MÁRCIA REGINA TAKEUCHI
ANÁLISE MATERIAL DE LIVROS DIDÁTICOS PARA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo
MÁRCIA REGINA TAKEUCHI
ANÁLISE MATERIAL DE LIVROS DIDÁTICOS PARA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: História, Política, Sociedade sob orientação do Prof. Dr. Kazumi Munakata.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
______________________________________________
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a materialidade dos livros didáticos
destinados a estudantes da modalidade de ensino denominada educação de jovens e adultos.
Buscou-se identificar os títulos existentes no mercado editorial e, dada a constatação
de sua escassez entre as maiores Editoras do país, procurou-se investigar as razões dessa
limitação diante da profusão de livros didáticos endereçados a estudantes do ensino regular.
A análise que se segue confronta os dispositivos editoriais desse material de
educação de jovens e adultos em relação aos livros didáticos de maior importância do ponto
de vista comercial — o número de páginas, os elementos gráficos, a tiragem, os autores, a
seleção de conteúdo, a divulgação.
Acredita-se que esse percurso investigativo proporcione o conhecimento de
ABSTRACT
This work aims to study the didatics books destinated to students who are attending
the young and adult educational system courses — people who could not accomplish the
studies in regular ages.
First of all it searched for the titles of this type of book devoted to this kind of
students and, due to its lackness, it tried to explain why there are such a few books in
relation to the great number of books that are produced to other students — those who are
attending fundamental regular courses.
The investigation goes on by comparing editorial disposals of these books and of
those that are comercially more atractive to the publishing companies. The number of the
pages, the graphic elements, the number of samples printed in each edition, the authors, the
contents, the means of distribution of each kind of material were the features that were
considered in this comparative analysis. The belief is that this type of research may give us
information of the strategies the editors intended to use as well as the ideas they have
AGRADECIMENTOS
Ao professor doutor Kazumi Munakata, meu orientador, que confiou em meu projeto e me
incentivou. A maneira descontraída, direta, porém cheia de erudição, e seu jeito amigo de
me orientar na pesquisa me foram valiosos e desse contato levarei lembranças plus.
Aos professores das disciplinas que cursei no Programa de Pós Graduação de Educação:
História, Política, Sociedade, pelo exemplo de seriedade, pela dedicação, pela confiança em
mim depositada.
Às professoras Circe Bittencourt e Maria das Mercês Ferreira Sampaio, pelas observações
apuradas que fizeram no exame de qualificação e pela delicadeza com que apontaram
falhas severas às quais pude atentar na escrita final deste trabalho.
Aos professores de educação de jovens e adultos, que tive o privilégio de conhecer durante
a pesquisa.
A João Guizzo, meu chefe na Editora Ática, que me permitiu negociações de horário e,
sempre que precisei, me forneceu informações que acresceram na condução do estudo. A
José Antonio Ferraz pelas explicações de aspectos relativos à produção e a Marco Aurélio
Feltran pelas informações sobre as tiragens. A Tiago Yokomizu pela assessoria na pesquisa
de dados da Internet; a Silvio Kligin, querido amigo, pela prontidão em fazer as fotos. A
Samir Thomas pelos reiterados empréstimos do gravador. A Lafayette Megalle pelo
depoimento sobre a edição de livros de educação de jovens e adultos na Editora FTD. E a
Marise Leal pela revisão de grande parte do trabalho — a ela e ao Kazumi peço desculpas
pela apresentação de um material em versões ainda tão cheias de imperfeições formais, tão
distantes do que se espera no ofício.
À Capes pela bolsa concedida em 2003 e 2004.
Devo dizer ainda, parafraseando a professora Mirian Warde, que, do que sobra, a culpa é
Será passatempo?
Escrever é um passatempo?
Sonhar é um passatempo?
Esta página
Estava em branco
Há poucos segundos
Um minuto
Ainda não transcorreu
E agora eis a obra.
Sumário
1. Introdução 13
1.1 Do lugar que se fala 13
1.2 Do lugar que se focaliza 18
1.2.1 Uma ordenação das políticas públicas 20
1.3 Educação de Jovens e Adultos 24
1.4 O livro didático e a forma escolar 33
1.4.1 Estudos sobre livros didáticos e sobre
educação de jovens e adultos 35
2. Observação de práticas em instituições escolares de
educação de jovens e adultos 40
2.1 O contato com as escolas 43
2.1.1 Centro Integrado de Educação de Jovens
e Adultos 45
2.1.2 Escola Estadual Major Arcy 53 2.1.3 Escola Municipal de Ensino Fundamental
Professor Olavo Pezzoti 56
2.2 Avaliação das observações 60
3. Livros didáticos para educação de jovens e adultos 66
3.1 A concentração das Editoras 69
31.1 Duas Editoras comerciais 73
3.2 Os títulos e a autoria 76
3.3 Tiragem 82
3.4 Número de páginas 89
3.5 Papel, formato, acabamento e impressão 96
4. A seleção de conteúdos 99
4.1.1 Capas Ática 103
4.1.2 Capas FTD 107
4.1.3 Imagens Geografia FTD 119
4.1.4 Imagens Ciências Ática 126
4.2 A estrutura das obras 134
4.2.1 Sumário Geografia FTD mercado 136 4.2.2 Conteúdos Ciências Ática 140
4.3 Atividades 145
4.3.1 Atividades Ciências Ática 146 4.3.2 As atividades e o currículo 147
4.4 O manual do professor 148
4.4.1 Manual Ciências Ática 149
4.4.2 Manual Geografia FTD 149
4.4.3 O manual do professor e o destinatário 151
4.5 A divulgação 152
5. Considerações finais 156
6. Bibliografia 158
SIGLAS E ABREVIATURAS
Abrelivros: Associação Brasileira de Editores de Livros
BNDES: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CBL: Câmara Brasileira do Livro
CEB: Câmara de Educação Básica
Cieja: Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos
CNE: Conselho Nacional de Educação
EJA: Educação de Jovens e Adultos
FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Fundef: Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Inep: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC: Ministério da Educação
Mobral: Movimento Brasileiro de Alfabetização
ONG: Organização Não-Governamental
ONU: Organização das Nações Unidas
PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais
PIB: Produto Interno Bruto
PNAC: Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania
PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
SEB: Secretaria de Educação Básica
SEF: Secretaria de Ensino Fundamental
Senac: Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
Unesco: Organização das Nações para a Educação, a Ciência e a Cultura
1. Introdução
1.1 Do lugar que se fala
Lidar com livro didático como objeto de pesquisa implica articular, primeiramente,
o discurso internalizado resultante de minha atividade profissional com um universo
teórico. Para isso, tomo emprestado de Michel de Certeau a noção de “o lugar de onde se
fala”1, título deste primeiro texto que seria uma apresentação do trabalho, e identifico algumas dificuldades que se apresentaram na realização da pesquisa.
Conforme Certeau, o gesto de escrever implica uma clivagem entre a tradição vivida
e o presente, entre um sujeito e um objeto de operação, circunscrevendo e organizando as
experiências num corpo escrito. A mim, no caso, caberia transformar concepções e
procedimentos tidos como naturais, posto que atuo como profissional há quase vinte anos
no campo que agora pretendo pesquisar, em um corpo opaco, em discurso presente. Para
isso é preciso também articular a produção acadêmica sobre o livro didático com as
representações que se fazem desse objeto: a do público em geral, dos professores, dos
editores, da mídia. Importa, nesse caso, considerar a sedimentação do conceito de livro
didático nessas esferas de atuação.
Da formação universitária guardava referências rarefeitas a Louis Althuser
(Aparelhos ideológicos do Estado); Theodor Adorno e outros da Escola de Frankfurt;
Pierre Bourdieu (A economia das trocas simbólicas); K. Marx (Manifesto comunista e A
ideologia alemã). As leituras feitas na ocasião, dadas as limitações de repertório, interesse
e, se assim se pode dizer, maturidade cognitiva, não responderam por uma sólida formação
teórica, mas esboçaram na minha lembrança a vaga amargura de que o ingresso efetivo no
campo da indústria cultural não promoveria uma identidade nutrida com boa taxa de
1
estima. Nesse mesmo período, a retórica acadêmica construída sobre o livro didático
deitava-se sobre a teoria da dominação e considerava esse produto como instrumento
ideológico que realizava as aspirações das classes dominantes por meio do Estado. Embora
tal tipo de análise se encerre em si mesmo, posto que não dá margem a saídas ou outras
opções interpretativas, mas, ao contrário, serve para justificar o estado das coisas, essa
tendência marcou uma época. Barbara Freitag2 e João Batista Araújo e Oliveira3 não podem deixar de ser mencionados.
Na década de 1990 outras formas interpretativas se construíram à luz de novos
aportes teóricos da história, das comunicações, da lingüística, da sociologia. O programa
me deu oportunidade de conhecer os trabalhos de Circe Bittencourt4, Maria Rita Toledo5, Kazumi Munakata6, Celia Cassiano7, os quais foram por mim absorvidos como norteadores de uma linha de tratamento de meu objeto de pesquisa.
2
FREITAG, B.; COSTA, W. F. da; MOTTA, V. R. 2. ed. O livro didático em questão. São Paulo, Cortez, 1989. p. 11. Leia-se um trecho emblemático dessa autora: “Poder-se-ia mesmo afirmar que o livro didático não tem uma história própria no Brasil. Sua história não passa de uma seqüência de decretos, leis e medidas governamentais que se sucedem, a partir de 1930, de forma aparentemente desordenada, e sem a correção ou a crítica de outros setores da sociedade (partidos, sindicatos, associações de pais e mestres, associações de alunos, equipes científicas etc.). Essa história da seriação de leis e decretos somente passa a ter sentido quando interpretada à luz das mudanças estruturais como um todo, ocorridas na sociedade brasileira, desde o Estado Novo até a ´Nova República´”. E mais adiante continua: “A primeira constatação [o fato de que a política do livro didático do período por ela analisado, do regime militar ao governo Sarney, é praticamente idêntica à política estatal do livro didático] implica o fato de que não houve até recentemente, fora do Estado, outras instituições no Brasil capazes de influenciar, formular e redirecionar o processo decisório sobre o livro didático. […] Nem mesmo as editoras, que à luz do seu poderio econômico teriam condições de influenciar o conteúdo e a distribuição dos livros didáticos, têm usado a sua força para participar com propostas próprias das decisões políticas sobre o livro didático”.
3
OLIVEIRA, J. B. A.; GUIMARÃES, S. D. P.; BOMÉNY, H. M. B. A política do livro didático. São Paulo/Campinas, Summus/Unicamp, 1984.
4
BITTENCOURT, Circe M. F. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1993. Tese de doutorado.
5
TOLEDO, Maria Rita de A. Coleção Atualidades Pedagógicas: do projeto político ao projeto editorial (1931-1981). São Paulo, PUC-SP/EHPS, 2001. Tese de doutorado.
6
MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. (Tese de doutorado.) São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1997. Investigações acerca dos livros escolares no Brasil: das idéias à materialidade. Comunicação no VI Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, San Luis Potosí, México, 2003.
7
Os clássicos do livro didático, Alain Choppin8 e Egil Børre Johnsen 9, me foram apresentados por meu orientador logo no início do curso, mas, conforme partilhei naquele
momento com alguns colegas de trabalho, não havia coisa mais desestimulante do que ler
textos que falam sobre livro didático. Qual seria o motivo? Se ainda não o desvendei, ao
menos já é possível a simples tarefa de integrar esses estudos, de fato não à prática
profissional, mas à escrita de um trabalho acadêmico. Os exercícios intelectuais que se
desencadearam a partir da leitura dos diversos autores propostos proporcionaram, como era
de se esperar, a elaboração de textos e forneceu utensílios mentais para praticar outras
leituras de minha atividade profissional, o que não reverteu necessariamente em
pragmatismo nem “agregou valor” à carreira profissional, mas, ao contrário, desdobrou-se,
no mínimo, em tensão no universo empírico da pesquisa10.
Há que se destacar os autores que me foram apresentados sobretudo na disciplina
“História do livro, do livro didático e dos impressos pedagógicos”. Autores como Roger
Chartier11, Robert Darnton12, Gimeno Sacristán13, Michael Apple14 dedicam-se a estudar, entre outros assuntos, o tão prosaico livro didático ou material didático impresso. Um
conceito caro extraído desses dois primeiros autores foi o de materialidade. Abarcar esse
conceito na investigação requer que se considere que os aspectos materiais de que uma obra
didática se compõe (título, capa, formato, cores, imagens, número de páginas, tipologia,
8
CHOPPIN, Alain. La recherche sur les manuels scolaires. In: Les manuels scolaires: histoire et actualité. Paris, Hachette Éducation, 1992.
9
JOHNSEN, Egil B. Libros de texto en el calidoscopio. Estudio crítico de la literatura y la investigación sobre los textos escolares. Barcelona, Ediociones Pomares-Corredor, 1993.
10
Tomo como inspiração o tom de depoimento apresentado pelo trabalho de CARVALHO, Marta M. Chagas de. Aescola e a República e outros ensaios. Bragança Paulista, Universidade São Francisco, s.d. Parte III.
11
CHARTIER, Roger. A história cultural — entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Bertrand, 1996. CHARTIER, Roger & ROCHE, Daniel. O livro. In: História: novos objetos. São Paulo, Martins Fontes, s.d. CHARTIER, Roger. A aventura do livro; do leitor ao navegador. São Paulo, Unesp/Imprensa Oficial, 1998.
12
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
13
papel, tiragem) são dispositivos que corporificam estratégias ou táticas dos agentes que o
produzem ao mesmo tempo em que eles pressupõem expectativas e competências do leitor.
Essa linha de argumentação é também tributária Michel de Certeau15, que considera que, assim como o livro, tanto a sua produção quanto a sua leitura e a subseqüente apropriação
que o leitor dela faz são práticas culturais.
O apelo à análise da materialidade dos objetos veio ao encontro das habilidades
desenvolvidas ao longo da prática profissional e, portanto, foi um elemento prontamente
incorporado à investigação, dada a facilidade com que elas podem ser vertidas no texto e a
legitimidade que esse recurso autoriza.
Uma dificuldade inicial foi a de encontrar livros didáticos específicos de educação
de jovens e adultos, objeto de meu trabalho. Essa primeira dificuldade, entretanto, me levou
a circunscrever a análise de livros didáticos de educação de jovens a adultos no âmbito da
produção de outros produtos das Editoras. Essa tática me possibilitou traçar algumas
hipóteses do motivo da baixa oferta desse material no mercado.
Houve também a decisão de observar o uso de materiais didáticos em escolas
voltadas para a educação de jovens e adultos. A análise material pode revelar o leitor
previsto nas decisões editoriais; em contrapartida, a observação do uso dos materiais pode
revelar a apropriação que os leitores fazem deles. Visita e observação não bastam para
constituir um texto posterior. É preciso saber o que observar. A depender do olhar que se
dirige a uma instituição escolar, é possível dar como relevante detalhes de naturezas
diversas, como: a fala do professor (as frases, seu repertório cultural, o domínio que ele
revela da disciplina escolar e de outras áreas do conhecimento, sua inclinação política, o
afeto que ele expressa em relação aos alunos, o grau de apego à sua atividade ou a
indiferença, a representação que fazem de seu trabalho e a representação que fazem do
aluno); os objetos presentes na sala de aula; os recursos materiais; o número de alunos
presentes; o número de alunos regularmente matriculados; a lista de presença; a disposição
14
APPLE, Michael W. Cultura e comércio do livro didático. In: Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre, Artmed, 1995.
15
das carteiras e seu formato; a carga horária; as avaliações; o número de alunos que têm
livro ou material didático (eles encapam o livro?, como o manuseiam?, como ou com que
freqüência o levam à escola?, que comentários fazem dele?). Enfim, há um sem-número de
pontos a observar. Para nortear esse processo, foi-me recomendada a leitura de Roper P. de
Carvalho Filho16, Luciana T. Araújo17 e David Hamilton18. Também essa etapa criou tensão com a atividade profissional, à medida que se identificaram professores em sala de aula que
eram capazes de criar uma dinâmica de absoluto envolvimento dos alunos sem fazer uso,
naquele momento, de qualquer livro didático. Por outro lado, em outra escola, nota-se certa
reverência que os alunos têm em relação ao livro didático: um aluno de EJA de 16 anos
orgulhava-se de exibir um livro didático de Matemática que havia ganhado da professora e
que trazia em sua mochila todos os dias, embora não o usasse em aula.; em outra escola,
vários alunos tinham o livro encapado e o manuseavam com cuidado, folheavam devagar e
não dobravam o volume. Numa das escolas visitadas, na sala dos professores, ouviram-se
muitas críticas ao departamento de divulgação da Editora: a de que o divulgador não deixou
material, e quando deixou não o fez em tempo hábil para a adoção.
Tal como as narrativas acadêmicas, a prática de produção editorial se insere no
tempo. Também os profissionais não dedicam parte significativa de sua jornada a elaborar
conceitualmente cada um de seus gestos que constituem a rotina de trabalho. Trata-se de
um campo de lutas, mas cujas ações nem sempre são justificadas conceitualmente ou
abalizadas por uma concepção global do amplo processo editorial, mas que pode vir a se
constituir como norma da atividade profissional, quer na circunscrição da empresa, quer
entre empresas do mesmo ramo, conforme se dê a luta de representações e negociações
com outras entidades privadas ou públicas, governamentais ou não.
16
CARVALHO FILHO, Roper Pires de. Práticas dos professores de história do 1º ano — ciclo II em relação a facetas da cultura escolar. São Paulo, PUC/EHPS, 2003. Dissertação de mestrado.
17
ARAÚJO, Luciana Telles. O uso do livro didático no ensino de história: depoimentos de professores de escolas estaduais de ensino fundamental situadas em São Paulo/SP. São Paulo, PUC-SP/EHPS, 2001. Dissertação de mestrado.
18
A urdidura da dissertação implica, portanto, uma relativa desconstrução de uma
memória individual legitimada pela prática profissional e a seleção de um universo teórico
que lhe dê suporte. Tarefa mais complexa do que concebi quando de meu ingresso no
programa, porém que me levou à fruição intelectual, emocional, afetiva e estética e me
proporcionou sinapses cognitivas que revelaram que vale a pena a aventura de tornar
público o que antes podia se reservar à esfera da memória particular, baseada na
experiência vivida, em objeto de pesquisa e, seguindo os conformes acadêmicos instituídos,
compor uma possível fonte de informações para pesquisas posteriores. Contribuição
mínima, é claro, mas cujo esforço promoveu a relativização do saber-fazer profissional,
tido como natural, como “o ar que se respira”19, em face dos discursos que se fazem dele, e o conformou num objeto e, portanto, a um ponto discreto na rede de objetos de estudo
possíveis.
1.2 Do lugar que se focaliza
A inovação é, no momento, uma das principais prioridades educacionais. Nos últimos dois decênios, ela tem se expandido e multiplicado. Consome hoje verbas cada vez maiores, tanto públicas quanto privadas. Seu impacto é sentido no mundo inteiro. Currículos são reestruturados, novos recursos pedagógicos, introduzidos e as formas de ensinar, transformadas. Mas estas decisões relativas a mudanças, não são somente de origem, educacional: sofrem a interferência da política, da ideologia, da moda e até mesmo de aspectos financeiros.20
19
Referência à expressão usada por MUNAKATA, Kazumi no título do seu artigo Como o ar que se respira: uma resenha de algumas idéias que se disseminavam pelo Brasil nos anos 30. Horizontes. Bragança Paulista, v. 14. O empréstimo restringe-se somente à expressão, posto que o artigo concentra-se em tema bastante diverso desta dissertação.
20
Parte do que David Hamilton observou há trinta anos ao apresentar um novo tipo de
avaliação aplicável a propostas educacionais inovadoras também podem ser utilizadas para
entender o fenômeno da profusão da oferta de livros didáticos nos sistemas de ensino
público regular e à configuração da modalidade educacional de Educação de Jovens e
Adultos nos últimos vinte anos.
A distribuição de um grande volume de livros didáticos a alunos do sistema público
de ensino desde 1985, com a implementação do Programa Nacional do Livro Didático, e a
mirrada presença de livros didáticos para o público de EJA pode ser entendida como
configurações que se manifestam mediante interferências políticas, ideológicas e
financeiras.
As altas tiragens desse material didático percebidas nas últimas décadas não devem
ser entendidas apenas como um fenômeno em si, resultante do esforço individual de um
programa de governo ou apenas da parceria entre governo federal e Editoras, mas como um
aspecto que integra uma política um pouco mais ampla, em que o contorno das ações
governamentais e das iniciativas privadas locais se define segundo projetos de
realinhamento econômico global.
Na orientação dessas políticas destacam-se os organismos de cooperação
internacional — ONU, Unesco, Banco Mundial, Unicef — criados no pós-guerra e que,
tendo equacionado o problema das nações européias vitimizadas pelos conflitos,
voltaram-se para os problemas das desigualdades entre nações ricas e pobres e para os focos de
extrema pobreza no planeta, fatores potencialmente geradores de instabilidade social e
insustentabilidade econômica.
Segundo José Luis Coraggio, para essas entidades, dois aspectos se interpõem na
transição entre o modelo de desenvolvimento econômico baseado na industrialização
nacional e o do mercado global almejado:
2. a intensificação dos desequilíbrios sociais, que corroem a estabilidade política necessária para que a nova economia se consolide em escala global.21
Como soluções para evitar essas tensões, passam a ter prioridade a política de
focalização nos mais pobres e o investimento em educação.
E, como nos últimos vinte anos o livro didático no Brasil tem integrado uma política
pública educacional, considera-se válido, nesta dissertação, antes de partir para a análise
material propriamente dita, abordar rapidamente esses aspectos, que, se não determinam
objetivamente essa política, ao menos a influenciam.
Nesse sentido, estaremos reforçando o que Robert Darnton propõe como tarefa de
quem se aventura a estudar a história dos livros: analisar cada etapa do circuito de
comunicação (autor, editor, impressor, distribuidor, vendedor, leitor), bem como as
variações de conjuntura política, econômica, social.
A história do livro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como um todo, em todas as variações no tempo e no espaço, e em todas as suas relações com outros sitemas, econômico, social, político e cultural, no meio circundante.22
A breve consideração dos fatores conjunturais a se realizar neste primeiro capítulo
pretende, portanto, ajuizar que fatores favorecem a disponibilização de tantos livros
didáticos para alunos de ensino fundamental enquanto se verifica a existência de tão poucos
livros para alunos de EJA, que, apesar de ter sido incluída na forma legal pela última LDB
(1996) como uma modalidade do ensino básico, continua à margem das prioridades
educacionais.
1.2.1 Uma ordenação das políticas públicas
21
CORAGGIO, José Luis. Propostas do Banco Mundial para a educação: sentido oculto ou problemas de concepção? In: TOMMASI, Livia de; WARDE, Mirian Jorge; HADDAD, Sérgio (orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. São Paulo, Cortez/Ação Educativa/PUC-SP, 1996. p. 84-5.
22
A atuação dos organismos internacionais não é recente. O Banco Mundial, criado
em 1944, teve inicialmente sua atuação vinculada ao FMI para o restalebecimento da ordem
mundial com vistas a evitar novas crises internacionais, impulsionar o desenvolvimento e
soerguer as nações destruídas pelos conflitos.
Atingida essa primeira meta, de meados da década de 1950 até o fim da década de
1960, os recursos desses organismos foram dirigidos aos países em desenvolvimento para
incrementar a industrialização. Nesse sentido, grande parte dos investimentos foi destinada
à infra-estrutura, consolidando setores como o de energia, telecomunicações e transportes.23 Criou-se também a Usaid (Agência para o Desenvolvimento Internacional, ligada ao
Departamento de Estado Norte-Americano) para garantir assistência técnica em várias áreas
aos países em desenvolvimento, inclusive no campo da educação.
Na década de 1970 a influência desses organismos sobre aspectos da educação
brasileira se amplia, começando a impactar nas orientações das reformas educacionais.
Acreditava-se que o investimento em educação, notadamente a formação técnica, pudesse
incrementar diretamente o setor produtivo.
Já no fim dessa década, entretanto, observa-se um novo panorama mundial
configurado pelo acúmulo de capital nos países de economia central, por um lado, e o
acirramento da crise financeira dos países em desenvolvimento promovido pelo
endividamento externo, juntamente com o início do processo de globalização da economia.
Essas mudanças no sistema capitalista mundial foram acompanhadas pelo progressivo declínio das concepções keynesianas que haviam dominado as políticas macroeconômicas desde o pós-guerra. Assim, já nos anos 70, era marcante a crescente influência das teorias monetaristas neoliberais. Estas iriam ganhar hegemonia nas décadas seguintes na condução das políticas globais, constituindo-se no alicerce ideológico que vem fudamentando a atuação do Banco Mundial e do FMI desde então.24
23
A esse respeito, ver: SOARES, Maria Clara Couto. Banco Mundial: políticas e reformas. E FONSECA, Marília. O financiamento do Banco Mundial à educação brasileira: vinte anos de cooperação internacional. In: TOMMASI, L.; WARDE, M. J.; HADDAD, Sérgio (orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. Op. cit.
24
A partir da década de 1980, esses organismos, embasados em extensos estudos
sobre aspectos econômicos e sociais, passaram a promover ajustes estruturais nos países
endividados, condicionando os empréstimos financeiros e a alocação de recursos ao
compromisso de engajamento dessas nações às orientações por eles propostas.
Superando a tradicional influência que já exercia sobre as políticas setoriais dos países em desenvolvimento, o Banco Mundial passou a exercer amplo controle sobre o conjunto das políticas domésticas, sendo peça-chave no processo de reestruturação desses países ao longo dos últimos quinze anos.
É importante compreender que essa influência se dá menos em função do volume de recursos emprestados, embora este seja importante para grande número de países, do que pelo fato de os grande capitais internacionais e o Grupo dos Sete terem transformado o Banco Mundial e o FMI nos organismos responsáveis não só pela gestão da crise de envididamento como também pela reestruturação neoliberal [destaque nosso] dos países em desenvolvimento.25
A Conferência Mundial de Educação Para Todos, realizada em 1990 em Jomtiem,
convocada pela ONU e patrocinada pelo Banco Mundial, juntamente com o PNUD, a
Unesco e o Unicef constitui, hoje, o referencial de compromissos que as nações signatárias
assumiram atingir no campo da educação. Desde então esses órgãos têm destinado a esses
países investimentos prioritariamente dirigidos à educação básica e têm exercido controle
sobre suas políticas educacionais.
Nessa época, seguiram-se no Brasil, no campo da educação, medidas cujo objetivo é
aumentar os índides de escolarização da população brasileira. Em 1985 o governo José
Sarney instituiu o Programa Nacional do Livro Didático; em 1988 a Assembléia
Constituinte promulgou a nova Constituição Federal; em 1994 o governo Itamar Franco
estabeleceu o Plano Decenal de Educação; em 1996 o Congresso do governo de Fernando
Henrique Cardoso votou a Lei de Diretrizes e Bases 9394; em 1997 publicaram-se os
Parâmetros Curriculares Nacionais. Embora nem todas essas medidas se destinem
diretamente à educação, todas têm reflexos sobre ela.
25
Como já se disse anteriormente, o ensino básico foi priorizado pelas políticas
subseqüentes, considerando-se que o desenvolvimento do potencial educacional humano
assegure a estabilidade social. Os livros didáticos passaram a ter papel preponderante na
difusão da instrução básica e, conforme apontam alguns estudiosos, sua importância
prevaleceu sobre fatores prioritários do ensino, como a formação do professor e a reforma
curricular:
Frente às fragilidades e fracassos reais de muitas tentativas de reforma curricular, o Banco Mundial propõe um novo viés e possivelmente um novo beco sem saída: a prioridade do livro didático. Se a década de 60 foi a década da infra-estrutura, a década de 90 aparece como a década do texto escolar.
O Banco Mundial […] Desaconselha as reformas curriculares empenhadas em modificar o currículo prescrito, argumentando contra sua complexidade e contra o fato de gerar muitas expectativas e, finalmente, por não se traduzir em melhorias na sala de aula. No seu lugar, aconselha melhorar os textos escolares, considerados no currículo efetivo, já que é neles que se condensam os conteúdos e orientam-se as atividades que guiam tanto os alunos quanto os professores. Como resultado dessa análise, o Banco Mundial está aumentando notavelmente a dotação orçamentária para o item textos escolares [destaque nosso] nos seus projetos de melhoria da qualidade.26
José Luis Coraggio também analisa a importância dada aos livros didáticos em
detrimento do investimento na formação do professor, que acarretaria aumento no custo
direto de salários e em treinamento, e da opção de centrar os recursos no aluno, medida que
iria contra a orientação de o Estado afastar-se do contexto da aprendizagem e de delegá-lo à
escola, à família, à comunidade.27
No campo das idéias neoliberais prevalecem as estratégias para reformar os Estados
e prepará-los para a economia global, entre as quais, em linhas gerais, destacam-se: ajuste
estrutural; descentralização e enxugamento do Estado; eliminação dos bens e serviços
26
TORRES, Rosa Maria. Melhorar a qualidade da educação básica? As estratégias do Banco Mundial. In: TOMMASI, Livia de et al. (orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. Op. cit., p. 154.
27
garantidos pelo Estado como direitos universais; criação de políticas sociais compensatórias
focalizadas nos mais pobres.
Nessa orientação, a sociedade civil, em suas diversas formas de expressão, passou a
ter papel fundamental na condução de políticas públicas. Entre essas formas de expressão,
estão as ONGs.
Diante do exposto até aqui, acreditamos ter evidenciado algumas das condições que
permitiram que os livros didáticos voltados para o ensino básico, principalmente os do
ensino fundamental, ganhassem notoriedade e força no panorama educacional brasileiro a
partir de meados da década de 1980. Resta ainda levantar dados que norteiem uma
compreensão das razões que levam os livros de EJA não integrar esse cenário.
1.3 Educação de Jovens e Adultos
A intenção de disseminar a educação para todos, integrando analfabetos e jovens e
adultos que não tiveram oportunidade de cumprir o ensino regulamentar dentro da idade
prevista não é nova. Data, pelo menos, de 1824, nossa primeira Constituição. Nela estava
inscrita a garantia de uma “instrução primária e gratuita para todos os cidadãos” [grifo
nosso], e essa garantia continuou sendo assegurada constitucionalmente ao longo dos
governos que se seguiram, independentemente da forma de organização do Estado e da
orientação política.
De 1824 a 1990, quando se realizou a Conferência Mundial de Educação Para
Todos, a expressão para todos, que alude à intenção de viabilizar a escolarização a todos os
cidadãos, esteve presente em diversos compromissos formais, porém, a sua concretização
nem sempre se confirmou.
A história da educação de jovens e adultos é caracterizada, portanto, por uma série
propõe a fazer um levantamento dessas ações.28 Mas marcaremos aqui alguns momentos que se tornaram referências nessa trajetória. Faremos também uma distinção entre educação
de jovens e adultos, que diz respeito à escolarização do público que não pôde ingressar ou
completar sua instrução na idade regular, e educação popular, que, embora tenha sido a
origem da educação de jovens e adultos (antes denominada suplência), remete, atualmente,
mais a práticas educativas extra-escolares, como cursos de qualificação profissional,
telecursos e outras.
Se, como já dissemos, no plano das idéias a intenção de oferta de educação para
jovens e adultos está registrada, no plano da efetivação isso não se verifica com a mesma
reincidência e continuidade. Ao longo dos governos instituídos no período republicano, a
questão do federalismo versus centralização, que implica em que esfera do governo recaem
os recursos financeiros para a implementação das políticas destinadas à EJA, bem como a
organização e a execução do sistema são uma constante.
Vanilda Pereira Paiva, que analisa os movimentos educacionais brasileiros29, afirma que eles estão intimamente ligados com a disputa entre diversos grupos pelo poder, quer
para sedimentar quer recompor o poder político e as estruturas sócio-econômicas. Nesse
sentido, a bandeira do combate ao analfabetismo já esteve erigida por escolanovistas,
esquerda marxista, estadonovistas, católicos.
Segundo essa autora, é na segunda metade da década de 1940 que a educação de
adultos passa a ser encarada de forma distinta. Criado em 1942, porém com suas atividades
iniciadas só em 1946, o Fundo Nacional do Ensino Primário é um marco no tratamento da
educação de adultos como um aspecto da educação popular.
28
Tal trajetória pode ser acompanhada pela consulta a textos que se dedicam a esse tema ou que remetem à educação popular ou a certos períodos dessa história, tais como: PAIVA, Vanilda P. Educação popular e educação de adultos; contribuição à história da educação brasileira. São Paulo, Loyola, 1973. PAIVA, Vanilda P. Mobral: um desacerto autoritário. Rio de Janeiro, Síntese/Ibrades, n. 23-4. HADDAD, Sérgio & DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação, 14: maio/jun./jul./ago. 2000. E também: PROPOSTA CURRICULAR PARA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS — segundo segmento do ensino fundamental. Introdução. Brasília, MEC/SEF, 2002. p. 13-7.
29
Até então, o problema da educação de adultos era tratado juntamente com o da difusão do ensino elementar. Somente na década dos 40 é que reacende-se o tema dos altos índices de analfabetismo com a atuação de Teixeira de Freitas, à frente do Serviço de Estatísticas da Educação, e a educação dos adultos começa a ganhar relevância. Sua independência torna-se concreta com a própria criação do Fundo, com a dotação de 25% de torna-seus recursos para uma campanha especificamente destinada à alfabetização e educação da população adulta analfabeta.30
Sérgio Haddad também partilha do entendimento de que a década de 1940 constitui
o início de uma nova visão da escolarização de jovens e adultos, até então praticada como
instrução de crianças.31 Nesse período, no bojo do impulso de fortalecimento do Estado nacional, o governo federal tendeu a deixar claros qual era o papel da União na educação e
quais eram as responsabilidades dos estados e municípios. O Plano Nacional de Educação,
a criação do Inep (em 1938) e do Fundo Nacional do Ensino Primário (em 1942), a
instalação do Serviço de Educação de Adultos (SEA, em 1947) foram medidas que
fomentaram pesquisas e a destinação de recursos financeiros e de infra-estrutura para a
instrução de adolescentes e adultos. Tais ações foram capazes de reduzir a taxa de
analfabetismo de forma considerável em relação aos números exibidos em décadas
anteriores (46,7% da população com idade superior a cinco anos), mas esse nível ainda
continuava alto em termos mundiais.
Em 1958 realizou-se o II Congresso Nacional de Adultos, em que se discutiu
novamente a questão da especificidade dessa modalidade de ensino. As idéias de Paulo
Freire se disseminavam e uma atmosfera de renovação pedagógica se configurava dentro de
um quadro de turbulências políticas. Com a intensificação da mobilização de grupos
populares e a luta por sua legitimação, criaram-se campanhas e programas de valorização
da cultura popular e de educação de adultos tanto entre setores da sociedade civil quanto
comandadas por secretarias de governo, a maioria dos quais patrocinados por verbas
públicas. Tais iniciativas acabaram por dar o reconhecimento da especificidade pedagógica
30
Idem. p. 48.
31
e didática dessa modalidade de ensino e se nortearam não só pela formação educacional,
mas sobretudo política, constituindo-se numa via de legitimação de ideais políticos.
O golpe militar de 1964 interrompeu esse processo de organização política, cultural
e educacional que vinha sendo promovido pelo movimentos populares. Segundo Maria
Lúcia Hilsdorf32, após o golpe militar de 1964, as formas de participação popular são substituídas por critérios de eficiência, a sociedade se despolitiza por uma
“compartimentação do trabalho” e o Estado, com sua política crescente de privatização,
deixa gradativamente de assumir a responsabilidade de provedor de bens públicos — entre
eles a educação.
Na década de 1960, muitas agências financiadoras internacionais, principalmente as norte-americanas, propagaram essa teoria garantindo que a conquista de graus escolares mais elevados proporcionava ascensão social. Isso lhes permitiu oferecer programas de ajuda para o Terceiro Mundo, intervindo no financiamento e na redefinição da organização escolar de vários países.
Entretanto, na cidade de São Paulo, o curso público de suplência foi oficializado
como resultado das demandas de movimentos populares — até então o ensino supletivo era
ministrado por escolas particulares e a luta pela oferta pública era incipiente. Marilia Pontes
Sposito traça uma cronologia dos movimentos populares especialmente entre as décadas de
1970-1990 e mapeia a instalação de diversas unidades escolares de ensino supletivo em
bairros da cidade como forma de atendimento a reivindicações da população local:
Como aumento da demanda o curso passa a funcionar em escola de primeiro grau localizada na baixada do Glicério. E em 1976, a Secretaria Municipal de Educação assume a responsabilidade do Ensino Supletivo corporificada na Lei 8389 de 1975. Oficializado o ensino supletivo municipal, a escola em funcionamento (EMES Prestes Maia na Liberdade) passa a ter estrutura, duração e regime escolar próprios. […]
A criação dessas primeiras unidades municipais não obstante o interesse eleitoral que as determinou, exprime, de um lado, uma forma pontual de resposta do Poder Público à demanda
32
mas, de outro, a abertura de caminhos para novas e mais expressivas reivindicações que adquirem maior visibilidade a partir de 1983.33
Antes da criação do ensino supletivo, porém, diante do esvaziamento das ações no
setor de educação de jovens e adultos, sua desarticulação e a constatação de um grande
contigente populacional analfabeto, que contradizia a imagem que se queria imprimir de
um país gigante, os militares conceberam, em 1967, o projeto do Mobral (Movimento
Brasileiro de Alfabetização). Pretendia-se com isso erradicar o analfabetismo do país.
O Mobral funcionava com verbas captadas de empresários e da loteria esportiva e
era, portanto, descentralizado em suas operações, mas centralizado na concepção e direção
político-pedagógica e nas avaliações que implementava aos estudantes. O empreendimento
coexistiu com outros programas de educação, inclusive o ensino supletivo.
A LDB 5692/1971 consolidou o ensino supletivo e o Parecer do Conselho Federal
de Educação 699/1972, juntamente com o documento “Política para o Ensino Supletivo”,
trataram em mais detalhes essa modalidade de ensino. Porém, uma idéia que embasou o
encaminhamento desses documentos era a de que o ensino supletivo devia ser guiado por
uma metodologia adequada à massa de estudantes e não segundo sua origem social,
cultural ou econômica — o que contrariou radicalmente as experiências construídas na
década anterior pelos movimentos populares.
O ensino supletivo se disseminou mais nas esferas estaduais e houve também certa
proliferação do ensino privado nesse setor, com a maioria dos estabelecimentos voltados
para cursos de suplência de 1º e 2º graus, ficando desassistida a alfabetização de adultos.
Em 1985, o Mobral foi substituído pela Educar (Fundação Nacional para Educação
de Jovens e Adultos), que posteriormente passou a se subordinar ao MEC, formulou novas
diretrizes pedagógicas e se transformou em órgão de fomento e apoio técnico junto a
governos estaduais e municipais, empresas e entidades da sociedade civil na implementação
do ensino de jovens e adultos.
33
Em 1990, entretanto, o governo Fernando Collor de Mello extinguiu a Educar, sob a
alegação de enxugamento da máquina administrativa e de restrição dos gastos púbicos.
Juntamente com essa medida, também extinguiu a destinação de recursos financeiros de
empresas privadas à Fundação (que vinha ocorrendo desde a época do Mobral). Esses
cortes implicaram a transferência das responsabilidades por esse setor do ensino da União
para os estados, municípios e sociedade civil.
Com tantos programas descontínuos e de orientações ideológicas e pedagógicas tão
diversas quanto os seus propósitos, quando a ONU convocou a Conferência Mundial de
Educação Para Todos, o Brasil exibia a posição de um dos nove países que mais
contribuem com altas taxas de analfabetismo no mundo. Essa data marcou uma série de
compromissos assumidos pelos países signatários em relação à educação básica, nela se
incluindo a educação de jovens e adultos.
Porém, com esses compromissos também vieram dos organismos internacionais
orientações de ajuste estrutural e reorganização do estado no sentido de diminuir seus
encargos financeiros e os transferir a outras esferas de governo e à sociedade civil. E a
educação de jovens e adultos foi novamente deixada de lado.
Um reforço ainda maior ao quadro de abandono dessa modalidade de ensino veio
com a emenda constitucional 14/1996, que aboliu a obrigação do governo federal de aplicar
metade dos recursos destinados à educação para erradicar o analfabetismo no Brasil, e a
criação do Fundef (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério), alocado em cada unidade federada e que repassaria as verbas de educação para
as esferas estaduais ou municipais conforme o número de matrículas no ensino
fundamental. Em sua regulamentação pela Lei 9424/1996, o presidente da República vetou
o dispositivo que permitia que as matrículas de jovens e adultos fossem contabilizadas no
cálculo desse fundo, o que criou dificuldades para a expansão dessa modalidade de ensino.
Esse regime de colaboração entre a União e as esferas estadual e municipal do
governo acabou configurando uma redistribuição de funções entre essas instâncias bem
No contexto fiscal e tributário brasileiro, esse mecanismo induziu à municipalização do ensino fundamental, e foi acionado com base no suposto de que o investimento mais eficaz dos recursos municipais nesse nível de ensino daria maior liberdade aos estados para investir no ensino médio e à União para investir no ensino superior. […]
Com a aprovação da Lei 9424, o ensino de jovens e adultos passou a concorrer com a educação infantil no âmbito municipal e com o ensino médio no âmbito estadual pelos recursos públicos não capturados pelo Fundef. […]
As políticas de estabilização monetária e ajuste macroeconômico condicionaram a expansão do gasto social público às metas de equilíbrio fiscal, o que implicou a redefinição de papéis das esferas central e subnacionais de governo, das instituições privadas e das organizações da sociedade civil na prestação dos serviços sociais.34
Os documentos legais acentuam o pacto federativo da Constituição de 1988 e
refletem a disposição para um sistema de cooperação entre a União, os governos
subnacionais e o setor privado.
Maria Clara Di Pierro analisa esse contexto no âmbito da EJA:
Destacam-se as tendências à proliferação de provedores e à multiplicação de programas de educação de jovens e adultos implementados em parceria entre agentes governamentais e não-governamentais. Essas práticas inspiram-se em diferentes significados atribuídos aos conceitos de parceria e de serviço público não-estatal, que comportam tanto uma visão econômico-instrumental quanto uma perspectiva de democratização da esfera pública.35
O texto a seguir, extraído de uma matéria do jornal Folha de S.Paulo recapitula as
iniciativas governamentais para enfrentar o problema do analfabetismo:
Campanhas oficiais de alfabetização desde a década de 1940
1947 — O governo Eurico Gaspar Dutra começa a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos.
34
HADDAD, Sérgio & DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens e adultos. Op. cit., p. 123-4.
35
1952 — Inicia-se a Campanha Nacional de Educação Rural no governo de Getúlio Vargas.
1958 — Juscelino Kubitschek cria a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA), reestruturada em 1960.
1961 — O Movimento de Educação de Base, criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, visa extinguir o analfabetismo com escolas radiofônicas. Atende a 455671 alunos de 14 estados.
1962 — O professor da Universidade Federal de Pernambuco, Paulo Freire, propõe técnica que prevê ensino a partir do universo de cada grupo a ser alfabetizado.
1964 — Em 21 de janeiro, o método Paulo Freire vira programa oficial do governo, mas é extinto em 14 de abril, logo depois do movimento militar.
1967 — O regime militar (1964-1985) cria a Fundação Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) com o objetivo de alfabetizar 11,4 milhões de pessoas em quatro anos e erradicar o analfabetismo em oito anos (1975).
Até 1977, teriam sido alfabetizados 11,2 milhões, reduzindo a taxa de analfabetos para 14,2%. Os dados são questionados (o Censo de 1976 estimava 24%).
1985 — O Mobral é extinto, e é criada a Fundação Nacional de Educação de Jovens e Adultos (Educar) no governo José Sarney. Em quatro anos, a fundação atendeu a 5 milhões de analfabetos, de um total de 30 milhões.
1990 — O PNAC (Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania) é criado no governo Fernando Collor com o objetivo de reduzir em até 70% o número de analfabetos em quatro anos.
1993 — O Plano Decenal, firmado em 1993 por mais de 70 países sob a chancela da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), é assinado pelo presidente Itamar Franco. A taxa de analfabetismo deveria chegar a zero em 2003. 36
1997 — O governo de Fernando Henrique Cardoso cria o programa Alfabetização Solidária.
Em julho de 2002, atinge a marca de 3 milhões de alunos, em 2010 municípios.
36
2003 — Programa Analfabetismo Zero (depois mudado para Brasil Alfabetizado), do governo Lula, objetiva atingir 20 milhões em quatro anos.
O País luta há quase 60 anos contra o problema.37
Atualmente a educação de jovens e adultos está legalmente amparada na
Constituição Federal de 1988, que estabelece que "a educação é direito de todos e dever do
Estado e da família" e que o ensino fundamental é obrigatório e gratuito e a sua oferta deve
ser garantida para todos os que a ele não tiveram acesso na idade regular.
A LDB 9394/1996 destina uma seção à educação de jovens e adultos38, reafirmando o direito dessa parcela da população brasileira ao ensino básico, oferecido pelo poder
público de forma gratuita, estabelece novos limites de idade (15 anos para o ensino
fundamental e 18 para o ensino médio) e integra essa modalidade de ensino à educação
básica.
O Parecer 5/1997 do Conselho Nacional de Educação trata das denominações
"educação de jovens e adultos" e "ensino supletivo", estabelece os limites de idade para
jovens a adultos que pretendam se submeter a exames supletivos, entre outras questões.
A Resolução 1/2000 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e
Adultos.
Na década de 1990, paralelamente à busca de novos modelos de Estado e sociedade,
vivíamos um período de crise financeira e fiscal e de endividamento, quer entre esferas
governamentais — as prefeituras, os governos estaduais e o governo federal — quer no
âmbito externo, entre o país com agentes credores internacionais. Como já vimos no item
anterior, o caminho da globalização impôs ao Estado um projeto neoliberal, que abole a
noção de empreendedor e o substitui paulatinamente pela concepção de
Estado-mínimo. Nessa doutrina o Estado se desincumbe das responsabilidades pelas políticas
37
Folha de S.Paulo, 13/5/2003.
38
públicas, notadamente as sociais, e as transfere ao setor privado, regido pelos interesses de
mercado, ou a associações da sociedade civil. O Estado assim enxuto ganha a função de
gerenciamento e controle administrativo das políticas sociais.
Nosso entendimento é que é esse distanciamento do Estado em relação às ações de
EJA que configura a dispersão de materiais didáticos dedicados a essa modalidade de
ensino: dadas as grandes Editoras comerciais, somente duas delas tinham, na data da
realização deste trabalho, título de EJA; os outros exemplares colhidos na pesquisa eram
publicações resultantes de iniciativas diversas, como ONGs (a de maior repercussão era a
coleção da organização não-governamental Ação Educativa, inicialmente lançada em
parceria com o Inep), associações de professores, Editoras regionais.
Tudo o que foi exposto até o momento serve para propor uma explicação para a
base deste trabalho — a existência de poucos livros didáticos para a EJA em relação ao
volume existente para o ensino regular. A análise da materialidade dos livros selecionados
se desdobra um pouco também a partir dessas idéias e será feita nos capítulos 3 e 4, depois
da exposição das observações feitas sobre prática educativa em algumas instituições
escolares de EJA.
Antes, porém, será preciso retomar os estudos que já se fizeram no campo do livro
didático e sobre a EJA.
1.4 O livro didático e a forma escolar
O livro didático como recurso de ensino tem sua história, assim como a instituição
escolar. Comenius39, já no século XVII, dava alguns preceitos de como deve ser um livro didático: livro único, escrito por um único autor, com gradualidade e a ser usado em todas
as escolas.
39
A forma escolar hoje instituída tem cerca de 100 anos no Brasil.40 Dentre os recursos empregados nessa forma até hoje vigente na maioria das escolas do país — a
lousa, o giz, o professor à frente de um grupo de estudantes selecionados de acordo com a
idade cronológica, o ensino gradual, simultâneo e de conteúdo cumulativo dado num
espaço e numa carga horária definidos — está o livro escolar.
Sobre a vinculação do livro didático ao ensino formal, Marisa Lajolo discorre:
Didático é, então, o livro que vai ser utilizado em aulas e cursos, que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa utilização escolar e sistemática. Sua importância aumenta ainda mais em países como o Brasil, onde uma precaríssima situação educacional faz com que ele acabe determinando conteúdo e condicionando estratégias de ensino, marcando, pois, de forma decisiva, o que se ensina e como se ensina o que se ensina. […] Assim, para ser considerado didático, um livro precisa ser usado, de forma sistemática, no ensino-aprendizagem de determinado objeto do conhecimento humano, geralmente já consolidado como disciplina escolar. Além disso, o livro didático caracteriza-se ainda por ser passível de uso na situação específica da escola, isto é, de aprendizado coletivo e orientado por um professor.41
De Comenius aos nossos dias, o livro didático mudou, quer em seus aspectos
materiais quer no conteúdo e no seu uso. Como portador de conteúdos selecionados em
determinado tempo histórico, os quais se quer transmitir ou inculcar em gerações futuras, o
que equivale a dizer a selecionar e estender idéias42, o livro se define conforme as mentalidades da época, a tendência do pensamento educacional, do método de ensino, as
reformas, o entendimento do papel da escola, do professor e do aluno, do incremento da
atividade econômica do país, especialmente do setor editorial. Como produto comercial, o
livro também se define ao longo dos tempos conforme o desenvolvimento tecnológico, o
setor produtivo e a apropriação dessas novas tecnologias de produção e de difusão pelo
40
Dentre os autores que estudam o assunto, pode-se ver: SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola graduada no estado de São Paulo (1890-1919). São Paulo, Unesp, 1998.
41
LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, 16 (69): jan./mar. 1991.
42
setor editorial. Como signo cultural, a forma material que ele assume agrega, em certa
medida (além dos conceitos, que são culturais e determinados historicamente), a estética da
época. A distribuição do texto nas páginas, o uso de imagens, o tipo de traço, a tipologia
têm seu peso estabelecido como elementos significativos do texto impresso de acordo com
a confluência e a articulação dos agentes que definem sua materialidade e de seus
respectivos repertórios. O próprio entendimento de autoria é uma elaboração cultural e,
conseqüentemente, sua expressão material numa obra didática resulta da negociação entre
sujeitos ou grupos de agentes em determinado lugar e tempo.
Podemos dizer que, como produto cultural, o próprio papel do livro didático se
transformou e se transforma conforme as mentalidades, notadamente as que concernem às
idéias educacionais e à formatação do sistema educacional.
1.4.1 Estudos sobre livros didáticos e sobre educação de jovens e adultos
Até poucas décadas atrás, o livro didático era colocado na tradição acadêmica — o
que de certo modo se refletia na opinião púbica — como o cerne dos problemas
educacionais brasileiros. Um autor que bem destaca essa tendência é Kazumi Munakata, em
sua tese de doutorado na qual cita autores43 que assumiram a linha da análise ideológica, bem como transcreve episódios noticiados pela imprensa — o que, de certa forma, em
alguns momentos, assume tom anedótico, tamanho é o estigma que se atribui a esse produto
editorial:
Sobre os livros didáticos produzidos no Brasil recaiu série de acusações como se eles fossem os principais responsáveis pelas mazelas da Educação brasileira. Análises abstratas de
43
conteúdo denunciavam-lhes a ideologia subjacente, e abordagens de indústria cultural caracterizam-nos como instrumentos da hegemonia burguesa e da acumulação capitalista.44
Subitem da superestrutura, tema pouco valorizado para sondagens acadêmicas, o
livro didático era, grosso modo, estudado apenas para constatar a determinação direta entre
a base econômica e os sistemas simbólicos.
Entretanto, ultimamente tem-se verificado que o livro didático ganha legitimidade
como objeto de pesquisa no cenário intelectual, fato que se comprova pelos trabalhos de
Circe Bittencourt45, Kazumi Munakata, Célia Cristina F. Cassiano46, Luciana Telles de Araújo47, entre outros, que ultrapassam os limites impostos pelas lentes da análise ideológica e inscrevem o livro escolar como material portador de significações e
historicidade próprias.
Livro é signo cultural na e pela sua materialidade, pela sua natureza objetivada como mercadoria, resultado de uma produção para o mercado. A análise do livro requer, pois, a recusa do idealismo que sobrevaloriza a ideação da Obra e desdenha o momento da produção editorial. Ao contrário do que muitos acreditam, não há no livro a imediatez das idéias; é a soma (material) como elas se apresentam, tão desprezada em certos meios, que lhes confere possibilidade e ocasião de significação.48
Em função da grande divulgação do PNLD implementada em 1985, pelo volume de
materiais distribuídos e pelo montante de recursos financeiros envolvidos, o livro didático
ganhou visibilidade junto à opinião pública. Essa posição de destaque tem revertido
também em estudos acadêmicos, como os de Eloisa Höfling, que critica a concentração dos
resultados dos PNLD em número reduzido de Editoras — todas circunscritas na cidade de
44
MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo, PUC-SP/EHPS, 1997. Tese de doutorado.
45
BITTENCOURT, Circe M. F. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. São Paulo, USP/FFCLH, 1993. Tese de doutorado.
46
CASSIANO, Célia C. de Figueiredo. Circulação do livro didático: entre práticas e prescrições. São Paulo, PUC/EHPS, 2003. Dissertação de mestrado.
47
São Paulo —, e os de Antonio Augusto Gomes Batista, que analisa os PNLD, entre outros
aspectos.
Estudar o livro didático requer, portanto, atentar não só ao seu conteúdo, pois há que
se considerar a tradição crítica que o enquadra como produto cultural, mas também articular
seu significado entre os agentes que dele se utilizam ou participam de sua elaboração. Se,
por um lado, há (ou não) um conteúdo prescrito e, no caso dos PNLD, uma forma de
apresentação e de circulação, por outro lado, autores, editores, professores, pais, alunos,
opinião pública são agentes desse processo e reelaboram o produto nos âmbitos em que ele
lhes é destinado, re-significando-o conforme o uso que dele fazem.
Egil Borre Johnsen49 destaca três categorias de estudo do livro didático desenvolvidas no mundo: os que se centram no conteúdo (do ponto de vista da mensagem
ideológica subjacente); o da produção; e o do uso (em sala de aula).
Nosso objetivo aqui é estudar a produção do livro didático, ou seja, a sua
conformação material: o projeto editorial, o número de volumes, o número de páginas de
cada volume, a tiragem, a capa, as cores, os recursos gráficos, o conteúdo selecionado, a
linguagem, o processo editorial, a divulgação. Mas não se trata de qualquer livro didático,
mas daqueles destinados a jovens e adultos que não puderam completar seus estudos na
idade regular. Que contornos as Editoras fazem desse público? E que material é esse?
Como ele se diferencia dos demais materiais por elas disponibilizados aos estudantes?
No que se refere aos estudos do ensino de jovens e adultos, muitos são os trabalhos
desenvolvidos até o momento. Podemos destacar os que constam da obra organizada por
Sérgio Haddad através da entidade não-governamental Ação Educativa, que, entre outras
tarefas, dedica-se a prestar assessoria a órgãos governamentais e instituições a eles ligadas e
que produz materiais didáticos comercializados no mercado.
Sérgio Haddad organizou um estudo em que objetiva:
48
MUNAKATA, K. Op. cit. p. 18-9.
49
detectar e discutir os temas emergentes da pesquisa em educação de jovens e adultos no Brasil. A pesquisa compreendeu trabalhos que abordam as concepções, metodologias e práticas de educação de pessoas jovens e adultas, envolvendo questões relativas à psicologia da educação, à formação de educadores, ao currículo e ao ensino e aprendizagem das disciplinas que o compõem.50
A análise de materiais da Ação Educativa mostra que tais estudos concentram-se
prioritariamente em experiências localizadas de alfabetização, questões de formação do
professor, currículos, e não se detêm no estudo de livros didáticos, quaisquer que sejam os
aspectos: conteúdo, produção ou uso. Nas raras referências, o livro didático é mencionado
ao largo, como elemento coadjuvante dos processos em foco.
Chegando a essa parte de texto acreditamos ter explanado o cenário no qual se
localiza o objeto da pesquisa, os livros didáticos de educação de jovens e adultos:
exemplares de formatação variada derivados de iniciativas dispersas e muitas vezes
vinculadas à prática educacional localizada e, no segmento das maiores Editoras de livros
didáticos do país, apenas duas coleções dentre centenas de obras que compõem, em
determinados anos, uma produção que supera a marca de dezenas de milhões de
exemplares.
Como já vimos, a dispersão de publicações por organizações diversificadas, a
maioria das quais não vinculadas a Editoras comerciais que concorrem com outros produtos
no mercado, deve-se à descentralização das iniciativas no setor que foi se intensificando a
partir da década de 1990.
Também já se assinalou que o livro didático está intimamente ligado à forma escolar
disseminada há um século ao menos. Se considerarmos esse aspecto, é evidente que, na
ausência de uma forma escolar definida para a EJA e na indeterminação de continuidade
dos programas que se constituíram, os livros didáticos também não tenham se formatado
para essa modalidade de ensino. Se o ensino carece de livros, a recíproca também pode ser
50
verdadeira: o livro se define conforme o ensino, e as Editoras ressentem a ausência de uma
forma.
Os elementos analisados nas obras escolhidas (capa, imagens, autores, conteúdo)
refletem de alguma forma o quadro geral. Seguindo indagações do tipo “o quanto se agrega
nos livros didáticos de EJA comparativamente ao que se agrega nos livros didáticos
2. Observação de práticas em
instituições escolares de educação de
jovens e adultos
A opção por observar a prática em salas de aula foi movida pela intenção de avaliar
o uso que os estudantes de EJA faziam do livro didático. Consultou-se uma lista de
instituições de ensino do município de São Paulo que se dedicavam à oferta de EJA. Essa
lista havia sido montada com dados fornecidos no site do MEC no ano de 2003 e constava
do nome da instituição de ensino; da rede a que ela pertencia (estadual, municipal ou
particular); do telefone; endereço; e número de estudantes matriculados em EJA.
Pretendia-se entender como os alunos usavam os livros; se eles acompanhavam a
exposição teórica, se se entretiam com o material didático; como eles decifravam os
recursos dispostos nas páginas; de que maneira liam o que editores e autores haviam
selecionado e materializado sob a forma de livro.
Não havia a pretensão de decifrar a leitura individualizada, mas a maneira como o
livro se comportava como objeto de transmissão de conteúdos escolares em sala de aula na
comunidade de leitores formada por estudantes de EJA.51
Nessa etapa do trabalho, ainda não se tinha noção da organização dessa modalidade
de ensino, quer no município, no estado de São Paulo, tampouco no país. As várias
entrevistas feitas a coordenadores e professores, somadas à leitura da legislação e de textos
sobre a EJA, me permitiram concluir que ela é reconhecida e orientada pela LDB
9394/1996 e segue instruções do Parecer CNE/CEB 11/2000 e da Resolução CNE/CEB
1/2000. Fica a cargo de cada Conselho (estadual ou municipal) estabelecer a carga horária,
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a organização funcional das escolas, o sistema de avaliação, bem como, juntamente com a
Secretaria de Educação, credenciar os estabelecimentos de ensino.52
Assim, nos anos em que esta pesquisa se desenvolveu, a EJA era oferecida no
município de São Paulo nas seguintes formas:
Cieja (Centros Integrados de Educação de Jovens e Adultos) — treze unidades
no município de São Paulo, distribuídas por regiões e reguladas pela instância
municipal;
escolas da rede municipal;
escolas da rede estadual;
escolas particulares.
No ano de 2002 o Ministério da Educação criou o Exame Nacional de Certificação
de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), no qual podiam se inscrever jovens a
partir dos 15 anos de idade. Esse Exame podia ser utilizado pelas Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação como instrumento de certificação de conclusão do ensino
fundamental e médio. A avaliação era destinada às pessoas, matriculadas ou não em
escolas, que estivessem acima da faixa etária própria para cursar o ensino regular e ainda
não tinham concluído essa etapa da escolarização. 53
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A esse respeito, ver, além dos documentos oficiais citados: CURY, Carlos Roberto Jamil. Por uma nova Educação de Jovens e Adultos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO — formação de professores. Simpósios. Brasília, MEC/SEF, 2001. p. 308-10. v. 1. E PROPOSTA CURRICULAR PARA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS — segundo segmento do ensino fundamental. Introdução. Brasília, MEC/SEF, 2002. p. 79. v. 1.
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