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Figura 9 Vaticínio.

A GUERRA FINAL

Imediatamente após o ataque americano, Jim volta para o alojamento inglês, recebido pela senhora Victor. Ela retira os pertences da maleta e devolve a Jim o aviãozinho de brinquedo, mostrado em primeiro plano. O enquadramento é emblemático, pois focaliza, com destaque, o objeto (simbólico) que deu início ao martírio da personagem nas ruas de Xangai, quando se abaixa para apanhar o brinquedo caído no chão e solta as mãos da mãe, perdendo-se no caos da cidade ocupada pelos japoneses. A cena do retorno ao alojamento inglês é a primeira e única em que a personagem chora, talvez porque ainda é criança, talvez porque tenha crescido a ponto de tomar consciência de si mesma e do mundo.

Mas não haverá tempo para Jim readaptar-se ao convívio dos compatriotas nem à rotina do campo de internação, depois que o plano de fuga liderado por Basie é descoberto pelos japoneses, obrigando o garoto a deixar o alojamento americano. A derrocada do exército imperial precipita os acontecimentos e, uma vez mais, interfere na ritualização de passagem da personagem.

A guarnição japonesa abandona o campo. A cena vem carregada de simbolismos: mostra o embarque do sargento comandante, acompanhado por um grupo de praças, em uma carreta férrea, para desaparecerem na bruma e na fumaça da guerra, sob o arco semi destruído de um portal templário (fig. 70). Assim que os soldados atravessam o portal, o movimento daquele pequeno destacamento representa o exército nipônico, até então ameaçador e dominador, simplesmente se volatilizar na fumaça da guerra, como força organizada.

Livres da guarda e tecnicamente libertos (ou abandonados), os prisioneiros iniciam a marcha em sentido contrário à direção em que avançam as tropas Aliadas, buscando o encontro que significa salvação. Na saída do campo a coluna de prisioneiros margeia a base aérea e Jim pode assistir, uma vez mais, a cerimônia camicase. A diferença é que agora não há mais a mesa, somente um tambor de latão coberto com a toalha. Também não há mais tropa em formação, somente um par de soldados saudando o piloto no último brinde (fig. 71). Além disso, o camicase não é um garboso oficial aviador, mas o garoto “amigo” de Jim, promovido à condição de piloto suicida pelo esforço de guerra de última hora, que mantém os combates mais pela inércia do comportamento militar que pelo vislumbre, ainda que tênue, da vitória ou da sobrevivência (fig. 72).

Figura 70. Retirada.

Todavia, a derrota já aconteceu, ceifando até mesmo a possibilidade de um último ato heróico (ou desesperado). O mesmo motor, mostrado com o mesmo enquadramento das cenas anteriores, agora está desgastado, corroído pela ferrugem e sem condição de funcionamento. Apesar da insistência do piloto com os comandos do avião, as hélices giram um par de voltas e o

motor entra em pane, antes mesmo de funcionar a plena carga, abortando a surtida suicida (fig. 73). Irado e desiludido pela impotência, o piloto lembra a figura da personagem principal, na parte inicial do filme, pilotando uma carcaça que já havia deixado de ser máquina de guerra, restando impotente e desarmada, como agora se apresenta o avião observado por Jim. O jovem inglês ainda voltará a encontrar o camicase, mas antes será preciso cumprir três etapas do ritual de passagem.

Figura 71. Cerimônia. Figura 72. Abnegação.

Figura 73. Derrota.

A primeira etapa sugere rompimento. Jim atira no rio a maleta com seus pertences. Junto com ela parece deitar fora também lembranças e ligações com a condição de criança. Desfazer-se do último brinquedo, das fotografias colecionadas durante a estada no campo de prisioneiros, enfim dos laços materiais que agrilhoam o crescimento e perpetuam a infância, sugerem que Jim Grahan adiantou mais um passo na direção da consciência, procurando superar os três elementos que o caracterizavam como personagem infantil: a posição distante, da guerra e da responsabilidade, a condição de vítima, que dá lugar à posição de agente ativo frente à realidade e

a situação de inocência, substituída pela consciência. Por isso mesmo, o enquadramento da maleta se mostra exatamente igual à posição da câmera focando urnas funerárias, ocupadas por cadáveres putrefatos, mostradas na primeira cena do filme, sugerindo tensão entre morte e (re)nascimento.

A segunda etapa acontece no estádio de Nantao, usado pelos japoneses como depósito do butim de guerra, onde os ex-prisioneiros reencontram os bens materiais que ilustravam e motivavam suas vidas antes da guerra. Marcada por um forte acento surrealista, a seqüência coloca as personagens entre um curioso arranjo de móveis, automóveis, estátuas e enfeites, esparramados a céu aberto, o luxo reduzido à condição de quinquilharia inútil (fig. 74). De novo, a narrativa conduz o espectador na direção da fronteira simbolizada pela guerra, sugerindo tempos diferentes, marcados por diferente ordem social. Assim como chegou, a massa de refugiados abandona o lugar, em busca de comida e segurança. Nada do que está ali serve para o momento e o que é preciso, agora, não está naquele lugar.

Jim resiste à partida, menos porque ainda se identifica com a vida ali representada e mais porque precisa do abandono para cumprir a função da personagem que tem por missão causar estranhamento no espectador. Por essa razão, concede um momento de exclusividade nas relações entre a personagem central e a platéia. Para que isso aconteça, todas as outras personagens saem de cena e do contexto momentâneo, em que são quebrados os vínculos com “aquela guerra”. A partir daí virá outro conceito de guerra, que vai marcar a geração simbolizada pelo garoto.

Figura 74. Redenção. Figura 75. Morte.

O último contato com os prisioneiros é a senhora Victor, que desfalece e morre de inanição ao lado do garoto (fig. 75). Na tomada seguinte, de novo recorrendo ao efeito surpresa,

para ser surpreendente na condução da narrativa, Spielberg apresenta Jim (e o espectador) ao lado violento e selvagem do novo mundo que brota da guerra.

No horizonte desponta um clarão imenso e as nuvens passam céleres, como aviões de vapor, sobre a cabeça de Jim (fig. 76). A partir daí, a seqüência acontece, toda ela, entre soldados japoneses procurando comida, uma névoa permanente e densa cobrindo as cenas, revertendo objetos e pessoas à condição de imagens disformes, silhuetas indefinidas, repetindo recursos já usados pelo diretor em seqüências anteriores, mas agora mais fortes e duradouros (fig. 77). Ao desfigurar e embaralhar as imagens, apagando ou reduzindo o plano visível, o diretor leva a platéia para outro nível de relação com a narrativa, em que o reflexo, a insinuação e a sugestão, reproduzindo o olhar da personagem infantil, descortinam novos ângulos e outros aspectos da guerra. O arremate do plano-seqüência, que dá referência e lógica à narrativa, corre por conta do áudio, que reproduz uma transmissão jornalística de rádio, anunciando e descrevendo uma nova super-arma de guerra, comumente chamada de bomba atômica.

Figura 76. Fim/Começo. Figura 77. Espectro.

O brilho que Jim descortina no horizonte, mais a passagem das nuvens rápidas e quentes, não é a alma da sra. Victor a caminho do paraíso, como o garoto imaginara, mas simbolizam as explosões ocorridas em Hiroshima e Nagasaki que vão impor uma nova ordem ao planeta, ampliando a capacidade destrutiva e a ameaça da guerra. A explosão anuncia também que o poder e a força militar mudaram de lado. Agora são os americanos que dominam. O sonho do império do sol se desfaz na redução do Japão a escombros, como anuncia a reportagem radiofônica, assim também como compara a energia destrutiva da bomba ao calor solar, substituto da ameaça do sol estampado na bandeira nipônica, tantas vezes usada na arquitetura simbólica do filme. Conectados à história, áudio e imagens desse plano-seqüência anunciam que

o sonho imperial da dominação nipônica da Ásia será substituído pela realidade inquestionável da força americana, imperialista para uns, redentora e progressista para outros, mas (também) imposta pelas armas.

Devidamente inserido na era nuclear e, portanto, na modernidade, disposto a cumprir os ritos de passagem designados pelos realizadores do filme e ainda imbuído da missão de causar estranhamento na platéia, Jim segue na direção oposta dos ex-prisioneiros e retorna ao campo de Soochow. No caminho as evidências da nova era do pós-guerra se acentuam. Recorrendo à simbologia dos objetos cênicos e sempre pelo olhar adolescente de Jim Grahan, o diretor concentra a parte final do filme no campo de prisioneiros e num último contato com duas personagens que marcaram Jim e a narrativa.

No retorno ao campo, o inglês é envolvido por uma chuva de pára-quedas (fig. 79), trazendo contêineres de sobrevivência88, que mais à frente serão definidos por Basie como “Frigidaires que caem do céu”, em alusão à famosa marca de refrigerador e ao conteúdo dos cilindros: comida enlatada, alimentos embalados e descartáveis de toda a sorte, representações emblemáticas da modernidade, como um todo, e da cultura americana em especial. Ao longo do plano-seqüência, pelo menos em duas oportunidades, o diretor destaca a marca de produtos enquadrados em primeiro plano: o leite condensado Jersee e a marca global que se mantém até os dias de hoje do chocolate Hersheys.

Figura 78. Amizade. Figura 79. Resgate.

88

Trata-se do lançamento de alimentos, medicamentos, e recursos de sobrevivência sobre áreas que por uma ou outra razão (guerra, catástrofe natural, etc.) não podem ser atingidas por terra, mas abrigam população em condições de necessidade.

A chegada ao campo marca o reencontro com o “amigo” japonês. As diferenças de posição referenciadas na guerra, na etnia, na cultura e no idioma parecem não afetar a relação baseada em um elemento comum e forte da personalidade de ambos: a posição, a situação e a condição de jovens que só recentemente deixaram de ser crianças.

O reencontro é breve e, não por coincidência, acontece ao redor da carcaça de um avião de combate praticamente nas mesmas condições daquela mostrada anteriormente, em que Jim participa de um combate onírico (fig.78). Sobre as asas do avião abatido e ainda emoldurado pelo emblema do sol nascente da bandeira japonesa, pintada na lateral da fuselagem, o garoto japonês é abatido a tiros, quando divide uma fruta com o companheiro inglês. A seqüência tem forte apelo teatral e simbólico. O garoto japonês ergue a espada samurai, que identifica os pilotos camicases, para partir a manga amarelada que Jim segura com as duas mãos, o que acontece no exato momento em que Basie e quejandos de fuga retornam ao campo. A posição da espada empunhada por um japonês é interpretada como ameaça a Jim, estimulando a reação dos recém- chegados. Spielberg joga com a quebra de continuidade, ora focando o americano tirando o revolver do coldre, ora a espada elevando-se na direção de Jim (na verdade na direção da fruta). A comparação entre a arma de fogo, mais mortal e mais moderna que a espada, é uma última referência à desigualdade de forças que, agora, separa japoneses (leia-se o mundo todo) e americanos. O tiro é certeiro e um filete de sangue corre pela lâmina da espada, até cobrir de vermelho a casca amarela da manga. O garoto japonês não percebe a chegada dos americanos, evidenciando a situação de distância. Também, não há, conforme demonstrado, qualquer intenção de agredir o inglês, o que remete à situação de inocência. Mas, assim mesmo, o tiro cobra a vida ao “jovem piloto camicase”, oportunizando o estranhamento não só da platéia, como da própria personagem principal, que, no momento em que acompanha o corpo do “amigo” tombando da asa do avião abatido, também observa a guerra como o universo do sofrimento, da morte e do caos, em que a razão se dispersa na violência e a fraternidade se mostra impossível.

O reencontro com Basie é duplamente similar, primeiro porque é derradeiro e depois porque também altera, definitivamente, olhar de Jim sobre o antigo companheiro e sobre a guerra. Cumprindo o que havia planejado enquanto estava internado no campo de Soochow, Basie organiza e lidera um grupo de saqueadores, aproveitando a ausência de controle e organização social que se estabelece na região, com a retirada dos japoneses e antes da chegada das tropas Aliadas. Como conseqüência direta da guerra, antes da implantação, de fato, da nova

ordem econômico-militar e após o sonho do império do sol nascente, cria-se o vácuo que dá lugar ao reinado da selvageria, tão ou mais cruel que a guerra propriamente dita. Aos olhos de Jim apaga-se o que poderia restar de humanidade ou motivo de admiração na figura do ex-camareiro de navios de passageiro. A questão é que Basie não se resume ao próprio Basie, mas representa o arquetípico de uma parte da humanidade, ou de uma faceta de todos os homens, que fica muito claro aos olhos do garoto. Após esse momento, resta saber se Jim Grahan ainda mantém a posição de distância e goza da condição de inocência em relação ao seres humanos, ao mundo e à guerra.

De um modo geral, Tom Stoppard, roteirista de Império do sol, manteve na tela o que o autor da história, J. G. Ballard, escreveu nas páginas finais do livro. Jim reencontra os pais, brotando da cena a sugestão de um retorno à vida em família e aos valores vigentes antes do início da guerra. Mas tanto no livro como no filme, o último parágrafo e a última cena remetem às águas do estuário do Yangtsé. No livro, Ballard menciona a urna funerária de uma criança sacudida pelas ondas. No filme, Spielberg mostra a valise atirada na água pela própria personagem central. Ambas remetem ao início, do livro e do filme. Aos olhos da criança, o sarcófago e a maleta flutuando nas águas do rio sugerem que as guerras acabam. Mas para o espectador permanece a estranha sensação de que a guerra que compreende todas as guerras jamais termina, apenas recomeça, igual a sempre.