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A guerra nos filmes e nos jornais : estudo comparativo de narrativas cinematograficas e jornalisticas sobre guerra

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

Wagner José Geribello

A GUERRA NOS FILMES E NOS JORNAIS

Estudo comparativo de narrativas cinematográficas e jornalísticas sobre guerra

Campinas 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

A GUERRA NOS FILMES E NOS JORNAIS

Estudo comparativo de narrativas cinematográficas e jornalísticas sobre guerra

Autor: Wagner José Geribello

Orientadora: Cristina Bruzzo

Campinas 2008

Tese apresentada para obtenção do grau de Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP, sob a orientação do Profa. Dra. Cristina Bruzzo.

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© by Wagner José Geribello, 2009.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP

Título em inglês : War in Films and Newspapers: A comparative study of cinema and journalismo storytelling regarding war Keywords : Cinema ; Journalism ; Child ; Education ; Storytelling

Área de concentração : Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação : Doutor em Educação

Banca examinadora : Profª. Drª. Cristina Bruzzo (Orientadora)

Prof. Dr. Amarildo Batista Carnicel Profª. Drª. Eloisa de Matos Hofling Prof. Dr. Laan Mendes de Barros Profª. Drª. Patrizia Piozzi

Data da defesa: 27/01/2009

Programa de Pós-Graduação : Educação e-mail : geribello@uol.com.br

Geribello, Wagner José.

G315g A guerra nos filmes e nos jornais : estudo comparativo de narrativas cinematográficas e jornalísticas sobre guerra / Wagner José Geriello. – Campinas, SP: [s.n.], 2009.

Orientador : Cristina Bruzzo.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Cinema. 2. Jornalismo. 3. Crianças. 4. Educação. 5. Narrativas I. Bruzzo, Cristina. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

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Maria Lúcia, Denise e Fábio... Conseguimos, de novo!!!

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Edeward e Neyde In memoriam

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AGRADECIMENTOS

Amarildo Carnicel, Cristina Bruzzo, Carlos Granja, colegas do doutorado, obrigado.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Cenário (Cena do filme Império do sol)...14

Figura 2. Contraste (Cena do filme Império do sol). ...14

Figura 3. Poder (Cena do filme Império do sol)...15

Figura 4. Imposição (Cena do filme Império do sol) ...15

Figura 5. Submissão (Cena do filme Império do sol) ...15

Figura 6. Presente (Cena do filme Império do sol)...17

Figura 7. Futuro (Cena do filme Império do sol). ...17

Figura 8. Movimento (Cena do filme Império do sol). ...18

Figura 9. Vaticínio (Cena do filme Império do sol)...18

Figura 10. Premonição (Cena do filme Império do sol). ...21

Figura 11. Marcas (Cena do filme Império do sol)...21

Figura 12. "No mama, no papa, no whisky soda"(Cena do filme Império do sol)...23

Figura 13. Sonho (Cena do filme Império do sol). ...25

Figura 14. Guerreiro (Cena do filme Império do sol) ...26

Figura 15. Preparação (Cena do filme Império do sol)... 26

Figura 16. Enquadramento (Cena do filme Império do sol)... 26

Figura 17. Rajada (Cena do filme Império do sol) ...26

Figura 18. Soldado (Cena do filme Império do sol). ...28

Figura 19. Visões (Cena do filme Império do sol). ...40

Figura 20. Guerrilha (Cena do filme Império do sol)... 40

Figura 21. Tocaia (Cena do filme Império do sol) ...41

Figura 22. Fogo cruzado (Cena do filme Império do sol). ...41

Figura 23. Vítimas (Cena do filme Império do sol)...42

Figura 24. Desarmado (Cena do filme Império do sol)...50

Figura 25. Abandono (Cena do filme Império do sol)...55

Figura 26. Normas quebradas (Cena do filme Império do sol)...55

Figura 27. Consciência (Cena do filme Império do sol) ...63

Figura 28. Regressão (Cena do filme Crianças invisíveis)...63

Figura 29. Olhar (Cena do filme Crianças invisíveis)...64

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x

Figura 31. Encontro (Cena do filme Crianças invisíveis)...64

Figura 32. Solidariedade (Cena do filme Crianças invisíveis)...65

Figura 33. Lembrança (Cena do filme Crianças invisíveis)...66

Figura 34. Negação (Cena do filme Crianças invisíveis)...66

Figura 35. Outro olhar (Cena do filme Crianças invisíveis)...67

Figura 36. Estranhamento (Cena do filme Crianças invisíveis)...67

Figura 37. Rendição (Cena do filme Império do sol)...72

Figura 38. Ameaça (Cena do filme Império do sol)...72

Figura 39. Incerteza (Cena do filme Império do sol)...73

Figura 40. Retorno (Cena do filme Império do sol)...73

Figura 41. Fuga (Cena do filme Império do sol)...73

Figura 42. Cinema na guerra (Cena do filme Império do sol)...79

Figura 43. Pesadelo (Cena do filme Império do sol)...86

Figura 44. Brinquedo (Cena do filme Império do sol)...89

Figura 45. Máquina de guerra (Cena do filme Império do sol)...89

Figura 46. Continência (Cena do filme Império do sol)...91

Figura 47. Combatentes (Cena do filme Império do sol)...91

Figura 48. Ousadia (Cena do filme Império do sol)...96

Figura 49. Inimigo (Cena do filme Império do sol)...96

Figura 50. Perigo (Cena do filme Império do sol)...96

Figura 51. Sorte (Cena do filme Império do sol)...96

Figura 52. Herói (Cena do filme Império do sol)...100

Figura 53. Aurora (Cena do filme Império do sol)...112

Figura 54. Camicase (Cena do filme Império do sol)...113

Figura 55. Saudação (Cena o filme Império do sol)...113

Figura 56. Banzai! (Cena do filme Império do sol)...113

Figura 57. Potência (Cena do filme Império do sol)...114

Figura 58. Decolagem (Cena do filme Império do sol)...116

Figura 59. Império do sol (Cena do filme Império do sol)...116

Figura 60. Destino (Cena do filme Império do sol)...116

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xi

Figura 62. Esperança (Cena do filme Império do sol) ...119

Figura 63. Euforia (Cena do filme Império do sol) ...119

Figura 64. Medo (Cena do filme Império do sol) ...119

Figura 65. Ataque (Cena do filme Império do sol) ...119

Figura 66. Combate (Cena do filme Império do sol) ...119

Figura 67. Cadilac dos céus (Cena do filme Império do sol)...121

Figura 68. Símbolo (Cena do filme Império do sol)...121

Figura 69. Destruição (Cena do filme Império do sol)...122

Figura 70. Retirada (Cena do filme Império do sol)...128

Figura 71. Cerimônia (Cena do filme Império do sol)...129

Figura 72. Abnegação (Cena do filme Império do sol)...129

Figura 73. Derrota (Cena do filme Império do sol)...129

Figura 74. Redenção (Cena do filme Império do sol)...130

Figura 75. Morte (Cena do filme Império do sol)...130

Figura 76. Fim/Começo (Cena do filme Império do sol)...131

Figura 77. Espectro (Cena do filme Império do sol)...131

Figura 78. Amizade (Cena do filme Império do sol)...132

Figura 79. Resgate (Cena do filme Império do sol)...132

Figura 80. Incidência do termo guerra nos jornais – outubro 2004...170

Figura 81. Lembranças da infância, críticas da atualidade (Carta Capital abr.mai. 2005)...187

Figura 82. Mapa de guerra (O Estado de S. Paulo - encarte 20jul 2008) ...194

Figura 83. Resgate cinematográfico (O Estado de S. Paulo 03jul 2008)...202

Figura 84. Parece um filme (O Estado de S. Paulo 03jul 2008)...203

Figura 85. Betancourt/Bergman (O Estado de S. Paulo 13jul 2008)...214

Figura 86. Show da vida, show nas telas (O Estado de S. Paulo 14jul 2008)...215

Figura 87. Primeira página: a ameaça vem do oriente (O Estado de S. Paulo 10jul 2008). ...219

Figura 88. Guerra imaginada: a ficção vira notícia (O Estado de S. Paulo 10jul 2008)...220

Figura 89. A "realidade" falsificada (O Estado de S. Paulo 11jul 2008)...222

Figura 90. "Desculpe a nossa falha" (O Estado de S. Paulo 13jul 2008)...223

Figura 91. Uma foto, muitas verdades (O Estado de S. Paulo 20jul 2008)...228 Reprodução técnica e diagramação das ilustrações por Denise Geribello e Carlos Granja.

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xiii

RESUMO

Este trabalho compreende o estudo comparativo de narrativas cinematográficas e jornalísticas sobre guerra, objetivando subsidiar a análise de textos do jornalismo impresso contemporâneo a partir de referenciais observados na linguagem do cinema.

Metodologicamente, o estudo inclui duas partes distintas, a primeira representada pela análise de um filme de guerra, observando os recursos narrativos e a segunda focada na investigação em matérias jornalísticas sobre guerra, a partir de elementos recolhidos na primeira parte.

Necessário salientar que o recorte do objeto filmográfico privilegia o olhar da criança sobre a guerra como recurso narrativo com fins específicos.

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xv

ABSTRACT

The comparative study of cinema and journalism storytelling regarding war is the aim of this work. The work focuses the daily newspaper and magazines analyses by a cinematographic point of view.

Methodologically, this study has two parts. The first one analyses a war movie, considering it as a storytelling. The second one applies the same sort of investigation in the war headlines.

It is important to highlight that the preset study considers the child´s point of view as an specific kind of movie storytelling.

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xvii SUMÁRIO Dedicatória... iii In Memorian... v Agradecimentos... vii Lista de figuras... ix Resumo... xiii Abstract... xv PRÓLOGO 1 INTRODUÇÃO 5 PARTE I 9 A guerra ameaçadora... 11 Gêneros cinematográficos... 29 A guerra presente... 39 Ambientação cinematográfica... 43 A guerra transformadora... 54 O olhar da criança... 57 A guerra destruidora... 70

Cinema, guerra e espectador... 79

A guerra heróica... 85

Cinema de guerra: heroísmo e crítica... 100

A guerra espetacular... Espetacularização como recurso narrativo... A guerra final... Modos de ver a guerra... 109 124 127 134 PARTE II 153 Recortes de imprensa... 155

Interesse público x interesse do público... 160

Narrativa jornalística... 171

Guerra: observação e narrativa... 174

Olhar o cinema para (re)ver o jornalismo... 183

Narrativas de guerra... 186

O menino que viu a guerra... 186

O poder da síntese e o valor da imagem... 193

Missão resgate: a realidade mostrada como filme... 200

O foguetório iraniano... 218

Nos braços da guerra... 227

Conclusão 235

Bibliografia 245

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PRÓLOGO

Dois de julho de 2008. Em um ponto remoto da Amazônia colombiana dois helicópteros de fabricação russa, modelo Mil Mi 17, se aproximam de uma clareira na floresta. Um deles pousa sobre o terreno coberto pela vegetação rasteira, o outro desvia o curso de vôo e se afasta do local. O aparelho pousado permanece exatamente vinte e dois minutos e treze segundos no solo, tempo suficiente para guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, orientarem o embarque de quinze reféns: onze civis e militares colombianos, três norte-americanos e a franco colombiana Ingrid Betancourt, seqüestrada seis anos antes, na região de El Caguán. Dois guerrilheiros também são embarcados e a informação que circula no local é que os reféns passarão a ser custodiados por organizações humanitárias internacionais credenciadas a conduzir negociações de libertação com o Alto Secretariado, o comando operacional das FARC. Em seguida o helicóptero decola e desaparece sob o mesmo céu azulado de onde havia chegado. Minutos após a decolagem, os guerrilheiros a bordo são manietados. Em júbilo, os reféns ouvem o comunicado de que se trata de uma operação de resgate conduzida pelas forças colombianas de defesa e segurança para libertá-los e que o helicóptero já está em curso de vôo para uma base aérea militar ao sul de Bogotá. Paralelamente, a mídia internacional começa a divulgar as primeiras notícias sobre a operação Xeque, que colocou a Colômbia na ordem do dia do noticiário internacional.

A operação que resgatou os reféns em poder das FARC, incluindo a ex-candidata à presidência da Colômbia, Ingrid Betancourt, sem dúvida a refém mais conhecida e de maior exposição midiática do grupo resgatado, retumbou como manchete nos principais veículos de comunicação impressa na manhã seguinte, três de julho, uma quinta-feira, como pode ser observado na edição do jornal O Estado de S. Paulo1, sob muitos aspectos considerado o mais importante veículo do jornalismo impresso brasileiro.

Além da manchete de capa, a edição em questão de O Estado noticiou a operação de resgate em quatro páginas internas, ocupando praticamente todo o espaço disponível para a editoria internacional daquela data, reunindo matérias produzidas pelos jornalistas do próprio veículo e despachos de agências internacionais, sobretudo AFP, AP, EFE e Reuters. O texto da

1 Os jornais e revistas analisados não serão mencionados como fontes bibliográficas, mas como objeto de pesquisa.

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primeira e principal notícia desse conjunto, publicada na página A12, logo no primeiro parágrafo recorre à palavra "cinematográfico" (adjetivo) para levar ao leitor dimensões e características da ação conduzida pelos colombianos no interior da selva. Na mesma edição, na página seguinte, A13, o termo volta a aparecer como recurso para descrever o evento, desta feita em matéria que trata das primeiras impressões da própria Ingrid Betancourt sobre a sua libertação.

Evidentemente o resgate continuou a freqüentar com intensidade as páginas da editoria internacional de O Estado ao longo das semanas subseqüentes, criando oportunidade para o retorno freqüente do termo "cinematográfico" referindo-se à operação, incluindo, entre usuários, o próprio correspondente do jornal, Lourival Sant'Ana, enviado à Colômbia para cobrir o evento, além do escritor peruano Vargas Llosa, em artigo sobre o tema, publicado na edição de treze de julho de 2008. Enfim, a referência ao cinema foi tão intensa, que apareceu até mesmo em textos complementares do infográfico publicado em cinco de julho, sintetizando a seqüência geral, os momentos mais dramáticos e os pontos críticos da operação.

A observação mais detalhada dos textos e do contexto em que transparecem as referências ao cinema faz ver que o recurso vai além da busca de terminologia capaz de oferecer ao leitor as dimensões do fato noticiado, recorrendo à velha proposta de que a vida imita a arte. O termo valeu, também, para emprestar caráter inusitado e incomum ao acontecimento. Tal como empregadas no tratamento da operação de resgate, que extraiu das selvas os quinze reféns das FARCs, as referências ao cinema parecem objetivar menos a descrição do evento, em si mesmo, do que dar conta das dimensões capazes de legitimar a espetacularização midiática do ocorrido. Vale dizer, o noticiário, na forma e no modo escolhidos pelo veículo em observação, não se explica somente pela importância (política, social, militar, etc.) do fato noticiado, mas, também, pela intenção de criar uma narrativa de interesse, de caráter peculiar do ponto de vista midiático, capaz de tornar o resgate espetacular, inusitado, merecedor da atenção do leitor.

A idéia de que a realidade cotidiana deixou de justificar presença no noticiário tem incentivado a requalificação apriorística de fatos e ocorrências por parte da mídia, que se ocupa cada vez mais de encontrar (ou fabricar) grandiloqüência e estupefação naquilo que é noticiado, contribuindo para que a referência ao que é informativo, ainda que simples e comum, deixe de caracterizar o texto jornalístico. Agora, para além do fato, a notícia precisa também do drama e da tragédia, preferencialmente tecnificadas por recursos narrativos modernos, por exemplo, usando meios parecidos com aqueles vistos no cinema, para atrair e entusiasmar o leitor,

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justificando, pelo caminho do espetáculo, o espaço e a dimensão que o noticiário ocupa nos periódicos.

Assim, pode ser observado nessa modalidade contemporânea de fazer jornalismo o uso de referenciais cinematográficos, entre os quais a narrativa, para a construção do noticiário. Por isso, o resgate conduzido pelas forças colombianas precisou ser redimensionado para, depois, ocupar o noticiário nas dimensões e na modalidade mais envolventes. O fato de reféns terem sido libertados, com todas as conseqüências dessa ação na geopolítica sul-americana, pareceu pequeno demais para justificar manchetes e espaços que a mídia decidiu dedicar ao tema. Daí, foi preciso recolorir os fatos e reinterpretar os atos com um pouco mais de tempero, emprestando doses de audácia e ousadia ao plano que, cinematograficamente travestido, agregou estofo suficiente para aquele fato repercutir na mídia, como fora um filme.

Dissipadas as diferenças entre a conotação cinematográfica ficcional e o relato jornalístico fatual, a simbiose entre o fato que vira filme e o filme que (re)dimensiona o fato passa a ser lugar comum no universo comunicacional. Na esteira dessa proposição, exatos dez dias depois de ser "cinematograficamente" resgatada aos guerrilheiros das FARC, Ingrid Betancourt foi equiparada a outra Ingrid famosa, a Bergman, atriz sueca três vezes premiada com o Oscar. A comparação apareceu em artigo assinado por Sérgio Augusto, na edição de treze de julho, domingo, do suplemento de cultura de O Estado de S. Paulo. No texto, o articulista carioca amarra uma série de cordões que associam as Ingrid no cinema e na vida (real?), com possibilidades cada vez mais reduzidas de observar superfícies de separação claras entre ambas.

Ainda na linha de garantir aos fatos perfil cinematográfico, a edição subseqüente, de quatorze de julho, do mesmo jornal, publica informações sobre o interesse de Hollywood em transformar em filme o já cinematograficamente classificado resgate, mencionando a impossibilidade de separar Ingrid Betancourt, a pessoa, de Ingrid Betancourt a personagem que, tal e qual heroína das telas, enfrenta as privações próprias da condição de refém em moldes reconhecidamente cinematográficos e que, também em moldes não menos cinematográficos, foi resgatada em uma operação que aconteceu em um canto desconhecido da selva colombiana, mas poderia (deveria) ter acontecido na frente da câmera, sob a luz dos refletores e ao som da claquete... ação!

A observação desse esforço para fazer a notícia parecer cinema, quebrando paradigmas históricos e questionando dogmas tradicionais da imprensa, gerou a questão central da reflexão

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costurada neste trabalho, baseada na idéia de que a análise crítica do relato jornalístico pode se fazer, entre outras possibilidades, pela associação com a narrativa cinematográfica.

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INTRODUÇÃO

Este é um trabalho sobre narrativa, aqui entendida, grosso modo, como recurso usado por um dado emissor para fazer chegar a um receptor determinado conteúdo. Dentre as possibilidades todas que as narrativas podem assumir para a realização desse intento (fazer circular conteúdos do emissor para o receptor) este trabalho ocupa-se de duas formas ou gêneros específicos, designadas pelas adjetivações jornalística e cinematográfica, cuja classificação é tratada nas partes iniciais do trabalho.

Por outro lado, assim como o recorte do objeto de investigação restringe as formas narrativas pesquisadas, também o conteúdo de que tratam pretende-se bem específico e delineado, resumindo-se à guerra o assunto de narração, o que resulta na possibilidade de circunscrever a pretensão do trabalho a um exercício de investigação comparativa e reflexão sobre narrativas de guerra verificadas no cinema e no jornalismo.

A expectativa de dar legitimidade acadêmica e algum interesse científico à procura de pontos de intersecção entre a narrativa de guerra adotada pelo cinema e aquela outra praticada pelo jornalismo reside na proposta de que ambas mantém similaridades e peculiaridades comuns, que, articuladas de um modo específico, podem ajudar a entender com mais clareza o modo de fazer jornalismo, configurando o objetivo do texto. Além disso, cabe assinalar que a reflexão crítica sobre o que divulgam as páginas da imprensa representa preocupação pertinente e conveniente à condição de professor de jornalismo do autor, fato que também serve para explicar o abrigo desta tese em um programa de pós-graduação em educação.

Metodologicamente, o caminho pretendido está baseado na análise de um filme de guerra, procurando observar como essa modalidade de narrativa seleciona, recorta, se aproxima, reproduz e, principalmente, representa esse objeto de narração. Segue a preocupação de estabelecer um diálogo com propostas teóricas, analíticas e deontológicas que definem os modos como o jornalismo deve representar aquele mesmo objeto e como essa representação efetivamente acontece, usando a narrativa cinematográfica como parâmetro de análise.

Sabe-se que a presença da guerra no universo cinematográfico é intensa, seja porque o tema freqüenta as telas há muito tempo, seja pela quantidade e pela variedade que emolduram essa permanência. Por isso mesmo, falar da guerra no cinema significa considerar volume e variedade consideráveis de filmes, esparramados por locais de origem e períodos os mais

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diversos. Além disso, o modo de tratar a guerra pelo cinema não é menos intenso e volumoso que a quantidade de vezes que o tema perpassa essa forma de narração, indo desde a menção superficial e efêmera, até a ambientação mais direta e flagrante, cobrindo produções em que cenas foram colhidas no próprio ambiente do conflito (os filmes genericamente chamados documentais), ou aquelas outras em que as guerras mencionadas (mostradas) nem mesmo existiram, como pode acontecer em produções classificadas como ficção, dando conta de contendas travadas em épocas futuras e mundos distantes ou inexistentes no universo real, criando guerras que nunca existiram. Além disso, o cinema pode mostrar a guerra de modos distintos quanto ao enfoque, ou seja, fazer comédias sobre ou ambientadas na guerra, usar a guerra como cenário para um filme romântico e por aí afora.

Frente à amplitude de possibilidades, mostrou-se conveniente arrolar algumas considerações sobre o cinema de gênero, focadas na cinematografia americana produzida em Hollywood e, deste acervo, selecionar um filme como objeto de análise2, por sua vez também marcado por uma especificidade narrativa, representada pelo destaque de uma personagem infantil.

A partir da visão da criança em direção à guerra, tal e qual mostrada no filme, o que se ensaia aqui são algumas considerações sobre formas, finalidades e características do noticiário jornalístico a respeito do mesmo tema, sem perder a perspectiva dos objetivos comunicacionais próprios de cada um, basicamente representados pelo entretenimento, no caso do cinema e pela informação, no que respeita ao jornalismo.

Por outro lado, da mesma forma que são amplos e variados os modos de tratamento da guerra pelo cinema, o próprio conceito de conflito bélico é também vasto e diversificado, ora representando objeto da filosofia, ora ocupando tratados da história, da antropologia ou da sociologia, além das ciências aplicadas que se entendem autorizadas a apropriar-se da guerra enquanto objeto de estudo e reflexão teórica, como é o caso da diplomacia e dos estudos estratégicos. Nesses termos, quando conveniente ou necessário, o texto traz considerações sobre o assunto, com a indicação dos autores consultados e das posturas por eles adotadas no que respeita ao conflito bélico como objeto de ponderação.

2

Observar que a seleção de um único filme para análise focal não impede nem desautoriza a citação pontual e esporádica de outras produções cinematográficas, no sentido de exemplificar ou consolidar propostas, reflexões e análises constantes do texto.

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No campo do jornalismo, a interface com a guerra será considerada a partir de uma pesquisa sobre a incidência do termo guerra na mídia impressa, cujos resultados, tabulados, estão integralmente adidos ao trabalho, na forma de tabela. A partir do que pode ser observado como resultado da pesquisa, são exercitadas algumas reflexões centradas no binômio guerra/jornalismo, mediante a análise do noticiário sobre o assunto. Essas análises do noticiário são conduzidas à luz de propostas teóricas sobre práticas ideais e concretas do jornalismo, considerando, em especial, aquelas de viés sociológico, que entendem a comunicação social como ciência aplicada.

Por fim, considerando que os objetos de análise – o cinema e o jornalismo – são morfologicamente observados como narrativas, o estilo redacional aqui adotado procura seguir a mesma vertente, um pouco por afinidade do autor com esse “jeito de fazer textos”, outro tanto para emprestar coerência e coesão entre texto e conteúdo, mas, sobretudo, para demonstrar, pelo próprio discurso da pesquisa, que há muito para ser descoberto e outro tanto a ponderar quando processos comunicacionais são observados como narrativas, incluindo o jornalismo. Trata-se, portanto, de um tema e de um modo de escrever que procuram expor o potencial e os limites da narrativa, tanto como forma de expressão, quanto objeto de análise, na tela do cinema, nas páginas do jornal e no entrelinhamento deste texto.

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A GUERRA AMEAÇADORA

A produção hollywoodiana Império do sol (Estados Unidos, 1987)3 é a transposição para o cinema da novela de J. G. Ballard, ambientada na China à época da Segunda Guerra Mundial, durante a invasão japonesa daquele país. Dirigido por Steven Spielberg, o filme tem como personagem principal um garoto inglês, James Graham, (interpretado por Christian Bale), aprisionado pelo exército de ocupação japonês e levado para um campo de concentração. A personagem é o alter ego do autor do livro que serviu de base para o roteiro, assinado por Tom Stoppard. James Grahan é filho de uma família aristocrata (seu pai é um próspero industrial do ramo de tecelagem) e convive com a comunidade ocidental que habita a cidade de Xangai.

Apesar do nome, James, a personagem é chamada freqüentemente de Jim e Jamie, o que reforça sua condição de criança, primordial para a construção do modo de ver a guerra objetivado pelo diretor do filme.

O foco da análise aqui pretendida é representado pela relação entre a personagem infantil (no caso também a personagem principal) e a guerra, estabelecida de forma direta desde o início do filme, considerando o tempo-narrativo, definido a partir do ano de 1941, em que a história registra um “estado de guerra não declarada” entre o Japão e a China, com a ocupação de porções do território chinês pelas forças militares japonesas, incluindo a cidade de Xangai4. A primeira menção ao tempo/espaço que forma o ambiente da narrativa é feita através de um roll5 de caracteres que antecede as primeiras cenas do filme. O texto descreve a situação político-militar do período, naquela região do globo e termina mencionando a iminência do ataque à base estadunidense de Pearl Harbor, no Havaí, momento emblemático da história americana, cuja citação no filme será comentada posteriormente.

Nos termos da análise exercida neste trabalho, o primeiro ponto de observação é a referência ao “estado de guerra não declarada” mencionado no roll de caracteres. O termo, relativamente freqüente na terminologia diplomática e bastante comum também no texto jornalístico, indica uma situação militar específica, em que forças opostas mantêm algum nível de

3 O título dos filmes citados será sempre grafado em itálico. Na primeira citação serão indicadas, entre parênteses, a

origem e a data de lançamento do filme, recolhidas da bibliografia consultada pelo autor ou do sítio eletrônico International Movie Database. Quando não localizado o título em português, escreve-se o título no original, seguido da tradução literal.

4 Sobre a situação político-militar asiática do período Cf. FELIPE, 2005.

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enfrentamento, que pode ir da demonstração de poder (desfile e exibição de tropas e armamentos, manobras, no mais das vezes em região fronteiriça, tudo isso acompanhado, quase sempre, de forte divulgação comunicacional e midiática), até combates esporádicos de intensidade variável, sem, no entanto, haver reconhecimento tácito de uma situação efetiva de guerra entre as forças envolvidas no processo. Em última análise, trata-se de um eufemismo do discurso político, que, frente a diversas possibilidades de entendimento, serve para demonstrar a complexidade do conceito de guerra. Entre outros aspectos, esse conceito incorpora noções de escalonamento, as quais podem levar à conclusão que determinadas guerras são mais intensas que outras, a partir de uma graduação “técnica” diferente daquela reconhecida pelo senso comum. De acordo com essa graduação de senso comum, a intensidade da guerra, no mais das vezes, é medida por dimensões físicas (na falta de termo melhor), como tempo de duração, quantidade/variedade de forças envolvidas, número de vítimas, coeficientes de destruição, etc. Todavia, a graduação “técnica” é diferente. Na parte inicial da sua obra, Da Guerra, em que trata da natureza dos embates armados, von Clausewitz (1969, p. 18) ensaia reflexões sobre o tipo e os graus de intensidade dos conflitos, que podem ir “desde a guerra de extermínio ao simples reconhecimento militar”. Da mesma forma, Nicolau Maquiavel (2003) também trata do componente ostensivo da guerra e da exibição perante o inimigo, afirmando, sobre a reunião de homens para formar um exército: “(...) deve (o general) fazer com que o inimigo os conheça gradualmente, às vezes marchando nas proximidades do inimigo e, outras vezes, aquartelando-se em local onde o inimigo possa vê-los bem”. (Maquiavel, 2003, p. 22). O assunto será retomado mais à frente, em discussões sobre conceitos e interpretações de guerra.

Para o momento, relacionado ao contexto em que se apresenta, importa notar que o conceito de guerra é mais complexo do que pode parecer à primeira vista e a interpretação aqui sugerida procura dar conta dessa complexidade, tendo como epicentro de reflexão o envolvimento do jovem Jim Graham com a situação de conflito que ele “vive” enquanto personagem do filme.

Após a apresentação do contexto político, social e histórico formador do cenário e do ambiente em que vai se desenrolar a ação do filme, as seqüências iniciais substituem o relato histórico formal, estéril, objetivo, direto e neutro (tanto quanto possível) do texto em roll, pela

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linguagem cinematográfica propriamente dita, estruturando uma forma de narrativa baseada em oposições, que vai marcar fortemente a parte inicial do Império do sol6.

A leitura de narrativas cinematográficas usando como chave critérios de oposição não representa, propriamente, uma novidade. Alguns exemplos podem ser citados, para demonstrar exercícios de interpretação do discurso que se expressa na tela a partir da observação dos opostos. Em um interessante trabalho sobre a composição social da figura do jornalista a partir de personagens-jornalistas mostradas pelo cinema, Stella Senra analisa o filme de Roger Spottiswoode, Sob fogo cerrado (Estados Unidos, 1984) assinalando oposições. Segundo ela, o enredo foca o conflito entre verdade e mentira a partir do trabalho de um repórter fotográfico cobrindo a guerra movida pela Frente Sandinista de Libertação da Nicarágua contra a ditadura somozista. Raciocinando a partir de oposições, Senra escreve sobre as personagens:

Ao se entregarem a esse jogo entre realidade e aparência, verdade e mentira, guerra e fotografia acabam por terem intercambiados seus respectivos papéis: a guerra, ao se tornar espetáculo (...) e a fotografia por interferir (...) na guerra, podendo até mesmo modificar o seu rumo. (SENRA, 1997, p. 155).

Do mesmo modo, François Albera (2002), ao investigar as relações estruturais de Outubro (Ex-União Soviética, 1928) de Sergei Eisenstein, resgata analogias, inversões e oposições observadas no filme. Na comparação entre a primeira e a segunda seqüências, respectivamente o levante nas pontes sobre o Neva e a tomada do Palácio de Inverno, o pesquisador entende que os dois fragmentos estão, estruturalmente, em uma relação a um só tempo de analogia e inversão e demonstra: “Analogia, pois nos dois casos os protagonistas são divididos em uma oposição

homem versus mulher (...); inversão, pois muda o sentido da oposição derrota/vitória,

morte/vida.” (ALBERA, 2002, p. 285).

No caso do Império do sol, uma leitura edificada sobre oposições revela a contribuição do filme para algumas reflexões interessantes sobre a guerra.

Assim, apesar da advertência expressa nos caracteres iniciais de que a situação na região em que o filme está ambientado não configura, a rigor, situação de guerra, a primeira imagem da

6 Para facilitar a análise, o filme foi dividido em partes, tomadas como unidades de interpretação ao longo do texto.

A divisão adotou como superfície de separação as diferentes condições nas quais a personagem infantil se encontra ao longo da narrativa, em relação às conseqüências que a invasão japonesa da China provoca no contexto espaço/temporal que responde pela ambientação da película. Os subtítulos que tratam da análise de cada segmento do filme concentram-se na primeira parte da tese, sempre designados pela palavra guerra, seguida de um adjetivo. Por exemplo: A Guerra Ameaçadora, A Guerra Presente, A Guerra Transformadora, etc.

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cidade de Xangai surge na tela descortinada pela bandeira de guerra7 japonesa, tremulando no mastro de um navio de combate que navega à frente do porto chinês (fig. 1), mostrando que a situação caminhava célere para o conflito armado total e declarado.

Mas a relação de oposição nessa seqüência se manifesta, ainda, no contraste entre a cena da bandeira e a trilha musical da seqüência, marcada pelo som de um coral infantil, ensaiando uma Suo Gân8, sugerindo paz e tranqüilidade. A oposição volta a se manifestar na cena seguinte, que mostra o coral formado por garotos ocidentais e, em destaque, a personagem principal, ostentando a bandeira inglesa (em oposição à japonesa), integrada ao monograma bordado no bolso do casaco do uniforme escolar (fig. 2). Dessa forma, a seqüência salta do cenário militarizado do porto de Xangai, patrulhado por belonaves japonesas, para o ambiente pacífico e solene de uma capela onde ensaia um coral infantil, apresentando assim os pólos da oposição.

Figura 1. Cenário. Figura 2. Contraste.

A seqüência mostra Jim Grahan voltando para casa a bordo de um automóvel de luxo, acompanhado do motorista e da preceptora. Em close, uma das cenas foca o dragão que enfeita o capô do Packard literalmente cortando as ruas de Xangai (fig. 3), simbolizando o poder colonial britânico (ocidental) sobre o território e o povo da China. Esse contraste se acentua quando Jim olha (e a câmera enquadra) um velho sentado na calçada batendo uma lata no chão, pedindo esmolas, contrapondo a criança rica ao ancião mendigo (figs. 4 e 5).

7 Além da bandeira nacional, alguns países adotam flâmulas para suas forças armadas, chamadas bandeiras de guerra.

O Japão manteve esse ritual até o final da Segunda Guerra Mundial, usando a bandeira do sol raiado em tempos de guerra, ao lado da bandeira nacional, com o disco solar no centro de uma superfície totalmente branca. (n.a.)

8 Canções suaves e ternas, de origem gaélica, escritas para momentos de celebrações por compositores anônimos (n.

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Figura 3. Poder.

Figura 4. Imposição. Figura 5. Submissão.

Dessa forma, a seqüência inicial expõe contrastes e oposições que marcam o binômio tempo/espaço formador da ambientação do filme.

Ainda nessa parte inicial há uma cena estruturada em um longo travelling9 mostrando a mãe de Jim tocando piano, sobre o qual repousam fotografias da família, compondo o típico ambiente do lar britânico burguês, estável, organizado e opulento (fig. 6). O contraste vem na

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cena seguinte, que mostra o jardim da mansão, onde o garoto circula de bicicleta segurando um modelo de avião em chamas, lembrando mais uma vez a ameaça da guerra ao ambiente de paz e segurança (fig. 7).

O diálogo que Jim mantém com seu pai reforça o contraste.

Observando a passagem de aviões de combate japoneses sobre a casa, o garoto menciona a proximidade da guerra e pondera sobre vencedores prováveis, obtendo do pai uma resposta visceralmente britânica, arrogante e imprecisa, como segue: a pergunta –“pai, quem vai ganhar a guerra?” a resposta – “nós, é claro!” Mais à frente, o pai pondera, de novo incorrendo em erro que vai se manifestar no futuro, sugerindo que a guerra que se avizinha se dará entre orientais e não deverá afetar os ocidentais... – “essa guerra não é nossa”, determina o pai de Jim, encerrando o diálogo.

Todavia, não é esse o entendimento do garoto, pois se o etnocentrismo aliado a uma visão equivocada do contexto leva o adulto à plena convicção de que a luta entre japoneses e chineses não deverá afetar profundamente o ocidente (e os ocidentais), representando ameaça menor, a criança coloca-se como observador mais sensato e realista da situação, configurando uma visão que, ao fim, vai se revelar mais ajustada à ordem dos acontecimentos subseqüentes. A comparação de forças (armamento, recursos, treinamento, disposição para a luta, etc.) leva o garoto a acreditar que os japoneses, naquele momento, contradizendo a expectativa manifestada por seu pai, mostram-se melhor preparados para o combate que os seus futuros rivais ocidentais, colocando a visão da criança mais próxima da verdade evidenciada pelos fatos e representada pelo objetivo estratégico acalentado pelo país do sol nascente àquela época, quer seja, a constituição do Império do Sol (origem do título do filme), a dominação nipônica de todo o extremo oriente. Mais tarde, a história viria confirmar essa previsão do jovem britânico, creditando ao exército imperial nipônico a ocupação de vastos territórios continentais e insulares na Ásia e por todo o oceano Pacífico, até as bordas do Índico, com um saldo de cinco anos para que o ocidente conseguisse reverter a situação.

Essas relações de oposição podem ser interpretadas por diferentes vertentes e se manifestam, principalmente, no ponto em que o filme mostra a massa popular chinesa, literalmente comprimida por uma situação de (pré)guerra, contraposta às benesses da burguesia, sobretudo estrangeira.

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Após a já mencionada apresentação da personagem principal e da ambientação da narrativa, o enredo da parte inicial do filme compreende o deslocamento de automóvel através de Xangai das famílias ocidentais, mostradas como gente rica e poderosa. Mas os veículos se movimentam com dificuldade, pois as ruas estão apinhadas de refugiados da invasão japonesa, numa seqüência bastante pertinente para a visualização das oposições acima enumeradas (fig. 8).

Figura 6. Presente. Figura 7. Futuro.

O deslocamento leva as famílias ocidentais (nuclearmente constituídas: pai, mãe e poucos filhos) a uma mascarada10 e o espectador pode observar uma profusão de fantasias arquetipicamente apropriadas (?) para tais ocasiões, como determina a cultura ocidental. As fantasias são alegóricas, marcadas por cores fortes e contrastantes, emprestando, ao usuário, incontornável aspecto de ridícula futilidade. Em contraposição às fantasias (e aos fantasiados), as cenas mostram (quase sempre em um único enquadramento e no mesmo plano) as condições da massa chinesa, que se desloca em sentido contrário (grifo enfático), carregando pertences triviais, demonstrando condições precárias de sobrevivência e expressando pavor por conta da iminente chegada dos invasores. Insensíveis à situação, irredutíveis ante suas “obrigações sociais” e isolados em seus veículos (o jogo de plano e contra-plano da seqüência usa e abusa de

10 Trata-se de um baile a fantasia incluída na "agenda social" de diplomatas e figuras de projeção da comunidade

estrangeira na China (européia, sobretudo). Quem lê romances de época, principalmente ingleses, conhece a visão do mundo colonial e imediatamente pós-colonial (século XVIII e primeira metade do século XX) mostrando como era fértil esse gênero de "encontro social" em que a comunidade européia procurava resgatar valores culturais, reproduzindo seu "modus vivendi" além mar. Ver, p.ex., O cerco de Krisnapur (Farrell, 1990). Os caracteres iniciais do filme também fazem menção e esse aspecto da colonização européia. O cinema também já tratou do assunto em inúmeras oportunidades. No clássico Lawrence da Arábia (Estados Unidos, 1962) , de David Lean, a reação dos ingleses à entrada da personagem principal no Clube de Oficiais Britânicos, vestido de árabe, após atravessar o deserto de Nefud, pode ser tomado como exemplo dessa “reserva cultural” mantida pelas potencias metropolitanas nas colônias.

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tomadas feitas do interior do veículo e tomadas do veículo – e de seus ocupantes – pelo lado de fora), os adultos ostensivamente assumem posição de insensível estoicismo e procuram ignorar a situação que, no entanto, não deixa de chamar a atenção da personagem infantil.

Figura 8. Movimento.

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A primeira oposição observada na seqüência é de ordem social, mostrando como a comunidade ocidental, que incorpora diplomatas e homens de negócio, mantém um modo de vida marcado pelo conforto, ostentação, poder e riqueza, explorando os nativos como força de trabalho servil. A segunda oposição é de ordem étnica, em que a etnia amarela (para usar termos da etnologia tradicional), representada por chineses e japoneses é confrontada com a etnia branca, representada por europeus (ingleses, sobretudo) e americanos. Há, também, referências evidentes à oposição de culturas (ou diferenciação, se preferível for o emprego de nomenclaturas e conceitos melhor aceitos pelas ciências antropológicas), confrontando orientais e ocidentais. Por fim, a quarta oposição distancia e diferencia adultos e crianças, no que se refere ao modo de ver, analisar e entender as oposições anteriormente mencionadas, articuladas no ambiente e no cenário do filme.

O conjunto dessas oposições cria uma oposição maior, ou mais abrangente, que se manifesta pela dicotomia entre fantasia e realidade. A fantasia, no caso, representa o desejo (aquilo que as pessoas esperam e querem que aconteça, ou permaneça), enquanto a realidade se manifesta pelo inesperado, ou inusitado (aquilo que as pessoas não querem que aconteça e julgam que nunca pode acontecer). Esse paradoxo, em que a fantasia representa o crível, enquanto a realidade é caracterizada pelo incrível (ou inacreditável, ou não esperado), torna-se ainda mais interessante na medida em que é a criança e não os adultos que vislumbra com mais nitidez a realidade, na sua inexorável facticidade.

Em termos de narrativa, as oposições podem ser observadas em praticamente todos os componentes cênicos, incluindo vestimentas, adereços, movimento e expressão das figuras em cena (modo de andar, olhar, sorrir, etc.), bem como nos cenários. Mas as oposições se manifestam, também, nos planos, seqüências, enquadramentos, movimentos de câmera e cortes (edição/montagem). Trata-se, enfim, da concepção que o cinema faz da guerra, mostrando como os recursos da linguagem cinematográfica constroem uma imagem própria e específica das desavenças humanas que podem levar ao conflito bélico. A câmera subjetiva referenciando o olhar de Jim para o velho pedinte, quando o automóvel deixa a mansão em direção à festa é um exemplo do uso de recursos de linguagem para denotar concepções. O ancião é enquadrado de cima para baixo, revelando a diferença de nível social em relação ao garoto inglês. Além disso, a câmera/olhar está em movimento, revelando articulação ativa com o ambiente e, portanto, com o

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contexto mostrado pelo filme (o domínio inglês), enquanto o velho oriental está imóvel, sugerindo passividade e resignação desiludida frente a uma situação de submissão secular.

Reunindo e organizando esses elementos de leitura e retomando a idéia anteriormente mencionada de realidade e fantasia, uma leitura possível da seqüência em análise sugere que os adultos simplesmente não conseguem (ou não querem) observar a realidade, mantendo a crença de que não serão atingidos por um conflito que se estabelece entre amarelos e que entre "eles" deve ficar (oposição étnica), pois nada parece questionar a idéia de que orientais são incapazes de ameaçar a superioridade ocidental (oposição cultural). Além disso, como estrangeiros e integrantes de classe “superior” (oposição social), o conflito que se avizinha, em última instância, não lhes diz respeito, apesar de causar algum incômodo aos adultos e assustar a criança (oposição criança/adulto).

O incômodo mencionado no parágrafo anterior pode ser observado em uma seqüência da parte inicial do filme, na qual Jim observa o pai queimando documentos, prevendo a possibilidade de ser obrigado a abandonar a cidade às pressas, sem, contudo, aceitar que o momento da retirada já havia chegado. A cena é gravada com a objetiva alinhada com um corredor da casa pelo qual Jim aproxima-se até posicionar-se em close11, oferecendo o lado esquerdo do rosto para a câmera. Pela porta entreaberta ele observa o pai queimando documentos na lareira. A cena é organizada em um único enquadramento que envolve todos os componentes, o pai agachado em frente a lareira, a dimensão do cômodo e Jim colado ao batente da porta. Não há luz no corredor, portando é do fogo da lareira que vem a iluminação que faz brilhar o seu rosto. O olhar furtivo e espantado do garoto, que a câmera mais sugere do que mostra, junto com o fogo e a penumbra, lembram o temor com que as pessoas, e mais ainda as crianças, costumam reagir frente a situações que escapam da normalidade. Parece haver, também, curiosidade no comportamento do rapaz, mas ele prefere não perguntar o que está acontecendo, talvez por temer a explicação, talvez por já conhecer ou desconfiar da resposta (fig. 10).

O medo provocado na criança também se evidencia na seqüência em que uma mancha de sangue tinge o pára-brisa do veículo em que Jim viaja, ao bater nas galinhas carregadas na ponta de uma vara por alguém na multidão. Simbolicamente a cena pode ser entendida como a

11 A terminologia técnica cinematográfica adota dois termos para indicar aproximação, “close” e detalhe. Quando se

trata do rosto, o termo mais empregado é “close” ou “close up”, que, grosso modo, corresponde ao destaque (ampliação na tela). Quando se trata de outras partes do corpo que não o rosto, ou objeto, emprega-se o termo detalhe.

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antevisão de que em breve o sangue vertido será humano, representação maior do preço cobrado pela guerra (fig. 11).

Figura 10. Premonição.

Figura 11. Marcas.

Por não se enquadrar e não entender o cenário das oposições culturais, étnicas e sociais, a criança observa o deslocamento da multidão não como algo distante e inconseqüente (oposição

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inversa entre realidade e fantasia), mas com o temor de quem está prestes a sofrer as conseqüências da situação. Em termos mais objetivos, o medo simplório, próprio das crianças, parece ajudar a personagem perceber (e entender) a realidade (em tempo, realidade criada pelo filme).

Esse jogo de oposições, revelado pela capacidade inversa ou diferente de observação entre personagem adulta e personagem infantil, pode ser entendido como uma das razões pelas quais o diretor escolhe a criança para centralizar a narrativa. Através dela, Spielberg não só estabelece um estilo de narrativa envolvente, do ponto de vista estético, como encontra uma chave para tratar criticamente o tema, fazendo alusão à incapacidade da sociedade (adulta, evidentemente) vislumbrar ameaças e, a partir daí, tomar medidas apropriadas, de caráter corretivo ou preventivo. Mantendo o raciocínio de análise nessa linha, não é por acaso que a única pessoa da multidão que fala e se destaca durante toda a seqüência do deslocamento é outra criança, um garoto chinês que se aproxima do veículo, encara Jim e berra – “sem mamãe, sem papai, sem uísque e soda”12

, palavras que tanto podem reforçar a oposição entre os ocupantes do veículo e o “mundo” do lado de fora, como referir-se ao porvir (fig. 12). No primeiro caso, evidentemente, trata-se de entender que o garoto expõe a sua própria situação de órfão em relação à criança que está no carro, com o pai e a mãe. Na segunda hipótese, pode representar a previsão da condição em que o próprio Jim e aquilo que ele representa se encontrarão futuramente, por conta da guerra que se apresenta inevitável.

Acrescentando outro elemento aos referentes de interpretação deste constructo, é importante lembrar a origem judaica do diretor e o debate que essa comunidade mantém aceso, até hoje, quanto à inocência e apatia com que a ameaça nazista foi encarada nos seus primórdios, até se revelar realidade catastrófica para a própria sobrevivência dos judeus, impondo custos enormes para ser combatida, debelada e só parcialmente superada, dadas as evidentes feridas que essa comunidade ainda abriga em relação à tragédia sofrida na Europa, na primeira metade do século passado. Esta exegese propõe que o desdém e a falta de capacidade de ver ameaças futuras no presente impediram ações preventivas de defesa que poderiam ter evitado, ou pelo menos amenizado, as proporções do holocausto conduzido pelos nazistas. A proposta aqui defendida é que, por conta da origem cultural e racial do diretor, uma leitura possível de Império do sol é a observação do filme como uma lição da história, sugerindo que é preciso observar o presente com

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atenção para, se for o caso, agir preventiva e oportunamente no sentido de evitar conseqüências futuras indesejáveis. Sobre essas considerações e proposta de interpretação, Virilio (1993. P. 60) escreve sobre a consolidação do poder nazista: “os judeus foram vítimas de uma implosão de informação que os impedia de compreender o que então se passava. Eles foram os primeiros a não acreditar em seu próprio extermínio.”

Figura 12. "No mama, no papa, no whisky sodas"

Trilhando essa linha de raciocínio, o jogo cênico entre a criança que vê e os adultos que ignoram pode representar, também, o questionamento da passividade americana frente à ameaça nipônica, que se concretiza com o reide contra Pearl Harbor, no arquipélago havaiano, mencionado nos caracteres iniciais. Como é de conhecimento geral, o bombardeio japonês às bases americanas no Havaí é considerado o primeiro e único ataque militar sofrido pelos Estados Unidos em seu próprio território, em toda a história desse país13. Alguns analistas e historiadores

13 Embora o ataque às cidades de Nova Iorque e Washington por ativistas islâmicos, conhecido como ataque às

torres gêmeas, ou simplesmente onze de setembro, tenha atingido o território americano, a ação não foi perpetrada por uma nação hostil e, a rigor, não costuma ser qualificada como um ato de guerra, no sentido clássico do termo. Sobre o ataque japonês a Pearl Harbor Cf. FELIPE, 2005.

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defendem a hipótese de que determinados setores do governo e da inteligência militar dos Estados Unidos tinham informações mais ou menos seguras sobre a iminência do ataque, as quais, no entanto, não foram levadas em consideração pelas autoridades americanas, inviabilizando ações preventivas. Desse modo, o questionamento da passividade consciente e/ou da ignorância pela incapacidade de avaliar corretamente situações de perigo em formação é um comportamento pertinente e recorrente na consciência coletiva do povo americano e na história dos Estados Unidos, no que se refere ao ataque à base americana no Havaí, como demonstra a análise do enredo de um exemplar clássico da filmografia de guerra, Tora, tora, tora (Estados Unidos, 1970), sobre o ataque japonês àquela base militar estadunidense, em dezembro de 1941.

No livro Passado imperfeito: a história no cinema, o professor de história da Universidade Harvard, Akira Irie, autor de várias obras sobre a atuação militar e política do Japão na Ásia, analisando as relações entre a história oficial e o filme de Richard Fleischer, Tora, Tora,

Tora, faz o seguinte comentário sobre a possibilidade de conhecimento prévio sobre o ataque à

Pearl Harbor:

(...) o filme permanece preocupado com o ataque em si a Pearl Harbor e com a questão de porque ele não foi evitado, ou pelo menos previsto em tempo suficiente para minimizar os estragos. Às vezes o enredo chega a endossar uma teoria de conspiração – a saber, que Washington não endereçou aos seus comandantes no Havaí as informações pertinentes obtidas de mensagens secretas japonesas que foram decodificadas (as chamadas interceptações Magic, possibilitadas por uma grande inovação da criptografia americana) com medo de que essas informações alertassem os japoneses a mudarem de código. (IRIE, in CARNES, 1997, p. 230).

Mais à frente, o analista pondera:

Dentro dessa estrutura restrita, o filme permanece próximo aos fatos conhecidos. Todos os personagens são baseados em pessoas verdadeiras e, no todo, enquadram-se na história. Certamente é verdade que, antes do ataque, os militares americanos estavam com a vista embotada e indiferentes. Seus comandantes subestimaram demais a força e a capacidade da máquina de guerra japonesa; (ibd, p. 231).

Nestes termos, a invasão da China pelo Japão, frente ao descaso dos ocidentais, até o último instante, pode ser entendida como a representação do comportamento genérico de confortável ignorância frente a ameaças catastróficas potenciais, que as pessoas não vêm ou não querem ver, até que aconteçam de fato.

A sociologia trata do tema, quando analisa a resistência da sociedade às mudanças. Os agentes sociais, sobretudo aqueles integrados às camadas dominantes e às elites, são, em

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princípio, aversos a mudanças, em especial àquelas mais radicais, profundas e duradouras, apesar da caracterização dinâmica das sociedades14.

Quanto à resistência a mudanças sociais, vale a pena lembrar, também, trecho da carta sobre o tema da guerra, que, a pedido da Liga das Nações, Sigmund Freud (1976, p. 125) envia a Albert Eisntein, na qual o psicanalista afirma:

(...) como sucede com maior freqüência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis.

De acordo com a proposta de análise dos trechos iniciais de Império do sol, conforme conduzida até aqui, essa resistência à mudança tende a subsistir, ignorando manifestações de ameaças. As personagens deixam transparecer incredulidade frente a mudanças, insistindo teimosamente na manutenção de um “estilo de vida” sólido e potencialmente imutável (representada pela participação na festa à fantasia), apesar da situação caótica que germina no ambiente e envolve esses protagonistas cépticos, manifestada, principalmente, no deslocamento alucinante e alucinado da população chinesa, enquanto os ocidentais se dirigem para a comemoração festiva.

Figura 13. Sonho.

Reforçando a idéia dessa incredulidade em relação à ameaça do conflito, seja quanto à iminência, seja quanto às dimensões, durante a festa, enquanto os adultos conversam sobre a efemeridade da invasão japonesa da China, Jim observa o sobrevôo de aviões militares japoneses

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e, uma vez mais, faz comentários sobre a superioridade das máquinas de guerra nipônicas e da capacidade dos militares imperiais.

Mas, se a resistência à mudança pode levar a uma negação coletiva da realidade, como a análise do filme sugere, fatos e acontecimentos acabam se impondo, mostrando que, às vezes, pode ser árduo e penoso o caminho entre o desejado, o esperado e o que realmente acontece.

Figura 14. Guerreiro. Figura 15. Preparação.

Figura 16. Enquadramento. Figura 17. Rajada.

No filme, a ameaça distante da guerra é substituída pela aproximação dela na seqüência em que Jim sai para brincar com um aeromodelo planador nas cercanias da casa onde ocorre a festa. Ali, o garoto inglês encontra a carcaça de um avião de caça15 abatido (fig. 13). Ele embarca na carlinga e simula um combate com o planador que circula sobre a sua cabeça. Na primeira passagem o planador está de frente para Jim, que empunha o manche, levanta a cobertura de

15 No jargão aeronáutico, a origem do termo “caça” é francesa (chasse), também adotada por outras nações, como

Alemanha (Jagdflugzeug), e designa o avião construído especificamente para combater outro avião, ou caçá-lo, o que explica o termo. Há também outras nomenclaturas para o mesmo gênero de aeronave, como é o caso de “fighter”, em inglês, significando (avião de) combate. Durante a Segunda Guerra, os americanos usaram a letra P (de Patrol, ou patrulha) para designar seus aviões de caça, como referido no filme e mencionado em outras partes desta tese.

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segurança do gatilho de disparo das metralhadoras do caça e simula uma rajada (figs. 14, 15, 16 e 17). O planador passa sobre a carcaça, descrevendo uma curva e volta na direção do garoto. Aficionado por aviões, Jim percebe que, na sua luta imaginária, passa a ocupar uma posição crítica em relação ao planador, que simboliza o inimigo. Agora o planador está alinhado com a cauda do avião ocupado por Jim e os pilotos de caça sabem que o enquadramento pela cauda é a mais mortífera manobra de combate aéreo16. Ou seja, Jim “perde” a luta e confirma isso se levantando para observar os furos das balas que, durante o combate real, haviam atravessado a fuselagem e acertado mortalmente o piloto do avião destruído, cujo lugar, agora, está ocupado por Jim, posicionado bem na linha dos tiros. Simbolicamente a criança acabava de encontrar a face verdadeira da guerra, real e presente, que sufoca a esperança da vitória pelo inexorável prenúncio da derrota. Por um breve momento de consciência, incomum a uma criança, Jim se entende vítima da guerra, representada pelo piloto abatido.

O convencimento dos adultos acontece na seqüência imediata. Jim deixa a carcaça do caça para recuperar o planador, que desaparece por trás do que parece ser uma colina, na verdade uma trincheira levantada para defender uma posição militar. Acompanhando a escalada do garoto, a câmera salta a trincheira para descortinar, em plano geral, um acampamento militar japonês. Com o fuzil em bandoleira e baioneta calada, emblematicamente brilhando à luz do sol, um soldado nipônico coloca-se frente ao garoto. Mas não é a criança e o soldado que se encontram. Jim está fantasiado de aventureiro oriental (algo que lembra Simbad, o marujo ou Ali Baba e os quarenta ladrões), enquanto o militar japonês, de aparência muito jovem, usa uniforme de combate. Confrontados, em um único plano, a fantasia e a farda retratam o conflito que a razão e a vontade querem rejeitar, mas que a realidade inexoravelmente impõe (fig. 18). Fantasia e farda deslocam Jim e o soldado japonês da situação de protagonistas para a condição de símbolos. O pai de Jim e outro inglês aparecem no sentido oposto (ainda as oposições) e orientam, à distância, o retorno do garoto, sob o olhar dos soldados japoneses. A câmera coloca Jim entre os japoneses e os ingleses, revelando que ele, e todos os que são representados pelas personagens integradas à cena, não são mais observadores da guerra que virá, mas agentes do conflito que já está acontecendo.

16 Para entender melhor esse plano seqüência é interessante conhecer algumas elementos de combate aéreo,

sobretudo manobras conhecidas como “dogfighter”, que pode ser traduzido mais ou menos como combate de perseguição, em que uma aeronave de combate (no mais das vezes um avião de caça) persegue seu rival, procurando aproximar-se pela parte traseira, colocando-se, assim, na melhor posição de tiro para atingir e derrubar o oponente que está na sua frente, sob sua mira (n. a.).

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A partir desse momento, não há mais negação da guerra. Entre os adultos manifesta-se, a partir de então, a crença de que é possível escapar dela, possibilidade que não é compartilhada (e de certa forma nem desejada) pela criança. Uma vez mais os fatos vão desmentir os prognósticos e sabotar as esperanças dos adultos.

Ao deixar a festa em direção a um hotel (considerado mais seguro que a casa da família, pelo pai de Jim), o automóvel cruza uma barreira que se fecha à sua passagem, enquadrada ao rés do chão. A paz fica para trás, isolada simbolicamente pela barreira de arame farpado, sugerindo que o caminho em direção à guerra não tem volta.

A observação da personagem no cenário de um conflito militar sugere algumas reflexões sobre dois aspectos doo filme em análise, o primeiro referenciado no conceito de gênero cinematográfico e o segundo focado no recurso à personagem infantil para conduzir a narrativa adotado por Spielberg.

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GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS

Conforme visto no subtítulo anterior, um dos caminhos para tomar contato com a guerra passa por representações desenvolvidas pelo cinema, configurando modos particulares de ver e interpretar esse objeto, a partir das múltiplas possibilidades descortinadas pela reconstituição cinematográfica.

Evidentemente é através dos seus recursos técnicos (a imagem em movimento, aliada ao som) que o cinema edifica suas narrativas. No entanto, assim como a combinação de sete notas musicais descortina horizontes para a composição de um número praticamente infinito de peças sonoras, a combinação e recombinação dos recursos cinematográficos abrem espaço para uma produção de filmes que também tende ao infinito no que respeita ao quesito variedade.

Ao sugerir técnicas e condutas para interpretar filmes, Ramón Carmona, em Cómo se

comenta un texto fílmico, sugere que as possibilidades narrativas do cinema são tão amplas que

uma história familiar pode ser a metáfora de uma situação social mais ampla, ou que um filme de guerra pode servir de base para observar uma relação amorosa, ou ainda uma questão tecnológica17.

No sentido de deitar algumas ponderações sobre essa proposta, considerem-se alguns exemplos da narrativa cinematográfica de guerra, conforme apresentados a seguir.

Acomodado na poltrona do cinema, na frente da televisão, ou conectado ao computador, o espectador contempla, na tela, o céu carregado de nuvens densas e o mar revolto da manhã de seis de junho de 1944, na costa da Normandia, norte da França. Pontilham no horizonte 4.126 lanchas de desembarque18 à frente da silhueta de mais de dois mil navios, como se o espectador estivesse em terra, olhando para o mar. À medida que cenas e planos vão se sucedendo, o espectador pode ver, também, casamatas monstruosas a cavaleiro das falésias e a movimentação de soldados ao redor delas, como se, agora, estivesse no interior das barcaças, olhando para a terra. Outras tomadas colocam o observador a bordo de aviões de transporte C47, de onde pode acompanhar o salto de milhares de pára-quedistas sobre vilarejos franceses.

O observador imaginário referido no parágrafo acima está assistindo ao filme O mais

longo dos dias (Estados Unidos, 1962), cujo enredo é a chamada batalha da Normandia ou dia D,

considerado um dos mais importantes embates da Segunda Guerra Mundial e “a mais difícil e

17 Cf. CARMONA, 1996.

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complicada operação (militar) de todos os tempos”, segundo o Primeiro Ministro britânico à época, Wiston B. Churchuill (FELIPE, 2005, p. 360).

A referência do então primeiro ministro britânico ao dia D exprime o significado desse evento no contexto da Segunda Guerra e mesmo em relação a toda a história militar moderna, uma vez que, até a presente data (2008), não foi registrada qualquer outra operação bélica, em nenhum ponto do planeta, concentrando tantos soldados e tamanho volume de equipamentos em uma única batalha. Além disso, a invasão da Normandia é considerada por alguns historiadores militares como um marco histórico da Segunda Guerra Mundial, dado que configurou o refluxo da ofensiva alemã e, por assim dizer, o início do fim daquele conflito. Após aquele momento, exceto em situações específicas e passageiras, os exércitos do Eixo entraram em situação de gradativo recuo, frente ao avanço Aliado19 que, a partir do desembarque na França, passou a pressionar as forças alemãs principalmente a partir de dois pontos, a frente russa, a leste e a frente francesa, a oeste20, até a vitória, em 1945.

São esses elementos de grandiosidade épica e importância histórica da batalha da Normandia que O mais longo dos dias procura destacar, seguindo uma trilha que pode ser enquadrada nas propostas do historiador francês Jacques Le Goff (2003), segundo o qual a memória (aquilo que sobrevive do passado) é resultado de escolhas que se manifestam em duas formas principais, os documentos, expressando a seleção do historiador (marcado pelo procedimento científico) e os monumentos, que Le Goff designa como herança do passado. Nesses termos, Saliba (1993, p. 87) explica:

Vale a pena refletir um pouco sobre a fértil distinção trabalhada pela historiografia recente, entre documento, produzido voluntária ou involuntariamente pela sociedade segundo determinadas relações de força, e o monumento, voluntariamente produzido

pelo poder (grifado no original), sobretudo por quem detém o poder de perpetuação dos

próprios registros, no caso o poder de perpetuação das imagens. O que transforma o documento em monumento é, no fim das contas, a sua utilização pelo poder; não existem, a rigor, documentos ou „registros puros‟ – são as perguntas que fazemos que o transformam em tal condição, ou seja, tudo depende da sua construção, da forma como recortamos nosso objeto. Isto pode ser talvez ainda mais válido no caso do material fílmico, que trabalha com imagens capazes de provocar um efeito de realidade, quem sabe mais ou menos forte, mas certamente desconhecido dos signos verbais.

19 Os termos Eixo e Aliados designam alianças antagônicas de países que lutaram na Segunda Guerra Mundial, a

primeira formada fundamentalmente pela Alemanha, Itália e Japão e a segunda reunindo os países que combateram ao lado da Inglaterra, Estados Unidos e Ex-União Soviética.

20 Cabe mencionar que o avanço Aliado compreendeu, também, a abertura de uma terceira frente, no quadrante sul

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