sua tese de doutorado “O Princípio da Laicidade na Constituição Federal de 1988”, diz que é usual ouvirmos que o Brasil é um Estado laico: imprensa, círculos acadêmicos, políticos, movimentos sociais, todos afirmam que o país é laico. Essa declaração, no entanto, não está explícita na Constituição Federal de 1988.
O debate sobre o Ensino Religioso talvez seja o mais amplo dentro da discussão sobre a laicidade e a relação entre o Estado e Igreja.
Mauro Passos (2013, p. 628) diz que "a ação formadora da educação e da religião tem uma dimensão de totalidade, pois abarca as diversas dimensões do ser humano: física, intelectual, moral, simbólica, cultural". E diz, historicamente, que a religião é um elemento que sempre desempenhou um papel significativo na formação da população brasileira. Então, pergunta-se Passos, como falar de educação sem levar em conta o papel das diversas tradições religiosas? Como situar a história da educação brasileira sem contemplar o trabalho das congregações religiosas, por exemplo?
Hoje em dia, a importância de pensar e refletir sobre essa disciplina dentro das escolas é ainda maior. O seu percurso sempre foi bem conturbado e repleto de divergências, tanto no aspecto pedagógico-educacional, como no político-
constitucional. Essa é uma questão complexa que necessita de mais estudos, investigações e debates.
Assim, para pesquisar, discutir e refletir sobre o Ensino Religioso, esse trabalho terá o Colégio Santa Cruz como seu estudo de caso. Um colégio católico, privado e pluralista, que foi fundado em 1952 por padres canadenses da Congregação de Santa Cruz, que é a sua mantenedora. Essa Congregação é francesa, e foi fundada em Le Mans pelo Beato Basile Moreau. Está localizado no Alto de Pinheiros, em São Paulo.
E, para tanto, fará um percurso na sua história. Desde a Educação Religiosa realizada pelos padres na época de sua fundação, até o Ensino Religioso dos dias de hoje, para entender os fatos que levaram a Ciência da Religião a compor sua base epistemológica e os processos que o levaram a esse modelo. Além da motivação da autora em conhecer esse percurso, dada sua vivência como professora de Ensino Religioso do Colégio em questão.
O referencial teórico para essa pesquisa será constituído, inicialmente, por autores que discutem e analisam as questões referentes a utilidade direta do campo da Ciência da Religião, e refletem sobre esse tema dentro de uma área específica, a Ciência da Religião Aplicada, expressão conceitual utilizada no Compêndio de Ciência da Religião (SOARES, PASSOS e USARSK, 2013). Ou, como prefere TWORUSCHKA (2013, p. 573), Ciência Prática da Religião, que para ele
vai além da percepção, descrição e análise das ações dos atores sociais. Ela se interessa pelas reais possibilidades de contribuir socialmente em vista da paz, da humanização e da mediação de conflitos culturais-religiosos, o que implica desistir de uma disposição catedrática, de transferência "neutra" de conhecimento de cima para baixo, para investir fundo na vida cotidiana e seus problemas.
Com o Compêndio de Ciência da Religião, SOARES (2013) lança um desafio sobre pensar a Ciência da Religião "Aplicada" partindo dos resultados sociais que se esperam dela, já que se trata da área mais recente dessa Ciência.
Ele fala também sobre a mais conhecida, e talvez mais evidente, aplicação da Ciência da Religião, o ensino religioso.
Para tanto, SOARES (2013, p. 574), escreve sobre essa relação entre educação e estudos de religião, dizendo que:
nesse sentido, o que geralmente é denominado de ensino religioso é, na verdade, a transposição didática, ou melhor, a aplicação para o cotidiano da sala de aula dos resultados dessa Ciência, possibilitando aos estudantes da educação básica a compreensão da(s) cultura(s) das diferentes comunidades que formam determinado país/nação.
Além dos autores citados, outros estudaram e pensaram na perspectiva da Ciência Prática da Religião, segundo TWORUSCHKA (2013, p. 580), MENSCHING (1901-1978), “que pleiteava tolerância desde os anos 1920”, ELIADE (1907-1986), “que queria “despertar” seus leitores, levá-los a um
“choque espiritual”, abrir e alterar, assim, os horizontes da compreensão de seus receptores”, que eram considerados como “fenomenologistas da religião”,
“portanto desatualizados coveiros da Ciência da Religião”;; e SMITH (1916-
2000), que achava que “a Ciência da Religião pode desempenhar um papel educacional eminente em diálogo e, portanto, tem uma tarefa prática: educar os estudantes que podem realizar o papel de intermediários e intérpretes entre duas tradições religiosas. Isso vale, até mesmo, para as instituições onde a Ciência da Religião é lecionada”.
TWORUSCHKA (2013, p. 579), diz que o termo Ciência Prática da Religião
"se refere a um modelo de Ciência da Religião ilimitado, inter e transdisciplinar, que incentiva e promove uma ação orientada, crítica, comunicativa, político-
social da Ciência da Religião". Ou seja, que olha para o que está acontecendo, e se preocupa em gerar conhecimento útil e utilizável. A teoria que será seguida por esse trabalho.
Dessa forma, mostra-se como uma área nova (ainda) e que está aberta.
No Compêndio há uma proposta de sistematização de alguns consensos teórico-
metodológicos para unificar e indicar um caminho comum. Mas, deixa também a possibilidade para sugestões, descobertas e transposições dos esforços acadêmicos e, vice-versa, da aplicação, da prática, para a academia.
A pesquisa foi realizada segundo o método histórico-documental, por meio de documentos, registros históricos, relatos, sites e visitas a instituições e lugares relevantes ao tema. Ou seja, documental (fontes primárias) e bibliográfica (fontes secundárias), basicamente. Também houve pesquisa de campo incluindo observações, análises e interpretações de fatos e fenômenos
ocorridos no Colégio em relação ao tema estudado, além da participação na criação do documento do Ensino Religioso vigente e a presença em reuniões da área.
Registros de memórias, "livros" não oficiais e, os Planos Diretores (documentos em que constam o Projeto Educacional, a "Palavra do Diretor", mudanças e diretrizes anuais do Colégio) foram lidos e, os pontos de interesse, selecionados, descritos, sistematizados e analisados.
A Congregação de Santa Cruz tem 180 anos. No Canadá, de onde vieram os padres que fundaram o Colégio no Brasil, 170 anos, no Brasil tem 69 anos e o Colégio completou, em 2017, 65 anos de fundação. Um longo período de tempo e de história.
Para tanto, no Capítulo I, encontramos uma descrição sobre o contexto em que acontece a origem da Congregação de Santa Cruz na França, depois como a mesma se estabeleceu no Canadá e, por fim, como chegou ao Brasil e fundou-
se o Colégio Santa Cruz.
No Capítulo II, o objeto da pesquisa, o Ensino Religioso no Colégio Santa Cruz é apresentado. Primeiramente, um panorama geral de como essa disciplina vem se mostrando no Brasil, depois, o percurso dessa área no Colégio, desde sua fundação até os dias atuais. Incluindo a descrição do Projeto Educacional do Colégio e suas bases pedagógico-educacionais.
E, no Capítulo III, o Modelo atual de Ensino Religioso do Colégio Santa Cruz é descrito;; desde sua origem, passando pelo Marco Referencial da Educação Religiosa no Curso de 1o Grau, seu Documento e as práticas e atividades desenvolvidas hoje, tendo como base a Ciência da Religião.
Capítulo I
História do Colégio Santa Cruz
1. Origem da Congregação de Santa Cruz
A Congregação de Santa Cruz, abreviadamente C.S.C. (da sigla do latim Congregatio Sancta Cruce), é uma Congregação religiosa católica de direito pontifício, que congrega padres, irmãos e irmãs. Sua origem deu-se, em primeira instância, com a união da sociedade de padres auxiliares diocesanos de Le Mans (capital do departamento de Sarthe, na região do Pays de la Loire, França) com o Instituto dos Irmãos de São José, grupo de rapazes reunidos pelo Pe. Jacques-
François Dujarié (1767-1838), vindos de Ruillé-sur-Loire, cidadezinha situada a uns quarenta quilômetros de Le Mans, em 1o de março de 1837, mediante o que se convencionou chamar de “Ato Fundamental”. Depois, em 1838, uniram-se a um grupo de irmãs. E em 1841, o Beato Basile Antoine Marie Moreau (1799-
1873) funda a família religiosa de Santa Cruz. Mas, somente em 1857, foi aprovada formalmente pela Santa Sé.
O grupo das irmãs, as “Marianitas”, juntaram-se a eles, mas Roma não aceita que mulheres se juntem a um instituto de homens. Assim, foram aceitas oficialmente como parte da Congregação apenas em 1867, o que não atrapalhou o trabalho entre eles - padres, irmãos e irmãs - durante todos esses anos.
Formando, enfim, a Família de Santa Cruz, a que o Padre Basile Moreau tanto queria como representação da Sagrada Família (Jesus, Maria e José).
Mas, naquela época, após a Revolução Francesa (1789-1799), que lutava contra o Regime Absolutista1 da monarquia, a Igreja havia sido tomada, padres tinham sido expulsos e executados. E assim, muitas escolas estavam fechadas e uma geração inteira estava crescendo com pouca ou nenhuma educação formal, já que muitas eram mantidas pela Igreja Católica. Muito menos nos assuntos de fé, já que a partir daquele momento um governo laico2 se fazia presente.
No Antigo Regime3, a sociedade francesa era dividida em três estados: o primeiro, formado pelo Alto Clero Católico (cardeais, arcebispos, bispos e sacerdotes de famílias ricas);; o segundo, pela Nobreza (família real e nobreza);;
e o terceiro, pela Burguesia (trabalhadores urbanos e camponeses) e Baixo Clero Católico (sacerdotes e diáconos) (SOBOUL, 1979). Apenas os dois primeiros estados tinham privilégios. Assim, o terceiro (insatisfeito) promove a Revolução.
A filosofia do século XVIII ensinou os franceses a considerarem vil sua condição, ou em todo caso injusta e ilógica, e os fez indisporem-
se com a resignação paciente que por tanto tempo caracterizara seus ancestrais. [...] A propaganda dos philosophes (iluministas), mais do que qualquer outro fator talvez, contribuiu para cumprir-se a condição preliminar da Revolução Francesa, ou seja, a insatisfação com a situação vigente (PEYRE, 2002, p. 324).
1 Nesse Regime, o rei concentrava em suas mãos os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Desse modo, suas decisões dificilmente encontravam limites para serem aplicadas. As vontades particulares do monarca, muitas vezes motivadas por intrigas e caprichos pessoais, tornavam-
se, na maior parte das vezes, orientações para o próprio Estado francês. (ALVES & OLIVEIRA, 2010, p. 157).
2 Laico é um adjetivo que significa uma atitude que demonstra a separação da religião da vida política, pública. Que não sofre influência ou controle por parte da igreja (ou da religião).
Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/laico. Acesso em: 01 de novembro de 2017.
3 Esse Regime, também conhecido como Ancien Regime, pelos franceses, dava o poder divino e sagrado ao rei, que só devia obediência a Deus. O clero católico regulava a vida dos franceses.
Os registros de nascimento, casamento e morte;; o recolhimento de tributos e dízimos;; a administração de escolas e hospitais e a censura de livros considerados imorais ou subversivos eram algumas das atividades controladas pela Igreja. Além disso, ela desfrutava de privilégios concedidos pela monarquia, como a isenção de alguns impostos. (ALVES & OLIVEIRA, 2010, p.
168).
A Revolução, nesse contexto, despertou uma onda anticlerical4, atacando os privilégios e as prerrogativas tradicionais da Igreja. (ALVES & OLIVEIRA, 2010, p. 168).
O Reverendo Dujarié foi ordenado durante a Revolução, em segredo, por causa da situação. Em 19 de dezembro de 1795 recebeu o subdiaconato, no dia seguinte, o diaconato, e no dia 26, o presbiterato. E depois, ainda nesse período, enviou os jovens instruídos por ele para paróquias rurais para lecionarem. Estes jovens tornaram-se os Irmãos de São José.
Os camponeses foram os mais atingidos, porque eles se sentiram abandonados por aqueles que faziam a Revolução, e porque eram católicos fervorosos. Assim, quando os revolucionários começaram a expulsar os padres que não juravam fidelidade à Constituição da República, foi a gota d'água.
Uma das medidas tomadas pela Assembleia Constituinte foi a aprovação, em 1790, da Constituição Civil do Clero. O documento reorganizava a relação da Igreja com o Estado francês. A cobrança do dízimo foi suprimida e os bens do clero foram confiscados. Muitas igrejas foram transformadas em granjas, estábulos, peixarias ou salas de reuniões para clubes revolucionários. Propriedades eclesiásticas foram vendidas e os padres foram proibidos de usar suas indumentárias eclesiásticas. O celibato clerical deixou de ser obrigatório.
Os padres tornaram-se funcionários públicos. Por esse motivo, deviam prestar juramento de fidelidade, comprometendo-se a cumprir a lei e servir à nação. O papado e o alto clero opuseram-se a essas mudanças e orientaram os padres a não prestar o juramento e continuar oficiando clandestinamente. Mesmo assim, cerca de 50% do clero aderiu ao juramento, provocando um cisma na Igreja. O Estado francês e o papado só se reaproximariam em 1801. (ALVES &
OLIVEIRA, 2010, p. 168).
4 Relativo àquele que combate a interferência do clero na sociedade, defendendo a influência predominante do poder civil sobre o Estado e as instituições sociais. (ALVES & OLIVEIRA, 2010, p. 168).
A Constituição Civil do Clero (1790), uma mal concebida tentativa de destruir não a Igreja, mas a lealdade romana absolutista da Igreja, levou a maioria do clero e de seus fiéis à oposição, e ajudou a levar o rei à desesperada e, por fim, suicida tentativa de fugir do país.
(HOBSBAWM, 1996, p. 32)
A Igreja era muito importante nas zonas rurais, tinham um papel de assistência social.
Em 1791, a Assembleia Nacional declara a Constituição Francesa em que
“a lei não reconhece os votos religiosos, nem qualquer outro compromisso que seja contrário aos direitos naturais, ou à Constituição”5.
E o povo sentiu-se desamparado e abandonado quando o Estado e a Igreja “quebraram”. O que resultou na Revolta da Vendéia, em que camponeses estavam dispostos a lutar em nome de Deus e a favor de "seus" padres e paróquias (Igreja Católica). A Vendéia localiza-se na região do Pays de la Loire, a oeste da França.
Alguns historiadores, hoje, e o governo Republicano, na época, acham que essa luta era atrasada e retrógrada. Mas, Alain Gérard, diretor do Centro Vendeano de Pesquisas Históricas6, não concorda:
Embora se colocassem a favor do sistema monárquico, os camponeses não estavam simplesmente defendendo a velha ordem das coisas. Eles lutavam pelos mesmos valores que os revolucionários:
igualdade, liberdade e fraternidade. O fato é que a Revolução havia se mostrado infiel a esses princípios, deixando de lado as aspirações da população rural e dando mostras de autoritarismo e brutalidade. Em vez de se manterem ao lado de uma revolução que os havia decepcionado, os camponeses resolveram lutar contra ela.
E assim, o governo se volta contra a Vendéia, e anuncia um combate para destruí-la. Mais de 250 mil moradores dessa região morreram. Tornando esse,
5Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/const91.pdf. Acesso em: 01 de novembro de 2017.
6Disponível em: http://www.histoire-vendee.com/. Acesso em 16 de novembro de 2016.
um dos maiores massacres da história contemporânea, afirma José Francisco Botelho7, descrevendo-a assim:
Em setembro de 1793, um novo exército republicano atacou com fúria a província rebelde. A Vendéia inteira mobilizou-se numa resistência desesperada: agora, o lema dos camponeses era “Vencer ou Morrer”. No dia 17 de outubro, ao norte da cidade de Cholet, os vendeanos tentaram deter a marcha inimiga. Contavam, ainda, com grande superioridade numérica: havia em torno de 40 mil rebeldes contra 20 mil republicanos. Dessa vez, no entanto, o exército revolucionário tinha a liderança de Jean-Baptiste Kléber, um dos melhores generais franceses da época. Envolvidos pelos regimentos republicanos, os rebeldes debandaram em massa para o rio Loire, deixando atrás de si uma trilha de mortos. Algumas semanas depois, os sobreviventes foram encurralados na aldeia de Le Mans, do outro lado do Loire. Sob uma noite de tempestade, durante 14 horas seguidas, os dois exércitos enfrentaram-se em uma das batalhas mais medonhas da guerra. Cerca de 10 mil vendeanos morreram – e os que conseguiram escapar seriam destroçados pouco depois, perto da vila de Savonay.
Todas essas cidades, vilas e departamento estavam localizados numa mesma região, a do Pays de la Loire. Mesma região em que os Irmãos de São José, os Padres Auxiliares e a Congregação de Santa Cruz se formaram. Essa região ficou marcada pela resistência à Constituição Civil do Clero e o juramento a que os padres tinham que fazer (VOVELLE, 1986). A Revolução estava destruindo o senso de comunidade e solidariedade que havia entre as famílias e os religiosos que as apoiavam e se preocupavam com a zona rural.
Em 1800, Napoleão Bonaparte assina um tratado de paz com os vendeanos. Entretanto, nunca foi completamente aceito pelos moradores da província, já que ele tinha sido um colaborador do Regime Republicano. Em 1801, reaproxima o Estado francês da Igreja Católica, com a assinatura de uma concordata com o Papa Pio VII. No documento estava que o catolicismo seria a religião da maioria dos franceses, mas não a oficial, e restituía antigos direitos
7Disponível em: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/guerras/vendeia-a-antirrevolucao-
francesa.phtml#.WevGLYfbzM0. Acesso em 21 de outubro de 2017.
do clero. Mas, as propriedades confiscadas em 1790, não seriam devolvidas nem indenizadas (ALVES & OLIVEIRA, 2010). E em 1804, coroa-se imperador da França, na Catedral de Notre Dame em Paris, com o Papa como mero expectador, mostrando total independência da Igreja Católica.
Então, em 1815, a Vendéia rebela-se novamente contra o governo, o que aconteceu simultaneamente ao ataque das tropas anti-napoleônicas (ingleses, austríacos, prussianos), levando as tropas francesas a se dividirem em dois flancos, um interno e outro externo. Os vendeanos são novamente derrotados.
Só que, desta vez, acabaram "colaborando", consequentemente, com a queda de Bonaparte, na Batalha de Waterloo.
Essas revoltas acabam firmando uma diferença, quase marcante, entre o urbano e o rural. Este último, já apresentava ter mais necessidades antes, estando "fora" dos acontecimentos das áreas centrais e, depois, essa situação piora com a perda de seus colaboradores, os padres, e com a morte de tantas pessoas. Por isso, o Reverendo Dujarié, que foi ordenado padre (secretamente) durante a Revolução Francesa, volta o seu olhar para o campo e envia os irmãos em missão para estas regiões.
O sistema educacional francês, administrado quase inteiramente pela Igreja antes da Revolução, incluindo 321 escolas na única Diocese de Le Mans, havia sido virtualmente destruído quando Napoleão assumiu o poder. Embora a perseguição à Igreja tenha diminuído enquanto Moreau crescia, os ressentimentos eram mantidos sob a superfície e ocasionalmente voltavam a se manifestar. (KING, 2015, p.
3)
Com idade avançada e doente, em 31 de agosto de 1835, o Padre Dujarié passa a liderança dos Irmãos de São José, instituição destinada à formação cristã da juventude, a um jovem e dinâmico padre chamado Basílio Antoine Marie Moreau, a quem conheceu e com quem simpatizou durante os retiros dos Irmãos, e que já havia formado uma associação de padres, a dos Padres Auxiliares, destinada também à pregação e à educação, dizendo:
Senhor Pe. Moreau, rogo-lhe aceite conduzir a pequena congregação dos Irmãos de São José à qual acabo de renunciar por causa das minhas enfermidades, que me impedem dela cuidar, bem como prepará-la para o futuro, coloco-a toda inteira em suas mãos;; eu lha confio na certeza de que o senhor lhes será um pai e um protetor.
Sim, confio-lhe os meus filhos, aceite-os como aquilo que tenho de mais precioso e como um patrimônio cujas contas o senhor deverá prestar ao príncipe dos Pastores. Quero que doravante eles o vejam como a que lhe devem como o seu superior. (BERGERON, 1999, p.
106-107)
Os Padres Auxiliares, colegas de Moreau e sacerdotes em Le Mans, foram seus assistentes na diocese, pregando em missões paroquiais e instruindo jovens em seminários e faculdades. Para ele, esses homens eram vistos como educadores, em primeiro lugar. Moreau pensava que a vocação de um professor era um chamado especial de Deus tão importante quanto o chamado à vida religiosa (BERGERON, 1998).
Figura 1: Símbolo da Congregação de Santa Cruz8.
Fonte: http://www.congregacaodesantacruz.org.br/img/Image/cruz.jpg. Acesso em: 09 de novembro de 2017.
8 Símbolo da Congregação de Santa Cruz. “As âncoras simbolizam a fixação do Amor Infinito no lenho da Cruz. Do lenho da cruz acredita-se brotar vida nova pelo fato da Ressurreição. A cruz é o feito do Amor infinito de Deus. Uma das âncoras é a fé do religioso no Mistério Pascal. A outra marca sua esperança na vitória do amor sobre o ódio. A cruz simboliza também a vulnerabilidade do próprio amor. Quem mais ama é sempre o mais vulnerável. Foi o Amor infinito que deixou Jesus ser pregado na cruz. Se não fosse a nossa fé no poder do amor, a cruz seria um absurdo ou uma loucura” (cf. 1 Cor 1,18.23).
Disponível em: http://www.congregacaodesantacruz.org.br/site/pasta_211_0__nosso-
simbolo.html. Acesso em: 09 de novembro de 2017.
1.1. O fundador da Congregação de Santa Cruz: Beato Basile Antoine Marie Moreau (1799 – 1873)
Figura 2: Padre Basile Antoine Marie Moreau9.
Fonte: http://www.holycrosscongregation.org/assets/243564/fullsize/2017_moreau_anniversary_logo_portuguese.png. Acesso em: 08 de novembro de 2017.
Basile Antoine Moreau, nasceu em Laigné-en-Belin, departamento de Sarthe, região do Pays de la Loire, uma pequena aldeia situada a cerca de 14 km a sudeste de Le Mans, em 11 de fevereiro de 1799.
Ele foi o oitavo filho dos catorze que seus pais Louis e Louise Moreau, pessoas simples e católicos fervorosos, provavelmente analfabetos, tiveram. Foi registrado, segundo o calendário da Revolução Francesa, em “24 de pluvioso do Ano VII” (BERGERON, 1998). A família não tinha muitos recursos financeiros;;
eles viviam da criação de alguns animais e de uma pequena adega. Mas, proporcionaram-lhe uma educação cristã e, clandestinamente, asseguraram-se de trazer um sacerdote que havia se recusado a prestar o juramento de lealdade ao Estado para batizá-lo (KING, 2015).
9 Logo oficial de aniversário da beatificação do Padre Basile Moreau.
A mãe, cristã fervorosa, já acostumava as crianças à oração em família.
E, mesmo depois da época da Revolução, em que foram privados da presença de um padre, ela faz dessas orações uma liturgia da família Moreau.
Aos dez anos, Basile Moreau recebe a primeira eucaristia. E logo passa a ajudar o vigário nas missas e a dizer que se tornaria um sacerdote como ele, o Padre Julien Le Provot, que exerceu o ministério clandestinamente durante a Revolução. E, que depois, convocaria a senhorita Dufay de Boismont para cuidar das meninas.
Segundo BERGERON (1998), em 23 de abril de 1823, Padre Moreau lembrando da admiração que sentia pelos “professores” Padre Julien e senhorita Dufay, tão presentes em sua vida quando criança, e o que essas “almas de elite”
fizeram por ele, disse: “É meu pai, é minha mãe: eu sou filho deles em Jesus Cristo. Como eles educaram a nossa infância e instruíram a nossa juventude!
Que lições, que conselhos salutares, que consolações não recebemos da caridade deles!”
E logo, o vigário percebeu que Basile era diferente dos outros jovens, e se prontificou a levar adiante a sua educação. Ofereceu-lhe um curso de latim na casa paroquial e, em outubro de 1814, proporcionou-lhe a ida para o Colégio de Château-Gontier, situado a uns 80 km de Laigné-en-Belin, percurso que fez a pé na companhia de seu pai.
Lá foi acolhido pelo superior Padre Basile Horeau, que tinha estado preso durante dois anos, e pelo vice-superior Padre Jean Fillion, o qual escolhe como seu diretor espiritual, e a quem vai depositar sua confiança mesmo depois de deixar o Colégio, mantendo-o como confidente e amigo durante 40 anos.
Após três anos de estudos, no outono de 1817, vai para o Seminário Maior do Mans, em Le Mans, próximo de sua cidade natal. Lugar em que passaria seus próximos quatro anos se preparando para sua ordenação como padre.
E, passado esse período, com vinte e dois anos de idade, em 1821 é ordenado sacerdote, com o consentimento do seu diretor espiritual. Resume, assim, as obrigações com as quais se compromete:
Votos que eu faço antes do subdiaconato:
1. voto perpétuo de castidade;;
2. de obediência, isto é, de não solicitar posto algum e de tudo aceitar;;
3. de pobreza, isto é, de não acumular riqueza, de vestir-me somente com tecido comum e ordinário, jamais a seda;;
4. de jejuar todas as sextas-feiras e de só beber água às refeições enquanto eu estiver no seminário, para que não haja constrangimento durante as férias.
O primeiro motivo dessa mortificação é o de fazer penitência pelos meus pecados;; o segundo, o de conseguir cada vez mais o amor de Jesus Cristo (BERGERON, 1998, p. 14).
Esses votos só comprovam sua vontade de se aproximar cada vez mais de Jesus Cristo e de seu modo de vida. Sua ordenação acontece em sua cidade natal, na Capela da Visitação, na orla da Place de la Chanterie (hoje Place de la République), onde exerce funções paroquiais por dois meses, e, logo antes de voltar aos estudos, pede a seu bispo licença para ingressar no Seminário das Missões Estrangeiras de Paris, pois para ele era importante levar essa fé em Jesus para todos os lugares. Mas, como colégios religiosos começavam a ser reabertos ao lado dos novos colégios seculares10 e havia falta de padres (durante o período revolucionário, dois terços dos padres tinham desaparecido e, nas guerras do Império, foram dizimadas as faixas etárias que teriam sido as dos seminaristas11), o seu superior já havia decidido que ele seria muito mais útil formando novos padres. Por isso, o enviou para o Seminário de Saint-Sulpice, para completar sua formação com os sulpicianos em Paris e Issy.
10 Ou laicos, como já citado, que não apoia e nem se opõe a nenhuma religião.
11 Publicação com o título: “O bem-aventurado Basile Moreau: Fundador da Congregação de Santa Cruz”, preparada para celebrar a beatificação do Padre Basile Moreau, a 15 de setembro de 2007, Le Mans, França. Pela Biblioteca e Arquivos Nacionais de Québec e Biblioteca e Arquivos do Canadá, Edições Fides, 2007. A qual será identificada no corpo do texto somente pela data: 2007.