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Figura 9 Vaticínio.

CINEMA, GUERRA E ESPECTADOR

No trecho de Império do sol analisado no subtítulo imediatamente anterior, além da já mencionada referência a ...e o vento levou, a relação entre guerra e cinema também se revela, explicitamente, na seqüência em que a personagem principal, após ver frustrada mais uma tentativa de render-se e ser aprisionado pelo exército japonês, cruza, involuntariamente, o eixo da filmagem conduzida por cinegrafistas militares japoneses. Em um único movimento, acompanhando os passos do garoto inglês, a cena mostra japoneses fardados captando imagens de um grupo saudando o Império, alguns segurando bandeiras japonesas e todos levantando os braços em movimentos rítmicos, expressando, uníssonos, o grito de guerra japonês: - banzai! (fig. 42).

Figura 42. Cinema na guerra.

63 World War II was a cinematic war. From the outset, governments and a national motion-picture industrie use

Associados à ambientação e às referências bélicas do filme, a cena acomoda uma linha interpretativa sugestiva e muito pertinente aos propósitos analíticos aqui perseguidos.

Em primeiro lugar trata-se de reconhecer, como já exposto em parágrafos anteriores, a articulação funcional que se estabelece entre a guerra e o cinema, tão logo a sociedade humana desenvolve e consolida técnicas e meios para captar e reproduzir imagens em movimento. Primeiro, com a câmera fotográfica e, em seguida, com a filmadora, já faz um século, ou tanto, que além do fuzil e da metralhadora, os homens (eventualmente também mulheres, mais como exceção do que regra) que estão no front, sejam soldados ou civis, apontam para os campos de batalha lentes e objetivas, recolhendo imagens e flagrando cenas. Essa prática, à medida que se repete e se intensifica, também se transforma, criando possibilidades múltiplas e diferentes de registrar e, depois, mostrar os conflitos armados. Entre os mais antigos e freqüentes desses desdobramentos gerados pela criatividade humana, pela imposição de necessidades ou simplesmente pela oferta das circunstâncias, está a simulação de eventos organizados exclusivamente para o olhar da câmera, constituindo substitutivos de fatos e acontecimentos cujo registro e posterior reprodução foram inviabilizados pela realidade, ou tornados inconvenientes frente a interesses específicos. Simplificando, a história mostra que entre os cinegrafistas dos campos de batalha o aprendizado da captação de imagens foi quase simultâneo ao desenvolvimento de simulações e trucagens, ora permitindo edulcorar e legitimar a violência dos combates, ora exacerbando o calor das batalhas, fazendo o mesmo com os rastros conseqüenciais que a guerra deixa atrás de si.

Mencionando esse aspecto que se tornou um componente praticamente obrigatório das guerras, após a invenção do cinema, Chambers II e Culbert (1996, p. 4) assinalam que, durante a Segunda Guerra Mundial:

As Forças Armadas de todas as principais nações contrataram fotógrafos que usaram câmeras leves de 16 m/m para capturar diversos aspectos da guerra (e adulterar ou encenar alguns outros) para fornecer imagens para usos militares e civis.64

No caso da cena em análise, parece evidente a simulação orientada pelos japoneses de uma reação eufórica dispensada aos feitos do exército imperial nipônico de ocupação que, perante a câmera e depois na tela, passa da condição de inimigo opressor para o positivo status de aliado solidário, contando, presumivelmente, com o apoio, o entusiasmo e a colaboração dos

64

The armed forces of every major nation employed photographers who used lightweight 16-mm cameras to capture many aspects of the war (and stage or reenact some others) to provide usable images for military and civilian purposes.

chineses. Dessa forma, a recepção que se dera com balas e emboscadas, tal como visto nas cenas da ocupação japonesa de Xangai, pode ser cinematograficamente substituída por uma calorosa acolhida de boas-vindas que os soldados japoneses respondem com sorrisos.

Considerando o exercício de ambientação perseguido pelos realizadores de Império do

sol, esta cena metacinematográfica contribui para que o espectador possa entender mais

claramente o plano de ocupação e niponização da Ásia conduzido por Hiroito, que motivou e provocou o conflito usado como arena para a representação objetivada pela obra de Spielberg.

Mas, além dessa leitura imediata e, de certa forma, mecânica, a cena em análise também guarda algumas outras possibilidades interpretativas que merecem exploração.

Trata-se de observar a relação que se estabelece entre a pequena duração e a dimensão reduzida da cena no contexto integral do filme versus o amplo cenário de desdobramentos a que essa mesma cena pode levar o espectador. Para efetuar esse movimento, basta que o espectador equacione elementos situados em tempos e/ou espaços que não estão explicitamente no filme (ou na cena), mas que são concebidos (pelo espectador) a partir do que é concretamente observado na tela.

No caso da simulação ensaiada pelos japoneses, cabe ao espectador (re)construir situações que Império do sol não mostra, mas sem as quais a narrativa não se completa. Assim, a gravação da simulação conduzida pelos cinegrafistas nipônicos só tem sentido se o espectador abstrair as condições de filmagem e imaginar um enquadramento no qual só é possível ver “as personagens” à frente da câmera ovacionando (hipoteticamente) o exército imperial do sol nascente. Desse modo, a cena não se explica por si mesma nem em si mesma se esgota. A narrativa vai além dela e tanto mais se consolida quanto maior for a capacidade imaginativa do espectador em desdobrar a cena e, introspectivamente, visualizar, mesmo sem ver, implicações possíveis e conseqüências prováveis. Nesse sentido, tão importante quanto o operador da câmera, é a figura do soldado japonês que faz as vezes de diretor, mostrando aos figurantes o que e como fazer para convencer o futuro espectador daquela tomada que todos estão muito felizes com a chegada dos conquistadores. Por isso, Spielberg tomou cuidado em colocar tanto o cinegrafista japonês como o “diretor” em primeiro plano em relação à caminhada de Jim Grahan.

Outra leitura possível e, porque não dizer, pertinente da cena em discussão é o fato da personagem central cruzar a linha de gravação da câmera japonesa, atrapalhando e, por alguns momentos, chegando mesmo a impedir o trabalho do cinegrafista militar (fig. 42). A inserção

direta do garoto ocidental no campo de filmagem parece evidenciar que o conflito entre japoneses e ocidentais ainda não se encerrou, apesar de, momentaneamente, a maré da guerra mostrar-se favorável aos asiáticos. A figura de Jim cruzando a linha de filmagem pode ser vista como lembrete da oposição das nações ocidentais aos planos japoneses, para os quais não haverá tolerância nem concordância. Mais cedo ou mais tarde a raça branca voltará à condição de domínio militar, político, econômico e cultural da Ásia e do mundo, ainda que não mais na condição de colonizadores, no sentido estrito do termo, impedindo a realização do projeto nipônico de conquista. Nessa linha de interpretação, importante notar, uma vez mais, que o olhar da criança é chave para Spielberg mostrar que nem tudo é o que parece, ou como parece, cabendo à criança, como vítima inocente e distante, orientar o olhar do espectador do que parece ser para aquilo que deve ser, ideologicamente falando (ou mostrando, como acontece no cinema). Ou seja, a criança consegue ver o engodo que se manifesta “por trás” dos filmes propagandísticos, o que nem sempre é dado aos adultos perceber.

Ainda que tenha se ocupado de colocar o cinema como um componente explícito e flagrante do seu filme, o diretor de Império do sol também faz menções implícitas à sétima arte, permitindo ao expectador exacerbar as relações de proximidade e sintonia dessa modalidade de narrativa com os confrontos armados.

A suposição de que personagens da guerra podem constituir (boas) personagens de filmes e que a beligerância humana “cai bem” aos olhos da objetiva cinematográfica pode ser observada no modo como cenas e personagens são emolduradas pelos planos e ângulos de filmagem. Praticamente toda a seqüência do deslocamento das famílias européias pelas ruas de Xangai é feita através das janelas dos automóveis, que, em determinados momentos, emolduram a visão que os ocupantes do veículo têm da multidão que se movimenta pela cidade prestes a ser devastada pelos combates. Em outras tomadas, são os ocupantes dos veículos que aparecem emoldurados pelas mesmas janelas. Ao fim, a multidão chinesa e as famílias européias aparecem como protagonistas de um filme dentro do filme, que tem na janela dos automóveis a tela de projeção. Esse recurso volta a aparecer quando Jim observa a guerra através da janela do quarto de hotel (fig. 19). Da mesma forma, o uso de superfícies reflexivas (por exemplo, espelhos) e a projeção de sombras são recursos que pontilham a narrativa, no mais das vezes sugerindo que, ao olhar da criança, potencialmente causador do estranhamento, a guerra se apresenta como um filme, ora fazendo o registro fiel dos acontecimentos, ora constituindo um convite à reflexão e à

crítica, assim como, em alguns momentos, tem efeito similar aos sonhos e pesadelos que transformam a ordem das coisas em caos.

Durante a Guerra Fria, governos ditatoriais tomaram o cuidado de censurar drasticamente o cinema, imbuídos da idéia de que a projeção na tela poderia subverter o status quo político e estimular ações e reações indesejáveis de caráter bélico, como as revoluções, sublevações, quarteladas e outras tantas que pudessem ameaçar os ditadores de plantão. A criterização para conceder ou não conceder ao público o direito de assistir determinados filmes, como sempre acontece nesses casos, acabou beirando o ridículo, criando situações no mínimo surrealistas. Mas, se em nenhum dos casos de censura de filmes verificou-se indícios de legitimidade moral ou comunicacional, há elementos reveladores para entender o que poderia passar pela cabeça dos censores na tomada de decisão para liberar determinado filme, ou inundar o escritório do departamento de censura com o tonitruante som do carimbo “proibido” caindo sobre os rolos das fitas consideradas perigosas. Acreditavam eles que, ao modo como são apresentadas, cenas e sons vistas na tela podem provocar comportamentos e estimular ações. Na cabeça desses senhores, o cinema não só pode fazer pensar, como pode, também, levar o espectador a agir. Portanto, alguns filmes de guerra precisavam ser censurados dado que poderiam levar os espectadores às armas.

Os estudiosos da comunicação social ainda não chegaram a um consenso sobre essa capacidade mobilizadora do cinema, no mais das vezes considerada devaneio esquizofrênico dos censores65. Mesmo assim, durante muito tempo, filmes de guerra, entre outros, foram proibidos aqui e acolá, tendo como caso emblemático o clássico soviético assinado por Sergei Eisenstein,

Encouraçado Potemkin (ex União Soviética, 1925), cujos detratores acreditavam que ao levante

assistido na tela seguiria a insurreição popular no plano da realidade e, por isso, o filme foi proibido por muito tempo, em muitos países, inclusive no Brasil.

Seja como registro documental, seja como veículo propagandístico, seja até mesmo como inconseqüente relato de aventuras, o fato é que cinema e guerra mantêm um amplexo íntimo e intenso, que empresta, ao primeiro, possibilidades cada vez mais amplas e diversas de tratamento, observação e reprodução. Quando trazida para o filme em análise, essa amplitude se manifesta nas diferentes oportunidades que os realizadores de Império do sol criam e usam para colocar o espectador em contato com aspectos diversos da guerra. Racionalmente articulados no que será chamado aqui de corpo do filme, na falta de termo mais adequado, esses recursos procuram fazer

do espectador um observador privilegiado, ou seja, alguém que toma consciência de elementos vedados às personagens do filme e, muitas vezes, também às personagens (reais ou fictícias) da guerra que o filme se ocupa em narrar. Nesses termos, a narrativa cinematográfica pode ser vista como elemento de aclaramento ou elucidação, veículo que leva ao espectador subsídios que podem ser usados para compreender, ou tomar posição sobre uma determinada situação de beligerância, ou sobre a guerra no sentido terminológico mais amplo e genérico.

Por essa razão, existem filmes de guerra que exasperam alguns espectadores, outros que incomodam, outros, ainda, que esclarecem (ou dão a sensação de que esclareceram), permitindo pressupor a condição mediadora que o cinema pode estabelecer entre seus espectadores e os campos de batalha.

Valendo-se do olhar da criança para posicionar o espectador em relação à guerra, pela via do estranhamento que se manifesta por um modo diferente de ver o conflito, Steven Spielberg insere a personagem principal em situações diversas, fazendo diversificar também as relações dela com as personagens coadjuvantes. A cada um desses passos corresponde um novo componente que o diretor faz agregar à representação da guerra que o filme constrói. Por sua vez, esse seqüenciamento de situações e personagens atua sobre a personagem principal que, paralelamente, vai sofrendo mudanças e assumindo novas posturas em relação ao evento bélico do qual é observador e protagonista. Mediante essa leitura, não são descabidas analogias com os ritos que marcam e oficializam a passagem para status sociais diferenciados. No caso do filme, cada experiência traumática afasta Jim Grahan um pouco mais da posição distante, da condição de vítima passiva e da situação de inocência em relação à guerra, levando o garoto na direção do modo de ver dos adultos. Numa palavra, a criança cresce, modificando o eixo do estranhamento que o diretor endereça ao espectador.

No plano da recepção, a intenção do diretor se realiza quando o espectador se deixa levar pela sedução, passando, ele também, para planos diferentes de observação e interpretação da guerra.

O encontro com Basie pode ser tomado como plano-seqüência exemplar das transformações que o enredo de Império do sol programa e aplica em Jim Grahan, transformações essas que, intencionalmente, são replicadas no receptor do filme.

O desapego ao cerimonial social, o pragmatismo e, sobretudo, a capacidade de adaptação e sobrevivência que modelam a personagem do aventureiro americano vão impactar fortemente

nos valores sociais e na concepção de sociedade que são os modeladores do caráter do jovem britânico. A chegada de Basie transforma a tragédia da guerra em circunstância desagradável, incômoda, mas superável e passageira. Como americano, Basie é um vencedor, o primeiro dos muitos americanos que vão chegar para recolocar o mundo em ordem. Na platéia, o espectador acompanha e comunga a transformação da personagem. Basie? Um mau caráter é verdade. Mas, ainda assim, o herói que, mesmo que marcado pela pecha de mau caráter, sempre representa o lado positivo e aceitável da guerra.

Na ponta inversa, Jim também altera o modo de ver (e, portanto, o filme altera o modo de mostrar) os japoneses, ainda admirados como combatentes bem preparados, mas também marcados pela maldade e pela selvageria, evidenciadas no modo como agridem e espancam os americanos, quando o trio é aprisionado, tentando entrar na mansão dos Grahan, agora ocupada por soldados nipônicos. Vistos, até então, como figurantes distantes e impassíveis, marchando garbosamente pelas ruas de Xangai, insensíveis ao inglês buscando a rendição, certamente preocupados e ocupados com assuntos mais sérios que um jovem ocidental perdido na metrópole chinesa, após a cena da captura de Jim e dos americanos, os japoneses chegam mais perto da personagem central e também se tornam mais ameaçadores para o espectador. Agora os japoneses são o inimigo e, portanto, há alguém contra quem lutar e Basie, enquanto personagem, fica encarregado de conduzir simbolicamente essa luta, resistindo e sobrevivendo às penúrias do campo de internação para onde será levado juntamente com o pequeno súdito de sua majestade britânica.

Antes de chegar ao campo de internação de prisioneiros estrangeiros civis, a dupla passa pela área de triagem, onde Jim começa a aprender que, para alguns, as regras da sobrevivência não podem passar pela solidariedade, como também não podem desdenhar da esperteza e da engenhosidade, qualidades americaníssimas, que Basie enverga como roupa feita sob medida para o seu talho aventureiro e, ao fim, vencedor.