• Nenhum resultado encontrado

Figura 9 Vaticínio.

AMBIENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Um dos argumentos observados em Império do sol para mostrar a distinção entre expectativa e realidade é o que será chamado aqui de ambientação histórica. No que respeita a esta proposta de trabalho, ambientação histórica representa a reconstituição fílmica de eventos que, de um modo geral, a sociedade reconhece que realmente aconteceram. Diz-se “de um modo geral”, dada a dificuldade (ou talvez impossibilidade) da reconstituição integral e exata do passado, seja porque não existe recurso narrativo ou meio de comunicação capaz de conhecer, reunir e reorganizar, stricto sensu, a totalidade de componentes de tempos idos, seja porque os narradores do passado (no caso do cinema, os roteiristas, diretores, elenco, etc.) modelam a reconstituição do que aconteceu sob influências e interferências diversas, como ideologia, cultura, estética, recursos, intenções e os limites próprios da narrativa.

Assim, nos termos aqui considerados e para o filme em análise, menos que um exercício preciso e exato de reconstituir o passado tal como ocorreu, ambientação histórica pode ser definida pela construção de um modo próprio de ver determinados elementos do passado, reconstituídos com determinados objetivos, a partir de critérios definidos pelos realizadores daquela obra cinematográfica, relacionados com alguns referentes (do passado) aceitos como verdadeiros, por consenso. Comparativamente, se para o historiador o passado se apega ao documento, para o roteirista a ambientação é sempre redigida em um palimpsesto, pois pode ser refeita uma, outra e mais outra vez, ou tantas quanto permitirem a imaginação e a vontade de fazer cinema.

Portanto, ainda que seja um modo de ver definido e objetivado, a ambientação histórica diverge da composição puramente ficcional pelo fato de manter certo grau de compromisso com a realidade passada ou, pelo menos, com argumentos e registros da história sobre o passado. O ponto de ruptura entre o que realmente ocorreu no passado e aquilo que as narrativas históricas afiançam é complexo e não configura, nem de longe, objeto e objetivo deste trabalho, como também não é competência do autor tratar do assunto neste fórum. Todavia, a ambientação histórica vem à baila pela necessidade de demonstrar que o filme em análise recorre a fatos aceitos como acontecidos, para consolidar o jogo de oposições do qual seus realizadores lançam mãos para montar (no sentido geral e cinematográfico do termo) um modo de representar a guerra.

Assim, no caso de Império do sol, a ambientação histórica mistura-se aos componentes ficcionais para criar o “universo” no qual o roteiro insere Jim Graham e as demais personagens do filme, contribuindo para consolidar a já mencionada oposição entre a crença na superioridade ocidental e a inviabilidade da guerra (pelo menos como ameaça séria ao status quo da comunidade européia de Xangai) que caracteriza o modo de interpretar a situação dos adultos em relação à avaliação inversa que faz a personagem infantil. A história comprova que os adultos estavam errados na sua avaliação, pois, como já mencionado, os japoneses não só invadem a China, como também ocupam arquipélagos do Pacífico, a Indochina francesa, a Birmânia e a Malásia, aproximam-se ameaçadoramente da Índia e da Austrália, atacam o território americano (Pearl Harbor, no Havaí) e vencem toda a resistência durante o período inicial do conflito, impondo superioridade militar aos Aliados em toda a região do sudeste asiático. Ou seja, no contexto do filme, o resgate da realidade histórica serve para mostrar que os adultos erram e a criança acerta os prognósticos sobre a evolução da situação político-militar do extremo oriente no período enfocado pelo enredo.

A análise da parte inicial do Império do sol mostra que a guerra, ou mais precisamente o “estado de guerra” entre China e Japão, na primeira metade do século XX, compõe, lato sensu, a ambientação em que se desenrola a narrativa, criando, com o emprego de recursos próprios do cinema, um referente de guerra de caráter histórico, ou seja, reconstituindo um conflito bélico ocorrido em local específico, em um período determinado.

Operando essa alquimia, a produção do Império do sol repete procedimentos comuns à arte cinematográfica, representada pela adoção de uma perspectiva histórica da guerra como temática, ou como ambiente no qual a narrativa se desenvolve e as personagens são inseridas.

Sobre a convergência entre cinema e história, o professor de História dos Estados Unidos da Universidade de Colúmbia, Mark C. Carnes (1997, p. 9), citando Gore Vidal, pondera: “Se a palavra impressa superou a tradição oral, o cinema e a televisão eclipsaram a suprema invenção de Guttenberg. Vidal sugere que cedamos ao inevitável, que descartemos o sistema educacional vigente e que apresentemos o passado aos jovens através do cinema”.

No filme de Spielberg, essa apresentação do passado sugerida por Vidal manifesta-se, primeiro, em texto, a partir do roll de caracteres que abre a película para situar o espectador no “momento/lugar” reconstituído. Depois, espalha-se pelo filme, por meio das imagens, das falas das personagens e da própria montagem, isso tudo convergindo para a (re)criação, historicamente

referenciada, de um tempo/espaço específico em que a narrativa vai se ambientar. Desse modo, o filme reproduz no plano particular o que propõe, no geral, o professor de História da Universidade Rutgers de Nova Jersey, John W. Chambers II, na conclusão do livro World War II:

film and history, que escreveu juntamente com David Culbert. Referindo-se à exclamação do

presidente americano Woodrow Wilson sobre a capacidade do cinema "escrever a história com luz", ao assistir O nascimento de uma nação (Estados Unidos, 1915), o professor afirma:

A poderosa habilidade do filme em trazer a história – especialmente a história da guerra – para a vida da platéia nunca mais parou de crescer a partir de então (1915 n. a.), impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico, como som e cor, relacionado às imagens em movimento, desde o antigo cine-jornal até o telejornalismo atual.39 (CHAMBERS II e CULBERT, 1996, p. 147)

Da mesma forma, o “scholar” americano Robert Rosenstone (1995), tratando dos desafios que o cinema traz aos conceitos tradicionais da história, concorda que a escrita é a mais usada e, convencionalmente, a primeira linguagem histórica, mas não é a única, pelo menos depois que a inteligência humana criou formas narrativas como o cinema. Sobre a conexão entre a narrativa escrita versus narrativa cinematográfica, Rosenstone (1995, p. 11) relata:

A língua (escrita), em si mesma, é somente uma convenção para registrar a história, privilegiando certos elementos como fatos, análise e linearidade. Mas a história não precisa ser feita exclusivamente em uma página. Pode haver um modo de pensar que use outros elementos que não a escrita, como som, imagem, sentimento, montagem.40

Por outro lado, se existem diferenças e peculiaridades entre a narrativa histórica baseada na escrita41 e aquela outra apoiada nos recursos da cinematografia (a aposta aqui ensaiada é de que há, também, complementaridade), é conveniente pressupor que alguns pontos permaneçam tanto na página do livro como na tela do cinema, para que o receptor, seja o leitor, seja o espectador, possa, potencialmente, reunir elementos para entender a perspectiva histórica, do livro ou do filme, sobre determinado tema, como a guerra, considerando os horizontes aqui delineados.

Sobre esse ponto de observação Carnes (1997, p. 9) escreve:

39 "The powerful ability of film to bring history – especially war history – to life for audiences has only increased

since then (1915, n. a.), aided by technological improvements, such as sound, color, and enhanced by connections with moving images from old movie newsreals and recent television news programs."

40

“That language itself is only a convention for doing history – one that privileges certain elements: facts, analysis, linearity. The clear implication: history need not to be done on page. It can be a mode of thinking that utilizes elements other than the written word: sound, vision, feeling, montage.”

41 Evidentemente a lista de suportes narrativos dos quais a reflexão sobre o passado pode valer-se como forma de

expressão vai além da dicotomia texto escrito/cinema. Todavia não é pertinente nem conveniente ao momento navegar no tratamento dessas múltiplas formas de expressão possíveis, valendo a referência ao texto escrito como fiel de comparação para o tratamento daquilo que é próprio a este trabalho, quer seja, a narrativa cinematográfica.

Os historiadores profissionais (...) vão buscar nos registros históricos os mais sólidos fragmentos de evidência; depois moldam-nos em significados e servem-nos em forma de livros que, sempre cheios de notas de rodapé e recendendo arquivos bolorentos, são, no entanto, lidos e admirados, discutidos e considerados.

Já a História segundo Hollywood é diferente. Ela preenche os irritantes vácuos onde não há registros históricos e elimina as ambigüidades e complexidades difíceis. O produto final então brilha e excita a imaginação.

No contexto dessa visão histórica, seja ela escrita ou filmada, a guerra é localizada e determinada, indicando ao leitor, ou espectador, um tempo e um lugar em que a narrativa ocorre, incorporando fatos e/ou alusões que marcaram esse acontecimento histórico. Ao expor a guerra como narrativa, não só o cinema, mas também o jornalismo, como se verá à frente, dão conta de preencher esses “irritantes vácuos” mencionados pelo autor citado acima. Em Império do sol, não só as informações manifestadas pelo texto (roll de caracteres) e pelas falas (datas, fatos, informações quantitativas, locais, acontecimentos, etc.) procuram dar conta da ambientação histórica, como também o fazem as imagens, uma vez que o cenário, os adereços, os trajes e até a expressão oral e gestual das personagens procuram reconstituir, cinematograficamente (importante prestar atenção a essa ressalva), o acontecimento em tela.

Sobre a reconstituição histórica visual, Chambers II e Culbert (1996, p. 150) manifestam a seguinte observação:

Alguns filmes produzem o senso e o sentimento de realismo e autenticidade através da fidelidade dos detalhes visuais. Os cenários, adereços, indumentárias (...) garantem o realismo do filme. Enfatizando pequenos detalhes – a autenticidade das armas, uniformes, capacetes, insígnias – inspiram confiança na fidelidade histórica do filme como um todo.42

Ao valer-se do som, do texto, da imagem e do movimento para reconstituir elementos referentes à guerra, tendo como parâmetros tempo, espaço e referências factuais, entende-se que a reconstituição cinematográfica assim conduzida adota um viés histórico, tratando de algo que, real ou presumivelmente, aconteceu em determinado local, em determinada data, de determinada forma, envolvendo determinados elementos43.

Evidentemente, o compromisso do cinema com a reconstituição histórica é sempre subjetivo, uma vez que a (re)criação do objeto, ou seja, do acontecimento histórico focado,

42 Such filmes generate their sense and feeling of realism and authenticity through the accuracy of their visual detail.

The sets, props and costumes (...) provide reassurance as to the true-to-life quality of the film. Emphasis on petty detail – the authenticity of weapons, uniforms, helmets, insignia – seemingly inspires confidence in the historical accuracy of the entire product.”

43 A afirmação toma por base a noção de histórica como ciência que estuda as mudanças através do tempo,

depende, exclusivamente, da vontade e das possibilidades das pessoas, recursos e instituições envolvidas com a produção do filme. Nesse sentido, o ajuste da reconstituição à história comporta um arco de variação tão amplo quanto a capacidade imaginativa do ser humano, indo do muito próximo àquilo que se acredita ser real (intencionalmente falando), ao mais assumido “descompromisso” ficcional com essa proximidade. Portanto, parece desnecessário dizer que, ao observador, cabe levar em conta condicionantes dessa natureza ao avaliar o resgate cinematográfico da história (e da guerra, enquanto evento histórico), mantendo saudável posição de distância, equivalente à lembrança de que reconstituição é, sempre, um modo escolhido pelo(s) narrador(es) de (re)ver e mostrar o passado.

Rosenstone (1996, p. 6) trata dessa questão quando sugere o verbo render (em inglês) para indicar o que especificamente o cineasta faz com o passado nas reconstituições históricas: “Meu desejo tem sido (...) entender, desde um ponto de vista interno, como os cineastas se posicionam quanto à reconstrução (rendering) do passado no filme.” 44 Nesse contexto, o termo traduzido como reconstrução, rendering, pode ser entendido de modo mais abrangente, como reproduzir, ou “tornar a fazer”, mas tem, certamente, um sentido mais direto e específico, congruente àquele usado em informática, em que render significa montar (uma imagem), agregando e superpondo partes, texturas e camadas45. De acordo com tal raciocínio, essas partes, texturas e camadas que formam a imagem “renderizada”46

na tela do computador têm sua contrapartida cinematográfica nos elementos que o cineasta julga conveniente, oportuno e possível reunir para compor a sua (grifo enfático) reconstituição do evento.

A ambientação verificada em Império do sol busca fatos referenciados na história, reconstituídos segundo os realizadores do filme, com o duplo objetivo de construir uma interpretação própria da guerra e, ao mesmo tempo, situar o espectador em um referencial determinado de tempo e espaço em que a narrativa se desenvolve.

Graças a este recurso e como observado no capítulo anterior, o filme permite ao espectador, por exemplo, compreender como se deu parte das tentativas de defesa dos chineses ao

44 “My desire has been (...) to understand from the inside how filmmaker might go about rendering the past on

film.”

45 Ver Cambridge, International Dictionary of English, 4. ed , Cambridge University Press: Cambridge, 2000. 46 Neologismo do jargão técnico da produção de vídeos, muito comum entre editores de imagem.

invasor, concentradas na seqüência em que atiradores de tocaia nos telhados disparam contra tropas nipônicas47.

Vale perceber que mesmo pequenos detalhes, nas mãos de alguns cineastas, acabam por servir à construção (no sentido já comentado de rendering) do ambiente e das personagens, estabelecendo conexões que consolidam e dão força à narrativa. É o caso, por exemplo, da cena em que a personagem principal de Império do sol contempla o sobrevôo de um avião de caça japonês, modelo Mitsubishi Zero, comentando com seu interlocutor a superioridade técnica daquela aeronave e, por extensão, da capacidade militar nipônica. Trata-se de uma cena que evidencia a realidade dos fatos, dado que os historiadores militares consideram o Zero um dos melhores modelos de caça dos anos iniciais da Segunda Guerra Mundial, superando, em velocidade, manobrabilidade, poder de fogo e outros quesitos, todos os oponentes construídos pelos Aliados, incluindo os caças de primeira linha desenvolvidos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na verdade, dizem os especialistas, foi somente no final do conflito, com o surgimento do Republic P47 Thunderbolt, de construção americana, que o Zero encontrou um oponente tecnologicamente à sua altura.48

Com esse artifício, baseado em um fato da história militar, Spielberg consolida a oposição em que a narrativa está estruturada, segundo a qual só o olhar infantil identifica e reconhece a superioridade militar do Japão, visível na tecnologia do avião de combate, mas veementemente negada pelos adultos.

Na mesma linha pode ser interpretado o trecho já descrito, no qual Jim descobre o avião abatido. Considerando-se o ângulo de enquadramento escolhido pelo diretor, a cena de abertura da seqüência destaca, em primeiro plano, que o nicho frontal das metralhadoras está vazio, revelando que as armas foram retiradas da carcaça (fig. 24). De um lado esse detalhe garante certo realismo à cena, expondo o procedimento padrão de retirar armamentos de aeronaves de combate abatidas ou acidentadas, por razões elementares de segurança. Por outro lado, o alojamento das metralhadoras vazio também pode acolher uma interpretação simbólica, na medida em que o combatente ocidental, representado por Jim, fica no comando de um avião desarmado, portanto sem condições de fazer frente ao inimigo. Por analogia, o jovem britânico

47 As considerações sobre o conflito sino-japonês desenvolvidas a partir daqui estão baseadas em posições e

informações do autor, bem como em FELIPE, 2005; KEEGAN, 1995 e BOBBITT, 2003.

48 Sobre o desenvolvimento tecnológico militar japonês no período que precede e durante a Segunda Guerra

representa o ocidente àquela altura despreparado (desarmado) para enfrentar a máquina de guerra nipônica.

Contudo, se de um lado os detalhes são usados com habilidade para a reconstituição histórica pretendida pelo filme, também são os detalhes que revelam descompassos com a realidade, no sentido de lembrar que, em última instância, o compromisso da reconstituição é com o filme e não com a realidade e, portanto, se a reconstituição basta e serve à narrativa, não importa muito se, ao mesmo tempo e em igual medida, ela desrespeita a lógica da verdade, bem como o resgate rigoroso de fatos históricos. O site sobre cinema IMDB (International Movie Data Base), como faz com outros filmes, exibe um elenco de anacronismos observados em Império do

sol, alguns relativos à história militar, como o vaso de guerra inglês, mais precisamente um

destróier, ancorado na baía de Xangai, identificado como um modelo incorporado pela Marinha Real em 1950, portanto 14 anos após o período reconstituído pelo filme49.

Embora anacronismos dessa ordem sejam freqüentes e comumente apontados como erro, sobretudo em filmes em que a ambientação histórica tem relevância para a construção da narrativa, é pouco provável que os realizadores não tivessem conhecimento da época de construção da belonave usada no filme, como também soubessem com muita clareza que o anacronismo seria percebido, se não por todos os espectadores, pelo menos por alguns. Mas, se a hipótese do conhecimento prévio é correta, o que explica a manutenção da cena e da figuração? Talvez a resposta seja a mesma que permite ao poeta tergiversar da gramática, em favor da estética e da idéia narrada pelo poema. Vale dizer, a reconstituição não objetiva refazer a história, mas antes, criar (grifo enfático) o ambiente em que se desenvolve a narrativa, abrindo possibilidade para a licença “imagética”, assim como é aceita a licença poética. Em outros termos, verossimilhança com a história, em especial e com a realidade, de um modo geral, pode ser conveniente, porém esse rigor pode ser abrandado para não romper a articulação com a criatividade e com os recursos disponíveis.

Frente ao exposto, importa muito pouco a intencionalidade ou não do anacronismo, como também não importa se foi percebido, mas não foi corrigido, ou simplesmente não foi percebido até a obra chegar ao espectador. São conjecturas irrelevantes, dado que, ao fim e ao cabo, a intenção de criar um ambiente articulado com as pretensões do filme e posteriores possibilidades

de leitura não foi (ou não é, considerando que o filme continua aberto a leituras e interpretações) comprometida nem seriamente prejudicada.

A possibilidade de exilar a fidelidade da ambientação para níveis complementares e não essenciais de importância na construção da obra cinematográfica de modo geral e em especial no âmbito do cinema de gênero, no qual se enquadra o filme analisado nesta tese, está fortemente escudada nas teorias que prescrevem a “impressão da realidade” como chave fundamental para entender o modo como a narrativa cinematográfica é captada, absorvida e interpretada pelo espectador50.

Segundo Christian Metz, citado por Ismail Xavier (2005), impressão da realidade é o mergulho do espectador dentro da tela, que permite a identificação com personagens e participação afetiva no mundo representado. O mesmo texto cita também Edgar Morin, que observa no cinema a constituição, pelo espectador, de um mundo imaginário51.

Figura 24. Desarmado.

50 Cf. XAVIER, 2005.

Do ponto de vista do cineasta, a substituição da reconstrução fiel da realidade pela impressão da realidade configura a possibilidade de manipulação, enquanto, do ponto de vista do espectador ela exige cumplicidade. Juntas, manipulação e cumplicidade criam as condições para o cineasta exprimir um ponto de vista próprio, que será objeto de observação, apreciação e, eventualmente, de questionamento e de reflexão por parte do espectador.

Retornando ao filme em análise, a ambientação observada destaca a iminência de um conflito militar e expressa a contraposição entre as massas populares e a elite burguesa, interpretada como relação de oposição em diversos níveis. Oposição social, na medida em que contrapõe status sociais diferentes. Oposição étnica entre amarelos e brancos. Oposição cultural entre ocidente e oriente. Oposição etária entre criança e adulto. Além disso, esse quadro de oposições pode ser referenciado a um segundo plano interpretativo, dado pela relação de oposição entre realidade e fantasia, aquela plasmada na chegada da guerra e esta pela (vã) expectativa de permanência e manutenção do status quo anterior ao conflito.

Referenciado nesses elementos, o filme apresenta uma reconstituição específica e particular da guerra, vista como relação entre elementos opostos, no caso, a polarização das nações que se enfrentaram no período em tela e naquela região do planeta: China, Japão, Estados Unidos e Grã-Bretanha (países diretamente referenciados no filme). Nesse ambiente, específico e particular, Jim Graham observa o conflito, repartindo suas observações com o espectador, para revelar, em última instância, o que os realizadores do filme querem mostrar e têm a dizer sobre a guerra.

A análise aqui desenvolvida entende que o foco da narrativa da parte inicial do filme