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RECORTES DE IMPRENSA

GUERRA: OBSERVAÇÃO E NARRATIVA

Dedicada a considerações sobre modos e possibilidades do cinema construir narrativas de guerra, a primeira parte do trabalho mostrou alguns artifícios que possibilitam ao cineasta estimular no espectador visões particularizadas de assuntos e temas que constituem roteiros filmográficos. A definição dessa paralaxe, em percurso simultâneo e coincidente, resulta de um modo próprio de olhar, que provoca (ou procura provocar) um jeito de ver, localizando o cineasta (provocador) na extremidade constitutiva e emissora do processo, responsável pela manipulação e o espectador (provocado) na ponta receptiva, envolvido com a cumplicidade. Nesse sentido, a narrativa cinematográfica de guerra resulta do modo como o cineasta vê o assunto, a partir do que emerge e se edifica o modo como será a narrativa que sempre pressupõe intenções (do narrador), o que pode ser expresso de modo simplificado pela seguinte frase: “olha, sobre guerra, é isso que eu quero mostrar.”

Como observado na parte anterior da tese, a interferência do “eu” não desqualifica nem inviabiliza a narrativa cinematográfica, dado que a cumplicidade predispõe o espectador a endossar e consumir113 a mensagem, na sua forma e no seu conteúdo, a partir da manipulação do cineasta (pressuposta e conhecida pelo espectador).

No caso da narrativa jornalística, em tese, há uma inversão de valores que substitui a passividade por flagrante desconforto quanto à aceitação da relação de manipulação e cumplicidade, embora a manipulação exista como prática jornalística, conforme visto acima. Todavia, a rigor, o leitor espera tudo do jornalista, menos a manipulação, enquanto a própria deontologia da atividade jornalística nega, por princípio e em princípio, relações de cumplicidade entre o jornalista e seu público leitor, dado que o compromisso daquele deve ser com a verdade dos fatos e a expectativa deste é o conhecimento, sem interferências, dessa mesma verdade “de fato”. A idéia é que, se ao cineasta é permitida a narrativa pela narrativa, tornando flexível a relação de veracidade com o assunto narrado, ao jornalista é exigido irrestrito compromisso entre o fato (aquilo que será noticiado) e a exposição comunicacional do fato (a notícia). Lage (2006) chega mesmo a afirmar que a notícia não narra, mas expõe. Sobre o mesmo assunto, exacerbando a simplicidade clarificadora e professoral do seu texto, Erbolato (2002, p. 55), ao apresentar um

113 Consumo usado aqui como categoria de análise dos estudos de recepção. Significa o uso que o receptor faz da

modelo idealizado de notícia, já coloca logo título que: “A notícia deve ser recente, inédita, verdadeira, objetiva e de interesse público”. Mais à frente reafirma: “A imprensa deve publicar, na categoria de informações, o que seja verdadeiro, pois a ficção é objeto dos romances (...)” (ibid, p. 56).

O ponto nevrálgico dessa diferença valorativa está na pressuposta e anunciada diferença de objetivos que leva o cinema ao cesto dos veículos de comunicação de entretenimento e o jornalismo ao elenco dos veículos de comunicação informativa. A diferença parece radical, mas, quando esmiuçada, revela sutilezas que mais aproximam que separam os modos jornalísticos e cinematográficos de tratar a guerra.

O primeiro ponto de questionamento das diferenças entre jornalismo e cinema, enquanto modos de narrar a guerra, está na idéia de que uma dessas formas de comunicação é informativa e a outra não é informativa. Ora, considerando a noção já exposta de que informação agrupa dados processados segundo diretrizes lógicas compartilhadas pelo emissor e pelo receptor, não há como reconhecer qualquer gênero de mensagem como não informativa. Vale dizer, qualquer mensagem leva ao receptor algum nível de informação, mesmo que seja para explicar o que a realidade não é, ou não pode ser, como sugere a ficção. Portanto, não decola o raciocínio que contrapõe ficção e jornalismo, aproximando um e afastando outro da verdade e da realidade. A questão, no máximo, pode ser balanceada pelo viés quantitativo, colocando a mensagem jornalística como mais próxima ou mais compromissada com aquilo que se pressupõe seja verdade ou realidade, edificando um nível de compromisso que, obviamente, pode ser menos flagrante na comunicação ficcional.

Mesmo assim, coeficiente informacional não é o único parâmetro que se mostra insustentável para a separação radical das formas de comunicação aqui observadas. Realidade e verdade, do ponto de vista comunicacional, não representam entidades fechadas e prontas, perceptíveis ao olhar, independentemente dele. Logo, realidade e verdade não são se não aquilo que o observador quer ou consegue ver, assim como a comunicação expõe tão somente o que o emissor entende ser aquele binômio. No caso da guerra, aquela que o leitor flagra no jornal é a que o jornalista quis e conseguiu ver, portanto imagem espelhada, que não apresenta, mas reproduz a guerra, que é representada a partir do modo como foi observada.

Por outro lado, narrativas jornalísticas de guerra também se amoldam ao contexto em que são constituídas e publicadas, bem como sofrem vigorosa influência do perfil do receptor a que se

destinam. Assim, o formato das notícias e o modo como são consumidas estão intimamente ligados ao tempo/espaço social em que transitam, marcando modos específicos de relacionamento com o texto e a imagem, a partir da cultura, da ideologia, da técnica e da tecnologia características do ambiente em que a notícia é construída e divulgada.

Ao comentar a produção, as interpretações e os usos de material fotográfico sobre a Comuna de Paris, Jeannene Przyblyski (in CHARNEY e SCHWARTZ, 2001) lembra que o período (final de século XIX), além de ser marcado pela ebulição política, também foi caracterizado pelo desenvolvimento de novas técnicas e tecnologias de comunicação (entre as quais a fotografia, de que a autora trata mais objetivamente no seu texto), por transformações econômicas determinantes de novos modos de consumo dessas tecnologias e, por fim, pela popularização e pelo aburguesamento da imprensa, fatores que, articulados, ajudam a entender os modos como fotografias e ilustrações sobre a Comuna foram produzidas, como circularam e como foram interpretadas quer pelo público consumidor da época, quer por exercícios posteriores de análise por conta de historiadores, cientistas sociais e cronistas.

Przyblyski (ibid) relata, por exemplo, que o uso de fotomontagens114 foi bastante comum durante e depois do evento, assim como foi intensa a aceitação dessas montagens como expressão da realidade histórica. Mais ainda, a pesquisadora insinua que a aceitação podia ocorrer tanto nos casos em que o autor não revelava, explicitamente, a montagem, como naqueles em que essa intervenção era anunciada. Em ambos os casos, a tendência do público era aceitar o produto fotográfico como registro documental dos acontecimentos “flagrados” na chapa. Ou seja, afirma a autora, já se anunciava, na época, o leitor do jornal capaz de satisfazer sua busca por informação (ou entretenimento) com o recurso da reprodução ou do artifício, que, reconhecidamente, não mostravam diretamente a realidade, mas reproduziam determinados fatos com fidelidade suficiente para permitir, por parte do receptor, a compreensão do fato reproduzido e do contexto em que esse fato se dava. Isso bastava para saciar e satisfazer sua curiosidade sobre o tema noticiado, incluindo cenas e personagens apresentadas fotograficamente, tanto as que reproduziam diretamente o que fora enquadrado e registrado pela câmera, quanto aquelas submetidas a processos de manipulação ou adulteração de imagens.

114 O termo fotomontagem, aqui, refere-se tanto à intervenção técnica na fotografia já produzida, como também o

Dois séculos depois da Comuna, esse modo estenográfico de consumir o noticiário a partir de fatos pontuais, reproduzidos por meio de imagens e textos, para entender contextos mais amplos (sociais, políticos, econômicos e culturais) continua valendo. Referindo-se à imprensa atual, o jornalista Florence Aubenas e o filósofo Miguel Benasayag iniciam o livro A fabricação

da informação afirmando que já virou passado a irrestrita convicção popular de que noticiário e

verdade são obrigatória e invariavelmente congruentes. Todavia, afirmam, o público continua consumindo informação jornalística com avidez crescente. Sobre o tema, escrevem:

Os jornais [hoje] se vêem, efetivamente, em uma estranha postura. Jamais foram tão solicitados, no momento mesmo em que sobre eles se acumulam as mais duras críticas. Qualquer que seja a opinião dos jornalistas, a mais microscópica associação tem, em geral, como primeiro objetivo obter uma „cobertura na mídia‟. Em suma, todos sabem hoje que os jornais refletem menos a realidade do que a representação que dela criaram, mas todos querem estar presentes neles. (AUBENAS, BENASAYAG, 2003, p. 11).

Esse jogo de descrença e aceitação por parte do público versus representação e ausência de compromisso no que respeita à imprensa encontrou seara fértil na industrialização concentrada dos meios de comunicação jornalística, criando modelos universalizados que se ocupam da produção e da distribuição de representações padronizadas em escala global e mercadologicamente referenciadas, desaguando na retórica, segundo o mais rasteiro e depreciativo sentido do termo, fenômeno que o ex-editor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, chama de discurso infantilizante (in MORAES, 2003). A fonte dessa modalidade discursiva são as chamadas mega corporações midiáticas e os modelos de jornalismo pasteurizado que tais empresas produzem e fazem circular planetariamente.

Esse ambiente de comunicação industrializada e pasteurizada, marcado por representações que tendem para a padronização e o sensacionalismo as quais, cada vez mais, substituem o noticiário, no sentido mais tradicional e idealizado do termo, esse ambiente, repita-se, orienta, também, o modo como o jornalismo observa e narra os episódios de guerra. Para dar conta desse objetivo o jornalismo recorre a estratagemas diversos, vestindo suas narrativas com roupagem específica, todavia, repetindo e ruminando, ao mesmo tempo e em igual medida, características comuns a outros gêneros de comunicação, incluindo o cinema. A isso equivale dizer que técnicas e funções sociais distintas sem dúvida dão alguma cor diferenciada a diferentes meios de comunicação, havendo, no entanto, um cordão umbilical que liga e, em certos aspectos, assemelha esses meios todos no âmbito do contexto social contemporâneo, global, orientado pelo mercado e amarrado pelo pensamento único da ideologia liberal. O espetáculo, seja o jornalístico,

seja o cinematográfico é representante emblemático desse cordão umbilical, que irriga com o mesmo sangue diferentes modalidades de comunicação.

Recorrendo a uma divisão tripartite do universo comunicacional, representada por esferas que envolvem a cultura de massa (cinema, telenovela, quadrinhos, entretenimento de um modo geral), a comunicação institucional (esfera que contém a propaganda, a publicidade e as relações públicas) e a informação (esfera que engloba o jornalismo), Ramonet afirma que “Cada dia existem menos fronteiras entre esses três setores” (ibid, p. 243).

Vistos estes aspectos, fica mais fácil entender por que a narrativa jornalística sobre conflitos armados aparentemente abriga objetivos e formatos específicos, mas que se revelam distintos dessa aparência quando observados desde um viés crítico, com o concurso do olhar cinematográfico, a começar pelo modo como os jornalistas se equipam e se preparam para ver a guerra que vão contar aos seus leitores.

Assim como as equipes que produzem cinema, os profissionais da imprensa observam a guerra como algo a ser mostrado para pessoas que vão se comportar como públicos específicos no contato com o meio narrativo, espectadores lá, leitores de jornal aqui. Nesse sentido, assim como os cineastas, os jornalistas se vêm como comunicadores e é como objeto de narração que encaram a guerra. O cineasta quer atrair a atenção do espectador para o que vai ser mostrado na tela. Para o jornalista o objetivo não é muito diferente, exceção à substituição da tela do cinema pela página do jornal. Na essência, ambos buscam a atenção do receptor para o que pretendem narrar. Um tentará seduzir pela ilusão, que entretém o espectador, o outro pela impressão da exposição dos fatos, que, presumivelmente, interessam ao leitor.

Entre as conseqüências que a forma narrativa provoca sobre o modo de ver está o redimensionamento do objeto observado, cujos limites deslocam-se da realidade para a narrativa continente, assim como estabelece uma hierarquia de valores com parâmetros definidos também pela narrativa. Trata-se de reconhecer que no ato de abrir o jornal e dispor-se a ler uma notícia, existe a consciência de que o assunto do qual o texto se ocupa “chega” até o leitor por determinados meios baseados na palavra escrita. Por outro lado, ao acomodar-se defronte a tela, o mesmo (ex)leitor, assume a condição de espectador, também consciente de que o tema do filme vai “chegar” a ele por (outros) meios, apoiados na imagem em movimento e componentes acessórios (som, texto, etc.). Esse movimento foi comentado anteriormente, no capítulo referente às relações entre cinema e espetáculo, no que refere ao envolvimento do receptor com a narrativa

quanto ao uso da imaginação, lembrando que tanto o leitor de notícias quanto o espectador de filmes precisam dela para levar a bom termo o processo de comunicação. Assim, formas de narrar pressupõem algum nível de domínio técnico, seja para quem recebe, seja para quem constrói a narrativa. Ao tratar dos critérios de noticiabilidade, Costa (2002, p. 146) explica que a técnica (de narrar) orienta e define o processo:

A rigor, a definição de notícia está afeta aos princípios de seleção e exclusão. Ressaltar ou desconsiderar aspectos da realidade, transformados em objeto noticioso, depende de muitos fatores, entre eles, a subjetividade do profissional, o seu domínio do tema e a sua capacidade de reelaborar o fato. A restrição decorre também do tempo/espaço industrial necessário para a informação ser veiculada, (...).

Em termos mais simples, a proposta é que o jornalista procura certa adaptação da realidade à notícia e, portanto, investiga a realidade à luz dessa perspectiva. A linha editorial do jornal, o espaço para a divulgação da matéria, a existência ou não de recursos adicionais (como fotografia, por exemplo) são apenas uma amostra de fatores que pré-influenciam o modo como o jornalista se aproxima do fato que vai noticiar. Conta-se no meio jornalístico que determinado rádio- repórter, enviado para cobrir um incêndio de grandes proporções na área urbana central da capital paulista, ficou retido no trânsito, sem poder aproximar-se do sinistro que vislumbrava, de modo muito difuso, à distância. Conectado com os ouvintes através do rádio transmissor do veículo de reportagem, o repórter passou a narrar a dimensão não do incêndio, mas do congestionamento que o impedia de chegar ao “coração” da matéria objetivada. Nessa situação, ocorreu-lhe aquilatar as dimensões do incêndio tomando como referência o volume do congestionamento e assim, fez chegar ao ouvinte informações sobre um gigantesco incêndio, observando um descomunal engarrafamento! A história faz parte do folclore jornalístico e, portanto, não pode ser tomada como verdade. Talvez, seja a mera exacerbação ficcional de um fato menor (a dificuldade do repórter vencer o trânsito para chegar ao local da matéria), mas, de qualquer forma e com uma pitada de humor, ilustra a proposta aqui ensaiada sobre as possíveis e, em certos casos, prováveis “adequações” da realidade aos interesses ou possibilidades postas à disposição do jornalista para a confecção de notícias. No caso das coberturas de guerra, os caminhos, por vezes, são os mesmos. A (re)criação da batalha naval da guerra hispano-americana, usando miniaturas, já mencionada anteriormente, é só um exemplo mais recorrente desse exercício algo comum no jornalismo de “dar um jeito de colocar a realidade nos parâmetros da notícia, quando o inverso não se mostrar possível.” O importante, é que o leitor receba a notícia e sinta-se informado.

As análises da parte anterior mostraram como o cinema adapta o conteúdo da narrativa às suas necessidades, aos seus objetivos ou às suas restrições técnicas. O mesmo modo de ver também pode revelar muito sobre a imprensa.

Sobre esse tema, Aubenas e Benasayag (2003, p. 19) reputam aos jornalistas a proposta althusseriana de ideologia, como o exercício em que a resposta precede a pergunta. Ao comentar o modo como jornalistas costumam selecionar entrevistados e conduzir entrevistas, os autores escrevem:

Toda situação inédita produzirá suas próprias criaturas. Um atentado? Encontrem-se o bombeiro heróico e a pessoa salva. Um movimento estudantil ou social? Procurem-se o líder e o manifestante que desfila pela primeira vez. (...) Nas redações espantosas encomendas de artigo são às vezes feitas: „Precisa-se de um professor encolerizado contra a reforma escolar‟ (...). Tornou-se raro poder seguir o fio da história, ir ao sabor da situação sem tentar calcular, mesmo sem qualquer malícia, aonde ela vai levar. O jornalista raramente descobre. No melhor dos casos, encontra, e no pior encontra o que procura.

Mas não se trata, somente, de esculpir personagens até que se ajustem ao formato que o jornalista quer dar ao fato-notícia. A própria entrevista, insistem Aubenas e Benasayag (2003, p. 20), também pode ser uma forma de enquadramento ao esperado:

Ele [o problema da localização de entrevistados adequados] começa a partir do momento em que um jornalista busca alguém para simbolizar uma situação. Isso supõe que ele oriente o seu trabalho, mesmo com as melhores intenções, em função de uma conclusão já tirada. Diante de um eleitor da frente nacional115, por exemplo, um jornalista se esforçará para obter uma única frase (...) „Há imigrantes demais‟. Aí está, ela foi dita, obrigado senhor, tínhamos razão de pensar o que pensávamos. E até logo.

A tendência à programação prévia de fontes e entrevistados estimulou a importação, para o campo do jornalismo, de termos inexistentes no jargão tradicional da imprensa, como é o caso de personagem e caracterização (de personagens). Originalmente, ou tradicionalmente, jornalistas não trabalhavam com personagens, que era atividade própria de outras formas narrativas. Atualmente o “preconceito” foi superado, e o termo personagem já é usado nas redações e no meio acadêmico de ensino de jornalismo para designar pessoas que, de alguma forma, são citadas ou se manifestam em narrativas jornalísticas, mesmo quando se trata de reportagens, no mais tradicional sentido do termo.

Mas a questão não é simplesmente semântica ou terminológica. Junto com a palavra, o jornalismo encampou também o conceito, equipando-se, por conseguinte, das técnicas de “criação” de personagens. A caracterização visual é um exemplo. Na crítica que fazem ao

jornalismo contemporâneo, Aubenas e Benasayag (2003, p. p. 21 e 22) dão a exata dimensão de como a imprensa (no caso do exemplo, mais especificamente a televisão, mas não só) prepara suas personagens para o espetáculo da notícia:

Encontrar personagens não é tudo. È preciso também pô-los em cena. Um cientista com avental branco cercado de tubos de ensaio terá um ar mais „verdadeiro‟ do que se estivesse no barbeiro. Se ele gaguejar em uma palavra, será preferível fazer uma nova tomada da cena, para que desta vez o som seja melhor. Já no caso de um desempregado que recebe pensão do governo, um balbuciar não é um problema, mas uma vantagem. O desempregado está por definição perdido, confuso. Ele parecerá mais verossímil com avental do que apenas com terno. Há casos em que se pede que a pessoa mude de roupa para a filmagem. Ou então a própria equipe se encarregará disso. Para que garotos da periferia lembrassem mais o islamismo, o técnico de uma rede acrescentou barbas a suas imagens. Do mesmo modo, a única foto de Makomé, que acabara de se suicidar numa delegacia, mostrava-o segurando uma garrafa de champanhe: essa „imagem de festa‟ não combinava com a situação, segundo um jornalista que queria utilizar a foto. Um respingo de cola na imagem da garrafa. Quando se morre numa situação dramática, é preciso continuar nela.

A constituição e a caracterização de personagens não são os únicos itens da lista que aproxima as fórmulas de compor a notícia jornalística de um modelo narrativo contemporâneo padrão de fazer comunicação que, de certo modo, embaralha os diferentes gêneros comunicacionais. A espetacularização, tão comum no cinema, conforme mostrada na primeira parte deste trabalho, também freqüenta com incidência crescente as páginas do jornal.

Assim, como a reprodução comme s’il fait quase nunca é possível e nem sempre corresponde aos propósitos narrativos do jornalismo, cabe substituir o fato pela interpretação do fato, exercício que induz o jornalista a modelar e modular a notícia a partir de recursos que podem incluir (e geralmente o faz, como se verá adiante) a espetacularização, agindo de modo não muito diferente de outros comunicadores, como o cineasta, por exemplo, embora perseguindo objetivos (comunicacionais) diferentes e recorrendo a estratagemas algo distintos daqueles verificados na sétima arte.

Basicamente, a diferença entre a espetacularização voltada para o entretenimento e sua correspondente jornalística é que aquela procura, intencionalmente, afastar o receptor da realidade, enquanto esta procura fazer do espetáculo a impressão da verdade. No cinema, por exemplo, o espectador sabe que está vendo o espetáculo (que pode até revelar alguma coisa sobre a realidade). Já para o leitor do jornal, a distinção entre espetáculo e realidade pode até ser pressuposta, conhecida e reconhecida, mas não pode ser evidente, pois o primeiro deve ser confundido com a segunda, ainda que por concessão do leitor.

A espetacularização jornalística da realidade não é novidade no âmbito acadêmico, aonde chegou com a etiqueta da polêmica e, por isso mesmo, gerou e continua gerando muito debate e