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Figura 9 Vaticínio.

ESPETACULARIZAÇÃO COMO RECURSO NARRATIVO

Tal e qual observado em Império do sol, a espetacularização é um componente se não obrigatório pelo menos essencial ao cinema de gênero, no geral e aos filmes de guerra, em particular. Mais que fazer o filme, no sentido de tornar a obra atraente, o espetáculo é o filme em si mesmo, concentrando o que o diretor tem para mostrar e o que o espectador quer observar. Na sua parte inicial, este trabalho procurou mostrar que existem elementos outros da narrativa cinematográfica que podem estimular interpretações diversas, inserindo o espectador em uma situação de permanente diálogo com os realizadores do filme, em que estes oferecem imagens, movimentos e sons, articulados desta ou daquela forma, enquanto aquele, ao procurar (re)articular e relacionar esses mesmos sons, imagens e movimentos, pode construir um texto interpretativo da obra (o equivalente a mensagem nas teorias de comunicação social). Entretanto, a relação pela via do espetáculo tende a substituir esse diálogo por um monólogo, que exige imaginação, mas dispensa ou reduz o exercício da interpretação.

No cinema, o efeito espetacular está fortemente associado à imaginação, sem a qual, o show não se realiza. Entretanto, para entender essa relação é preciso ter em mente, antes de tudo, que o imaginário, enquanto categoria de análise dos processos de comunicação, vai além da simples oposição ao real ou à realidade. Como afirma Burgelin (1981, p. 87), escudando-se em Edgar Morin:

...há algo de comum a todos os tipos de leitura, a todos os tipos de participação e que nada tem a ver com a relação da mensagem com o mundo real. Para seguir um texto, um espetáculo, um filme e até um trecho de música é indispensável “partir com ele”. Há uma capacidade imaginária que se exerce em todos os tipos de participação e que nada tem a ver com as relações da mensagem com o mundo. Se leio uma história verdadeira, tenho de imaginar para compreender, e o mesmo acontece quando leio as aventuras do cavaleiro, do dragão e da princesa.

O excerto ajuda a compreender que a espetacularização não está relacionada à passividade ou alienação do espectador. Ao contrário, o espetáculo só acontece quando o espectador “vai com ele”, como quer Burgelin, atitude que estabelece elos entre o emissor e o receptor da narrativa. Os elos amarrados pelo espetáculo são diversos daqueles observados nas análises de Império do sol apresentadas anteriormente. Assim também, esses elos se encadeiam de modo diverso, em que a imaginação tem papel fundamental e supera a interpretação de cunho mais racional como principal elemento de ligação entre a obra e o expectador.

Enquanto referencial para a decodificação de mensagens (ou “leitura” de um filme), a imaginação pode estar fortemente ligada à realidade, confirmando o alerta para que seja evitada a relação de oposição

simplista entre essas duas categorias. Vale dizer que a imaginação pode ser vista, por exemplo, como recurso para entender uma notícia factual lida no jornal, como Burgelin explicou. Será preciso alguma dose de imaginação para a concepção e a compreensão dos fatos mencionados na notícia. Se não há fotografia, o leitor terá que imaginar o local do acontecimento, bem como as personagens envolvidas e assim por diante. Mesmo assim, o que ali está noticiado não deixa de ser real. Mas, a par do imaginário que ajuda a entender a realidade, há, também, o imaginário que remete para além do real, dimensão em que os limites da concretude podem ser rompidos. Essa é a ordem de imaginação que o espetáculo cobra ao espectador.

Outro aspecto importante para entender o mecanismo comunicacional que se orienta pela espetacularização é classificar a imaginação de acordo com os desejos do espectador, introduzindo nessa reflexão a contribuição da dimensão simbólica para compreensão do processo.

Além de atuar na construção de referenciais interpretativos (reais ou fictícios), a imaginação também atua nos mecanismos pelos quais as pessoas buscam suprir necessidades emocionais e realizar desejos, sobretudo de ter e ser. No plano mais realista, a sedução publicitária atua na imaginação do receptor para que acredite na satisfação de desejos mediante a aquisição de produtos valorizados pela dimensão simbólica. Trata-se do mecanismo que, de alguma forma, faz a mulher acreditar que ela se confunde (e é confundida) com estrelas do cinema porque usa a mesma marca de sabonete anunciada pela publicidade como preferida pelas atrizes. Como visto, esse mecanismo não depende somente da imaginação. Necessária se torna a intervenção (e a aceitação) do símbolo para o processo tomar forma e realizar-se por inteiro.

Quando o assunto é espetáculo cinematográfico, a representação simbólica também tem importância capital. Isso pode ser observado na análise da seqüência sobre o ataque aéreo em Império do

sol, em que símbolos foram usados profusamente para aumentar ou consolidar a espetacularização das

cenas, a exemplo do avião escolhido para concentrar a atenção do espectador e aguçar a sua imaginação. Para o espectador, imaginar-se no comando de um avião de combate é espetacular, mas comandar um P 51 em uma missão de ataque ao solo é ainda mais espetacular

Os efeitos envolventes do imaginário e do simbólico no exercício da espetacularização se completam com a inserção da dimensão estética, definida pela dupla consciência do receptor, uma ligada à imaginação que modela e alimenta o espetáculo e outra conectada à realidade que mantém o espetáculo como tal86. O sentido da dimensão estética fica mais compreensível quando se leva em consideração o objetivo do espetáculo em relação ao espectador, que, ao fim, envolve a negação da realidade. Assim, mesmo quando se afirma realista (por exemplo, o aviso de que determinado filme é baseado em fatos, vale dizer, o que será mostrado realmente aconteceu) o espetáculo cinematográfico jamais se propõe substituir

86 Cf. BURGELIN, 1981.

a realidade. Mais que isso, o espectador está ali exatamente para romper com a realidade, caso contrário, não iria ver um filme. Portanto, sem a dimensão estética, o espetáculo pode ser confundido com a realidade e, aí, não mais será espetáculo, pelo menos para o espectador que perdeu essa conexão. Por isso o espetáculo guarda uma dimensão estética, expressa no plano da forma plástica e poética. O espetáculo horroriza, emociona, envolve pela constituição plástica que assume, reproduzindo ou dissimulando a realidade, mas nunca se confundindo com ela.

A espetacularização mediante a junção da imaginação, do simbólico e da estética é arrematada pela inclusão do lúdico, responsável pelo efeito de jogo ou disputa peculiar ao espetáculo. Considerado, grosso modo, a tentativa de superar obstáculos87 a idéia de jogo garante emoção ao espetáculo, eletrizando e consolidando a ligação do espectador com o que acontece na tela. Pressupondo disputa, superação e competição, o jogo dá sentido e objetivo (intrínseco, já que o extrínseco é puramente comunicacional) ao espetáculo, definindo o que devem fazer as personagens, trazendo o espectador para a participação (imaginária e simbólica), à medida que aquelas se aproximam ou se afastam dos seus objetivos.

Reunidos esses ingredientes, o espetáculo, enquanto forma e fórmula de comunicação, modela o cinema e o faz em medidas quase absolutas, se considerados gênero e origem do filme que este trabalho analisa. Ampliando o alcance da afirmativa do espécime para o gênero, é possível supor, com alguma segurança de acerto, que o cinema mostra (e constrói) a guerra como espetáculo, transformando campos de batalha em picadeiros de show, fazendo uso irrestrito da pirotecnia que os efeitos e a linguagem cinematográfica permitem. Evidentemente nem sempre o espetáculo é grandiloqüente e celerado, como o ataque aéreo de Império do sol. Há também os espetáculos intimistas, de ritmo lento, como existem aqueles de perfil mais realista, contrapostos aos que apostam todas as fichas na ficção. São variações que importam pouco, dado que o objetivo é sempre o mesmo, cativar a atenção do receptor para a mensagem do diretor sobre a (sua) guerra, que também pode oscilar entre o mais sincero convite à reflexão, até o aceno mais descompromissado com tudo que for diferente do entretenimento, no mais amplo e abrangente sentido do termo.

Impossível negar que a guerra espetacular, que brota do cinema, sempre mantém algum nível de relação com aquilo que é concebido como guerra verdadeiramente dita (expressão que evita o termo real, para fugir a polêmicas impróprias e inadequadas ao mister aqui perseguido), mas nunca a ponto de captar integralmente essa guerra verdadeiramente dita. Assim, cabe reconhecer que mesmo quando o cinema reconstitui guerras registradas pela história, o que está na tela não se confunde se não parcialmente com a realidade, atual ou pregressa. A espetacularização está entre os principais causadores dessa dicotomia, valendo, no final das contas, a capacidade decodificadora do espectador no caminho interpretativo do filme. Também a guerra se manifesta múltipla e complexa demais para ser dada como definitivamente

87 Cf. BURGELIN, 1981.

compreendida, pelo menos enquanto conceito. Aí então, independente de ser mais ou menos espetacular, o observador descobre que sempre há um pouco para ver e outro tanto para compreender quando o cinema simula os campos de batalha.

Ainda como último ponto sobre os conteúdos tratados neste subtítulo, vale notar, conforme demonstrado, que a identidade lúdica assinala a diferença entre o espetáculo e a realidade. Todavia, mais à frente, será demonstrado que o espetáculo, consolidado no cinema, assim como em outras modalidades de entretenimento, vem, paulatinamente, perdendo a aparência dessa identidade lúdica, provocada pela redução proporcional da superfície de separação clara em relação à realidade, dado que, ela mesma, se espetaculariza cada vez mais, inclusive no que respeita à guerra.