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Figura 9 Vaticínio.

A GUERRA TRANSFORMADORA

Exceção feita às amargas experiências na área central de Xangai, quando é envolvido pelo tiroteio entre resistentes chineses e tropas de ocupação nipônicas, o primeiro impacto da guerra sobre Jim Grahan não é o calor da batalha, o rugido das explosões ou o matraquear das metralhadoras. Ao garoto perdido dos pais, a guerra vai impor uma nova condição de viver e de encarar a vida, servindo esse remédio amargo em doses homeopáticas, uma drágea por vez e cada

vez com intensidade maior. A primeira delas é a deterioração da organização social à qual, até então, Jim estivera acostumado.

Freqüentar a escola, cantar no coral, conviver num ambiente típico do "lar" burguês da família nuclear contemporânea/ocidental, vistos nas cenas iniciais de Império do sol, evidenciam os parâmetros sociais que enquadram e definem o "modo de vida" do jovem Jim Grahan, mostrando não só comportamentos e hábitos, mas deixando transparecer também valores e condição social, por exemplo, nas seqüências referentes ao relacionamento entre o jovem britânico e a preceptora chinesa que o acompanha na escola e em casa. Essa personagem educa e orienta o garoto inglês com rigor e severidade, todavia, sem deixar de servir e submeter-se, definindo claramente a hierarquia social predominante no contexto focado pelo filme. Tal situação pode ser observada nas seqüências iniciais, quando a preceptora acompanha o jovem nas suas atividades e repreende comportamentos identificados como inadequados para qualquer membro de uma família britânica tradicional. Há inclusive uma cena em que Jim, textualmente, diz à preceptora: - “Você deve me obedecer”.

Figura 25. Abandono. Figura 26. Normas quebradas.

A guerra vem provocar alterações profundas nesse "modo de vida" do garoto, com a separação rápida e inesperada da família e o completo desmoronamento do “lar” enquanto lócus de concepção social. Interessante notar que apesar dos elementos materiais (casa, mobília, etc.) permanecerem quase intactos, na seqüência que mostra Jim de volta à sua casa, já separado dos seus pais, são as relações sociais ausentes que provocam o “desaparecimento desse lar”. Ou seja, o garoto experimenta (ou sofre) mudanças sociais provocadas pela guerra, incluindo a quebra da hierarquia entre "patrão e empregado", emblematicamente expressa quando a ex-preceptora

chinesa saqueia e abandona a casa dos Grahan, esbofeteando o adolescente antes de fugir, apesar dos reclamos do garoto sobre a flagrante quebra da ordem hierárquica55.

As seqüências imediatamente seguintes reforçam a desestruturação da organização social (familiar) em que a personagem estava inserida e à qual estava adaptada, começando pela imagem do piano, símbolo do lar, conforme visto atrás, sem a figura da mãe tocando, em clara referência à dissolução da família por força da guerra (fig. 25). No início Jim tenta manter valores e comportamentos, refazendo, sozinho, o ritual da refeição ao qual estava acostumado. Entretanto, à medida que o tempo passa e os meios de sobrevivência – comida e água - escasseiam, o garoto vai abandonando o rito cultural que expressa os valores do seu meio, reconfigurando o ambiente comportamental ao qual fora originalmente entronizado por força da sua condição social. Comer, de uma vez, todos os derradeiros bombons de licor e circular de bicicleta dentro da casa (fig. 26) são alguns exemplos do desaparecimento dos referenciais sociais de Jim Grahan, culminando com a cena em que ele caminha dentro da piscina vazia e ali encontra traços da organização social à qual pertencera, agora desaparecida: bolas de golfe do pai, uma moeda com e efígie da Rainha, um par de óculos, uma taça, quiçá jogada na piscina durante uma festa como a que foi mostrada na parte inicial do filme e que já não acontece mais porque o estado de guerra, que mantinha a comunidade ocidental próxima, mas ainda apartada do conflito, se transforma em guerra declarada, conduzindo os integrantes da comunidade à condição de refugiados, prisioneiros ou marginais à nova ordem político-social que se instala na China. Essa nova situação também é simbolizada pela declaração imperial de expropriação de imóvel afixada pelo governo de ocupação na porta da casa dos Grahan.

Isolada em casa, sem a presença dos pais, a personagem infantil de Spielberg constitui elemento se não ideal pelo menos idealizado para tratar da quebra dos paradigmas que regem a organização social, uma vez que, desde certo modo de ver, as crianças configuram o arquétipo da transgressão, pelo desconhecimento da normatização social e, por isso mesmo, configuram o objeto primordial da educação (aqui entendida como exercício de socialização, ou integração social). Nesses termos, é importante lembrar que a manifestação do desejo inocente de viver sem o controle constante e permanente dos pais (e no caso de Jim, também da preceptora), podendo descumprir a ritualização social, não é incomum às crianças. Por isso mesmo, o plano seqüência

55

A seqüência acontece quando Jim retorna para casa e intercepta Amah, sua preceptora (a essa altura, ex), carregando a pilhagem. Jim pergunta; “O que você pensa que está fazendo”. Sem dizer palavra, ela caminha na direção do garoto, esbofeteia seu rosto com força, retoma o butim e deixa o prédio.

que trata da desorganização social provocada pela guerra, tal como visto em Império do sol, resulta eficiente enquanto narrativa, mostrando que a composição da personagem cinematográfica é uma ferramenta importante para o exercício de comunicação que o cineasta estabelece com o espectador. Neste caso, o objetivo do diretor parece focar a revelação de que a guerra representa o caos e pode provocar mudanças na organização social vigente antes dos conflitos. Quanto a isso, ainda, cabe ressaltar a habilidade do diretor na composição da personagem e na condução da narrativa por meio dessa personagem. Não foi a primeira nem a única vez que Spielberg revela inquestionável competência para desenvolver crônicas da sociedade usando personagens infantis .

E.T. o extra-terrestre (Estados Unidos, 1982) e Poltergeist, o fenômeno (Estados Unidos, 1982)

são dois exemplos dessa capacidade.56

No caso do cinema de gênero, que este texto procura focar e, aí dentro, do gênero de guerra, não é incomum o uso de personagens infantis para fazer chegar ao espectador posições, considerações e reflexões do diretor sobre o conflito armado. Entre outras possibilidades, essa conduta pode ajudar a inserção de um componente narrativo necessário ou, pelo menos, conveniente à aproximação do espectador com o objeto narrado (no caso, a guerra), representado pelo estranhamento. Assim, o olhar infantil configura-se como o fio condutor capaz de induzir o espectador a “estranhar” e, por isso mesmo, observar a guerra de modos diversos. É o que acontece em Império do sol, na medida em que o diretor cria condições para mostrar, subjetivamente, a rapidez e a profundidade com que a guerra pode alterar o ambiente social, provocando, ainda que indiretamente, alterações também apressadas e radicais nas pessoas, expondo as conseqüências (sociais) do confronto bélico, que se manifestam fora dos campos de batalha e além dos tempos de combate e que, no filme, se evidenciam pelo comportamento e pelo olhar da criança.