• Nenhum resultado encontrado

Figura 9 Vaticínio.

A GUERRA DESTRUIDORA

Alguns grandes clássicos da filmografia americana podem ser pinçados como referencias de películas que abordam a guerra a partir da possibilidade do não envolvimento voluntário. Júlio Madariaga, personagem novelesco de Vincente Blasco-Ibañez de Os quatro cavaleiros do

Apocalipse, que foi duas vezes levado para as telas do cinema, a primeira em 1921, interpretada

por Pomeroy Cannon (contracenando com Rodolfo Valentino no papel principal) e a segunda em 1962, com Lee J. Cobb, (tendo Glen Ford na cabeça do elenco)62, insiste em negar a guerra (a Primeira Guerra Mundial, no caso da produção de 1921 e na novela original e a Segunda Guerra Mundial, na adaptação de 1962). Emblematicamente apresentada como território neutro e nação

62 As duas películas receberam o mesmo título, Os quatro cavaleiros do Apocalipse. A primeira, de 1921, foi

não alinhada, a Argentina é o refúgio onde o patriarca acredita poder manter sua família afastada do quarto cavaleiro do Apocalipse que transforma a Europa em arena de combate. O envolvimento de seus netos em campos opostos do conflito traz a guerra para o seio da família, mostrando que a neutralidade pode ser o caminho desejado e desejável, mas nem sempre configura uma opção possível.

Gerald O‟Hara, o pai de Scarlett em ...e o vento levou (Estados Unidos, 1939), recolhido aos limites de Tara, é também um patriarca que procura manter a si e a família afastados da guerra, no caso a Guerra da Secessão Americana. A cena em que tropas militares desfilam em frente à mansão dos O‟Hara revela a impossibilidade dessa escolha. Assim como no filme comentado no parágrafo anterior, também neste, o engajamento de membros da família no conflito e, por fim, a visão da própria fazenda destruída em conseqüência da guerra reforçam a idéia da neutralidade impossível, mostrando que, em muitos casos, a guerra envolve as pessoas independentemente da vontade delas.

Em Império do sol, a impossibilidade de permanecer afastado da guerra fica evidente quando Jim Grahan percebe que já não pode mais esperar o regresso dos pais em casa, onde não há mais água, comida, nem esperança.

Jim deixa o número 13 da avenida Amherst em direção ao centro de Xangai, decidido a entregar-se às tropas japonesas, impulsionado pela esperança de que seus pais também foram aprisionados, por conta da condição de estrangeiros oriundos de uma nação inimiga. A idéia do garoto é reencontrar os pais em um campo de prisioneiros.

A relação de oposição observada nas partes já comentadas do filme volta a manifestar-se nessa seqüência, na medida em que a própria guerra, representada por todos os seus atores – civis chineses e soldados das tropas de ocupação nipônicas, parece, ela mesma, não reconhecer a existência do jovem Grahan.

Por diversas vezes Jim confronta e mistura-se aos soldados japoneses, levanta os braços, identifica-se como inglês e repete a expressão – “eu me rendo”. Na primeira tentativa a resposta são a chacota e a ironia: os soldados levantam os braços imitando Jim, repetem a expressão e riem. Em outra tentativa, Jim é simplesmente ignorado pelas tropas que marcham pelas ruas de Xangai (fig.37) e, em uma terceira, a metralhadora Nambu, montada no sidecar da motocicleta dos batedores japoneses de uma coluna militar, fica a uma pequena distância e à altura do coração de Jim, que se colacora à frente da rota da motocicleta (fig. 38). Mas, ainda assim, os japoneses

não esboçam reação, como se a guerra fosse complexa demais para ocupar-se de um garoto perdido e desesperado.

Figura 37. Rendição.

Figura 38. Ameaça.

Essa posição (ou oposição) em que a personagem e a guerra giram uma em torno da outra, com envolvimento, mas sem integração, se consolida quando a caminhada pela Xangai ocupada faz a personagem cruzar a fachada de uma sala de cinema decorada com imensos cartazes

publicitários de ... e o vento levou (fig. 39). Exatamente à frente do cartaz Jim é interceptado por um jovem chinês (fig. 40), o mesmo que havia batido na janela do carro, gritando sua condição de pária: “sem mamãe, sem papai, sem uísque e soda”, durante a seqüência do início do filme, que mostra o cortejo de automóveis levando a comunidade ocidental para a festa à fantasia.

Figura 39. Incerteza. Figura 40. Retorno.

Figura 41. Fuga.

Nesse ponto é possível observar que um componente peculiar da dinâmica e da forma narrativa adotadas por Spielberg em Império do sol, tênue e debilmente manifestado nas seqüências iniciais do filme, mostra-se com mais rigor na parte agora analisada. Trata-se do exercício de fazer voltar à cena situações e personagens evidenciadas ou mostradas em seqüências anteriores. Neste segmento, em especial, esse recurso narrativo evidencia-se pelo

retorno do garoto chinês. Isso porque, após sua aparição na parte inicial da obra, em um plano muito curto e aparentemente secundário, ou complementar à narrativa, a personagem, presumivelmente, havia deixado as preocupações e as lembranças de Jim Grahan, assim como o roteiro do filme, para desaparecer na multidão anônima e coadjuvante de chineses deslocando-se por Xangai.

Todavia, quando o jovem chinês reaparece, para uma participação mais ampla e contundente no desenrolar do roteiro, é possível perceber um exercício de retomada de elementos já citados (ou mostrados, para empregar um verbo mais adequado à narrativa cinematográfica) em partes anteriores do filme, que o diretor torna a trazer à cena em oportunidades subseqüentes, muitas vezes de modo inesperado. Assim, o acompanhamento do Império do sol revela uma dinâmica de retomada de ambientes, personagens, situações e mesmo sensações experimentadas pela personagem principal em momentos verificados no “passado narrativo” do filme. Essa dinâmica, uma vez observada e constatada, instiga algumas interpretações interessantes, desde que estabelecido um critério de referência para a decodificação interpretativa desse recurso narrativo.

Em primeiro lugar destaca-se a relação direta da personagem principal com o mencionado exercício de retorno ou resgate de componentes anteriormente citados. Vale dizer, o resgate é sempre constituído a partir de situações experimentadas pela personagem central. O retorno da câmera a determinado “lugar cenográfico”, correspondente a uma referência “ambiental” do filme é sempre condicionado à passagem (anterior) de Jim Grahan por este ambiente. A repetição, praticamente com o mesmo enquadramento, do piano da mansão dos Grahan, primeiro com a mãe de Jim ao teclado, demonstrando situação de rotina, segurança, harmonia e estabilidade (situação que precede a guerra) e, depois, sem a presença da mãe, substituindo a segurança por um vazio desesperante e inesperado (situação que sucede a eclosão da guerra), representa, exemplarmente, o recurso narrativo em observação, como demonstra a posição da personagem principal, da criança, portanto, enquanto eixo de referência das cenas, nos dois momentos tomados (figs. 6 e 25). A volta às ruas de Xangai, para reencontrar o jovem oriental que vira anteriormente, a caminho da festa, na parte inicial do filme e o sangue como simbologia da guerra, primeiro no pára-brisa do veículo que choca contra as galinhas carregadas no fluxo da multidão e depois na retirada dos corpos tombados em combate (figs. 11, 12 e 23) são seqüências

que podem ser tomadas como exemplos do exercício de retorno ou resgate do qual o diretor lança mãos para estruturar a narrativa e explorar a personagem central.

Além da ligação direta da principal personagem do filme com representações anteriores, considerando-se a cronologia do enredo e a ordenação seqüencial da narrativa, vale observar, ainda, que esse movimento de retorno também altera a relação da personagem com a referência resgatada. Dessa forma, a cada “lugar” que retorna, ou personagem que reencontra, Jim vai observar, sentir ou sofrer alterações (algumas radicais e profundas) no seu relacionamento com esse “lugar”, ou personagem (ou ambos). Em algumas oportunidades, ele mesmo sofre mudanças na sua persona ou caracterização como personagem.

O reencontro com a preceptora no retorno à casa, sem os pais, é um exemplo claro de que uma nova ordenação reorganiza ou dá sentidos diversos a elementos comuns, anteriormente visitados pelo enredo. Assim, ao reencontrar Amah, o jovem Grahan descobre que a hierarquia de poder foi alterada. Trata-se da mesma mulher, na mesma casa, frente à mesma criança. Entretanto, agora, no reencontro, não há mais o poder colonial legitimador da subserviência oriental e, portanto, a figura de Jim não vai além de tantas outras que caracterizam os filhos da guerra, abandonados, assustados, perdidos e frágeis. Por isso, ao invés de obedecer, Amah agride, desdenha e abandona o garoto à própria sorte.

Do mesmo modo, ao retornar às ruas de Xangai, após a ocupação japonesa e a conseqüente expulsão dos ocidentais, enquanto dominadores, a relação de Jim com o lugar e as pessoas também se altera radicalmente. Depois de abandonar a relativa segurança da mansão da família, decidido a render-se aos japoneses e, assim, reencontrar os pais, Jim circula por Xangai de bicicleta, exposto, em contato direto com a cidade e sua gente. Não há mais a segurança uterina do automóvel com as janelas fechadas e protegido pela polícia, como observado na seqüência em que os Grahan integram o séquito a caminho da festa à fantasia. São as mesmas ruas, abarrotadas pela mesma multidão, mas, nessa nova situação, são as tropas nipônicas e não as britânicas que guarnecem os postos de guarda e são soldados do império nipônico, de raça amarela, que desfilam dominantes, em substituição aos ocidentais, outrora dominadores e, agora, relegados à condição de prisioneiros, fugitivos ou refugiados.

Ainda à guisa de exemplo, o reencontro de Jim como o jovem chinês se dá em condições diferentes. No primeiro momento em que aparece, manifesta-se uma relação de distância e evidente diferença social entre a personagem oriental e Jim Grahan, este instalado no veículo,

seguindo na direção inversa à massa de refugiados chineses à qual o jovem oriental está integrado. Um é o ocidental dominador, o outro o oriental submisso. No segundo encontro, Jim corre pelas ruas de Xangai perseguido pelo chinês, gritando que é inglês e precisa de proteção, manifestando um apelo que é ignorado e desprezado pelos transeuntes. Agora, o garoto chinês domina a situação e Jim é a vítima submissa (fig. 41).

Recorrendo ao reencontro e ao retorno para criar situações protagonizadas pela personagem principal, que se mostram aparentemente idênticas, mas, radicalmente diferentes, o diretor cria um recurso narrativo no mínimo eficiente que, ao reposicionar a personagem principal em relação à guerra, acaba revelando, também, efeitos e conseqüências da guerra expressas pelo olhar dessa personagem, ou seja, observadas pelo modo de ver da criança.

Assim, ao protagonizar situações diferentes em ambientes pretensamente familiares ou rotineiros, a personagem representada por Christian Bale cria condições para potencializar o estranhamento do espectador em relação à guerra, consolidando o projeto narrativo do diretor.

Além de servir ao objetivo do estranhamento, a inserção da personagem principal em situações adversas, a partir do resgate de elementos ou situações anteriores, também cria possibilidades para o diretor lapidar a própria personagem, inserindo o garoto inglês em um lento, mas inexorável processo de mudança, de sorte que, a cada situação revivida, Jim Grahan emerge como alguém diferente do que era na condição anterior. Nesses termos, as mudanças vividas e sofridas pela personagem podem ser vistas como passos cerimoniais de um rito de passagem, de modo que a personagem, que é sempre a mesma, vai assumindo status diferente, ou diferenciado, à medida que atravessa determinadas situações criadas pelo enredo do filme.

A passagem de uma determinada condição social para outra, que vai talhando a personagem ao longo da narrativa não se esgota em si mesma. Trazer Jim Grahan para cenários visitados anteriormente, confrontando personagens já conhecidas, fazendo o jovem inglês viver situações diferentes a partir de elementos repetidos, permite ao diretor representar, também, alterações em outros níveis. Conforme essa linha de raciocínio, ao retirar de Jim Grahan a condição de segurança quando retorna às ruas de Xangai dominada pelos japoneses, o diretor revela, em paralelo, a profunda alteração provocada pela guerra, que sepulta definitivamente o colonialismo europeu na Ásia. Assim, as transformações da personagem permitem ao espectador observar, simultaneamente, as transformações de ordem social, política e militar desencadeadas pela guerra, que vão criar um novo cenário geoestratégico, estabelecendo mudanças que a história

registra como profundas e definitivas. A invasão japonesa marca o fim da dominação colonial dos europeus, que deixam a China para nunca mais voltar, como dominadores.

Um terceiro caracterizador da forma como a dinâmica da retomada se verifica em Império

do sol é o modo como esse movimento cria condições para a inserção de novos elementos no

filme. Desse modo, ao fazer a criança retornar a lugares anteriormente visitados e rever personagens já conhecidas, o diretor articula, simultaneamente, a inserção de novos lugares e novos agentes, consolidando a idéia da transformação, apesar das aparências. Vale dizer que a experiência de Jim Grahan faz o espectador encarar a guerra como superfície de separação entre diferentes formas de organização social. Vista assim, a guerra pode ser compreendida como um reagente que atua sobre a química social, provocando mudanças que perduram no tempo e no espaço, mesmo depois das armas se calarem ante o silêncio da paz.

Na seqüência em que Jim perambula pelas ruas de Xangai, perseguido pelo jovem chinês, a articulação entre o mesmo e o novo se manifesta no encontro com os aventureiros americanos Frank e Basie.

A cena é emblemática e permite uma leitura por analogias no mínimo interessante.

Perseguido pelo chinês, Jim atravessa a rua por onde trafega o caminhão dirigido por Frank. Assim como a guerra, o caminhão é uma ameaça ao jovem inglês, que só não é atropelado porque Frank freia e consegue deter o veículo a poucos centímetros do garoto. Também como a guerra, que além de ameaçar, faz a criança confrontar situações diferentes e inesperadas, o encontro com o motorista daquele caminhão altera os caminhos e o destino de Jim.

Juntamente com Basie, interpretado por John Malkovitch, Frank compõe a dupla de aventureiros americanos envolvida pelos acontecimentos inesperados da guerra, obrigada a conviver com a ocupação japonesa da China, sem condições de deixar o país.

Integrados à ambientação histórica (re)construída pelo filme, Basie e Frank expressam uma nova ordem social, diferente e contrária ao tradicionalismo colonialista do qual Jim é a representação. Constituídos como dois malandros oportunistas, dispostos a qualquer atitude que possa terminar em lucro, irreverentes, mas hábeis em conviver (e sobreviver) em meios sociais adversos (no caso a sociedade chinesa), Frank e Basie submetem ética e moral aos interesses próprios e às circunstâncias, mas, no fundo não são maus sujeitos, são apenas “bons americanos”, pragmáticos, materialistas e muito espertos, os únicos capazes de expulsar os invasores, acabar

com a guerra e, por direito circunstancial, dominar economicamente não só os chineses, mas também os japoneses, como também os ingleses e quem mais houver.

O encontro com Frank e Basie (sobretudo este, consolidado como personagem fundamental da narrativa) faz perceber, definitivamente e de modo praticamente irrecorrível, a condição de filme de gênero em que se enquadra Império do sol. A proposta mencionada nos módulos iniciais deste estudo, sugerindo o cinema de gênero como veículo ideológico, que define valores e pré-configura um modo de ver (e aceitar) o mundo, ficam consolidadas nessas novas personagens, as quais, não por acaso, deslumbram a criança, que passa a depender deles, bem como eleva Basie à condição de herói a ser admirado, reverenciado e imitado, mesmo que isso signifique servir e obedecer.

Uma vez mais, a posição de distância (Jim não é americano), a condição de vítima e a situação de inocência (no caso, traduzida, sobretudo, pela fragilidade), que modulam o olhar da criança, permitem ao diretor provocar o estranhamento e (re)posicionar o espectador em relação aos temas dos quais o filme se ocupa. Como se verá à frente, sempre através do olhar da criança, a “guerra de Basie” (portanto a guerra dos americanos) é tão cruel e desumana como todas as outras, mas tem um sentido que, se não legitima, pelo menos explica e, portanto, torna o conflito armado algo que a sociedade aceita, mesmo sem concordar e o ser humano suporta, apesar de sofrer, porque na guerra também há como ganhar.

Ilações sobre a aceitabilidade da guerra, como visto em Império do sol, não são propriamente raras nas películas sobre o tema e dessa constatação também aflora um perfil paradoxal ou pelo menos ambíguo desse gênero cinematográfico. Trata-se de observar que, de um modo geral, o cinema de guerra hollywoodiano quase sempre procura levar ao espectador críticas contundentes a situações de beligerância, invariavelmente destruidoras e destrutivas, acompanhadas de exercícios de legitimação do mesmo objeto de crítica, apresentado como algo indesejável, mas, em certas condições, inevitável, ou seja, que precisa ser conduzida, praticada e ganha.

Essa dialética simplória e aparentemente absurda parece funcionar com razoável eficiência quando organizada a vinte e quatro quadros por segundo. Há praticamente um século, filmes de guerra vêm sendo usados para legitimar conflitos, endeusar heróis, aplacar sacrifícios, mobilizar populações, tornando a guerra explosiva, assustadora, mas, ainda assim, necessária e, portanto, aceitável.

Focando especificamente a Segunda Guerra Mundial, Chambers II e Culbert (1996, p. 4) escreveram sobre o assunto: “A Segunda Guerra Mundial foi uma guerra cinemática. Desde o começo, produtoras cinematográficas particulares e governamentais usaram imagens – em noticiários, documentários e produções cinematográficas – para ajudar a mobilizar a população para a guerra.”63

Em Império do sol, os produtores americanos do filme deixam claro que, na arena negativa da guerra, os soldados americanos estão em causa e combatem o bom combate.